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Dos Princípios Da Boa-Fé E Da Confiança Nos Processos Eletrônicos

Em março de 2020, decidiu a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, sendo o relator o Ministro Mauro Campbell Marques, que a indicação equivocada de vencimento de prazo recursal registrada em andamento processual disponibilizado na internet configura justa causa [2], sendo assim justificativa para a prorrogação da contagem do prazo nos termos do art. 183 §§ 1º e 2º, do CPC/1973 (que hoje está prevista no art. 223, §§ 1º e 2º do CPC/2015) [3].

Trata-se de decisão de extrema importância, consolidando a aplicação dos princípios da boa-fé e da confiança nos processos eletrônicos.

A proteção da confiança possui uma estreita correlação  com a presunção de legalidade dos atos emanados do Poder Público, pois, a partir desta construção legal, extrai-se um mecanismo de incentivo para que os seus destinatários compreendam aquele ato como legítimo e confiem no seu teor como perfeitamente válido, mesmo sem adentrar em uma análise meritória mais aprofundada. Valter Shuenquener de Araújo destaca que a confiança depositada pelos particulares nos agentes públicos gera “uma maior probabilidade de seu reconhecimento como uma autoridade legítima, e, por conta disso, aumentam as chances de que seus atos sejam cumpridos num ambiente de cooperação” [4].

Rafael Maffini aponta que o princípio da proteção da confiança legítima seria um desdobramento do princípio da segurança jurídica e também do Estado de Direito, tendo-se por finalidade a preservação da “estabilidade, previsibilidade e calculabilidade dos atos, procedimentos ou simples comportamentos estatais”, trazendo consigo “deveres comportamentais mediatos que impõem a preservação de atos estatais e de seus efeitos”. [5]

O CPC de 2015 consagrou expressamente a boa-fé no seu art. 5º [6]. Há quem retrate a positivação do princípio da boa-fé como um dos reflexos do movimento neoprocessual, a partir do qual o formalismo liberal é atenuado tendo-se como pressupostos valores éticos, elevando-se ao seu lado, os princípios da cooperação e da vedação da prática de atos contraditórios [7]. Neste ensejo, Fredie Didier Jr. ressalta a importância de se eliminarem assimetrias nas posições dos sujeitos processuais para que se chegue a uma condução cooperativa do processo [8].  Daniel Mitidiero alerta para o fato de que a cooperação deve alcançar todos os momentos processuais, devendo estar presente na condução do processo, no diálogo processual, mas, principalmente, no momento da decisão [9]. Isto autorizaria, igualmente, uma participação das partes de maneira mais ativa na gestão adequada do processo pelo magistrado. E é exatamente este ponto que se conecta com a decisão do Superior Tribunal de Justiça em análise.

São inúmeros os trabalhos doutrinários acerca da boa-fé objetiva entre os sujeitos processuais. Todavia, o decisum aborda o aspecto da cooperação para além da relação posta em juízo. Não se espera neste caso uma simples boa-fé objetiva a partir de uma ação da parte processual. A confiança esperada relaciona-se com a prestação jurisdicional pelos meios eletrônicos, que constantemente pode ser de alguma forma comprometida por falhas técnicas ou dificuldades encontradas a partir do manuseio dos recursos tecnológicos. Fecha-se, assim, uma relação de confiança triangular, ficando evidente que o juiz também deve agir promovendo confiança e cooperação juntamente com as partes.

De acordo com o art. 139, e incisos, do CPC de 2015, o juiz exerce um papel muito importante como gestor do processo [10]. O processo é um instrumento para que o magistrado possa formar a sua convicção com o maior número de informações possíveis, assegurando-se que as partes possam influenciar positivamente na construção de uma melhor solução para a controvérsia instaurada.

É importante notar que a decisão do STJ contempla a possibilidade de se considerar uma informação equivocada lançada pelo Tribunal de origem nos autos eletrônicos como parâmetro para aferição da tempestividade recursal, pois ao induzir a parte em erro, fez com que seu comportamento pautado na boa-fé e na confiança fosse orientado por aquele ato processual praticado por um membro do Poder Judiciário. O jurisdicionado agiu presumindo como verdadeira a informação lançada no processo eletrônico, em total observância do princípio da presunção da legalidade dos atos praticados pelo Poder Público.

A presunção da legalidade dos atos eletrônicos praticados pelo Poder Judiciário pode ser extraída dos artigos 196 do CPC [11], combinado com o regramento descrito no art. 4º da Lei nº 11.419/2006 [12], chancelado pelo Conselho Nacional de Justiça na recentíssima Resolução nº 345, de 09 de outubro de 2020, que dispõe sobre o Juízo 100% Digital, destacando-se, por oportuno, a redação do seu art. 1º, e parágrafo único, segundo os quais os Tribunais poderão autorizar a prática de todos os atos processuais no meio eletrônico, por intermédio da rede mundial de computadores.

Vale destacar que o próprio STJ possui outros importantes precedentes em igual sentido, a exemplo do julgamento do Recurso Especial nº 1324432/SC, no qual o Relator, Ministro Herman Benjamin, asseverou que a divulgação do andamento processual pelos Tribunais por meio da internet passou a representar a principal fonte de informação sobre a tramitação do feito, e por isso mesmo, a confiança da parte nos dados fornecidos pelo próprio Poder Judiciário não poderia trazer-lhe prejuízo. Por esta razão, entendeu aplicável o afastamento do rigorismo na contagem dos prazos processuais pelo fato de se tratar de um erro induzido pela informação disponibilizada no processo eletrônico [13].

Esta construção dá ensejo a uma série de relativizações importantes na condução dos processos eletrônicos por parte do magistrado. Como gestor, ele deve atentar para o que está reproduzido no “mundo dos autos”, e não exatamente no que seria hipoteticamente correto. O parâmetro comportamental não deve ser algo que não se possa extrair naturalmente da dinâmica processual.

Assim, o magistrado deve ter a cautela de decidir pautado em uma avaliação criteriosa sobre as possíveis condutas das partes diante de situações de falha no sistema ou de atos eletrônicos que as induzam em erro. Observado um comportamento adequado diante do que se efetivamente concretizou na marcha processual, o julgador deve fazer amplo uso do art. 139 do CPC, combinado com o art. 223 do CPC, e principalmente o art. 194 do CPC [14], que estabelece expressamente que os sistemas de automação processual respeitarão as garantias da acessibilidade e interoperabilidade dos sistemas, serviços, dados e informações no exercício da jurisdição. E todo este exercício hermenêutico se coaduna perfeitamente com os artigos 20 e 21 da LINDB em sua nova redação [15].

Não raro, são reportadas dúvidas razoáveis pelas partes sobre algumas incongruências ou lacunas decorrentes da informatização dos processos, que devem ser imediatamente supridas pelo magistrado, por meio de decisões que minimizem e neutralizem eventuais prejuízos.

Leonardo Greco faz uma interessante crítica à virtualização do processo, na medida em que algumas exigências decorrentes do uso da tecnologia poderiam acarretar o “nefasto efeito da elitização da advocacia” [16].

Resta assim evidente que, ao menos neste estágio inicial da informatização dos processos, existe uma situação de vulnerabilidade natural decorrente da inserção gradual da tecnologia, que somente com a prática e o constante aperfeiçoamento dos sistemas irá desaparecer. Portanto, enquanto esta condição de instabilidade perdurar, em constante processo de aprimoramento e adaptação dos meios digitais até que se alcance um estágio avançado que permita sua razoável consolidação, a atenção do magistrado deverá ser redobrada, assim como também os seus níveis de tolerância diante de aparentes erros ou descumprimentos de deveres e obrigações processuais pelas partes, para que as garantias processuais se mantenham devidamente resguardadas, principalmente no que tange à garantia do acesso à justiça e do devido processo legal.

Notas e Referências

[1] Myrna Alves de Britto, advogada, pós-graduanda em Processo Civil - UCAM, pesquisadora na área de Negócios Jurídicos Processuais e Processo Coletivo e Cristiane Rodrigues Iwakura, Doutora e Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Procuradora Federal lotada na Comissão de Valores Mobiliários atualmente em exercício como Coordenadora da Escola da Advocacia-Geral da União na 2ª Região. Professora convidada em Programas de Pós-Graduação do CEPED/UERJ e FGV/Direito Rio. Instrutora de Direito Processual Civil da EAGU. Pesquisadora na área de Processo e Tecnologia. Membro do Projeto Linguagem Jurídica Inovadora / Visual Law da PGF. Gerente de Projetos do Escritório de Inovação da Coordenação Geral de Projetos e Assuntos Estratégicos da Procuradoria Geral Federal. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual - ABDPRO, do Instituto de Direito Sancionador – IDASAN, e do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro - IDARJ.

[2] STJ - Processo EAREsp 688.615-MS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 04/03/2020, DJe 09/03/2020.

[3] CPC. Art. 223. Decorrido o prazo, extingue-se o direito de praticar ou de emendar o ato processual, independentemente de declaração judicial, ficando assegurado, porém, à parte provar que não o realizou por justa causa. § 1º Considera-se justa causa o evento alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato por si ou por mandatário. § 2º Verificada a justa causa, o juiz permitirá à parte a prática do ato no prazo que lhe assinar.

[4] ARAÚJO, Valter Shuenquener de. Princípio da Proteção da Confiança. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/principio-da-protecao-da-confianca/4364. Acesso em: 25/11/2020.

[5] MAFFINI, Rafael. Princípio da proteção da confiança legítima. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/120/edicao-1/principio-da-protecao-da-confianca-legitima. Acesso em: 22/11/2020.

[6] CPC. Art. 5º. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

[7] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. São Paulo: RT, 2009, p. 71-73.

[8] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p.125.

[9] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. São Paulo: RT, 2009, p.102.

[10] CPC. Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento; II - velar pela duração razoável do processo; III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias; IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; V - promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais; VI - dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito; VII - exercer o poder de polícia, requisitando, quando necessário, força policial, além da segurança interna dos fóruns e tribunais; VIII - determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso; IX - determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais; X - quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível, outros legitimados a que se referem o art. 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 , e o art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 , para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva. Parágrafo único. A dilação de prazos prevista no inciso VI somente pode ser determinada antes de encerrado o prazo regular.

[11] CPC. Art. 196. Compete ao Conselho Nacional de Justiça e, supletivamente, aos tribunais, regulamentar a prática e a comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico e velar pela compatibilidade dos sistemas, disciplinando a incorporação progressiva de novos avanços tecnológicos e editando, para esse fim, os atos que forem necessários, respeitadas as normas fundamentais deste Código.

[12] Lei 11.419/2006. Art. 4º. Os tribunais poderão criar Diário da Justiça eletrônico, disponibilizado em sítio da rede mundial de computadores, para publicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem como comunicações em geral. § 1º O sítio e o conteúdo das publicações de que trata este artigo deverão ser assinados digitalmente com base em certificado emitido por Autoridade Certificadora credenciada na forma da lei específica. § 2º A publicação eletrônica na forma deste artigo substitui qualquer outro meio e publicação oficial, para quaisquer efeitos legais, à exceção dos casos que, por lei, exigem intimação ou vista pessoal. § 3º Considera-se como data da publicação o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação no Diário da Justiça eletrônico. § 4º Os prazos processuais terão início no primeiro dia útil que seguir ao considerado como data da publicação. § 5º A criação do Diário da Justiça eletrônico deverá ser acompanhada de ampla divulgação, e o ato administrativo correspondente será publicado durante 30 (trinta) dias no diário oficial em uso.

[13] A divulgação do andamento processual pelos Tribunais por meio da internet passou a representar a principal fonte de informação dos advogados em relação aos trâmites do feito. A jurisprudência deve acompanhar a realidade em que se insere, sendo impensável punir a parte que confiou nos dados assim fornecidos pelo próprio Judiciário. Ainda que não se afirme que o prazo correto é aquele erroneamente disponibilizado, desarrazoado frustrar a boa-fé que deve orientar a relação entre os litigantes e o Judiciário. Por essa razão o art. 183, §§ 1º e 2º, do CPC determina o afastamento do rigorismo na contagem dos prazos processuais quando o descumprimento decorrer de fato alheio à vontade da parte. (REsp 1324432/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, CORTE ESPECIAL, julgado em 17/12/2012, DJe 10/05/2013).

[14] CPC. Art. 194. Os sistemas de automação processual respeitarão a publicidade dos atos, o acesso e a participação das partes e de seus procuradores, inclusive nas audiências e sessões de julgamento, observadas as garantias da disponibilidade, independência da plataforma computacional, acessibilidade e interoperabilidade dos sistemas, serviços, dados e informações que o Poder Judiciário administre no exercício de suas funções.

[15] LINDB. Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

Art. 21.  A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

[16] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil, volume I. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 299.

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Breves Considerações Sobre O Pl Nº 4.778/2020 – Avanços, Retrocessos E Polêmicas

Encontra-se em tramitação perante a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.778/2020, oriundo do Anteprojeto elaborado por Grupo de Trabalho instituído pelo Conselho Nacional de Justiça, que prevê a nova disciplina da Ação Civil Pública, reunindo o quanto atualmente disciplinado pela Lei nº 7.347/1985, arts. 81 a 104, do Código de Defesa do Consumidor e art. 2º-A, da Lei 9.494/1997.

Conquanto imbuído do intuito de “aprimorar a atuação do Poder Judiciário nas ações de tutela de direitos coletivos e difusos”, bem como de “corrigir anomalias e incoerências que geram falta de unidade do direito e potencial insegurança jurídica”[1], o Projeto de Lei tem sofrido críticas, e foi acusado de ser “um presente para os bancos, para os grandes interesses econômicos e para o Estado”[2].

Sem a mínima pretensão de esgotar o tema, serão destacadas algumas alterações promovidas pelo PL, no intuito de reforçar o debate a respeito de relevantes aspectos da possível e futura legislação, sem prejuízo de que venham a ser objeto de trabalhos posteriores, com tratamento mais pormenorizado.

1. Qual o objeto do PL nº 4.778/2020: ação coletiva ou ação civil pública?

A primeira questão para que se chama a  atenção, diz respeito ao instituto disciplinado pelo Projeto de Lei. Muito embora, o art. 1º, disponha que “esta Lei dispõe sobre a nova Lei de Ação Civil Pública”, nos demais dispositivos, todas as menções são feitas às ações coletivas. Ora, como bem destacado na exposição de motivos do próprio Projeto, a Ação Civil Pública é espécie de ação coletiva[3], razão pela qual não restou claro se as suas disposições serão aplicáveis às demais ações coletivas, como o mandado de segurança coletivo, ação popular, habeas corpus coletivo e ação de improbidade administrativa, dentre outros. Até porque, neste particular, a lei foi silente.

2. Competência e prevenção

Outra relevante questão consiste na alteração da regra de competência para propositura das ações civis públicas, uma vez que o art. 14 do PL determina que “a competência para o processamento da ação coletiva é do foro da capital do Estado e, preferencialmente, de varas especializadas, sendo possível ao exequente optar pelo foro de seu domicílio para o cumprimento da sentença”. A norma em comento caminha em direção oposta ao art. 2º da Lei nº 7.347/1985, que atribui competência funcional – e, portanto, absoluta – ao juízo do local do dano, e, ainda, ao art. 93 do CDC, que indica o foro da capital apenas para danos de âmbito regional ou nacional.

Entende-se que a disciplina atualmente prevista no CDC se afigura mais adequada e preserva de forma mais efetiva os direitos dos substituídos em demandas cujo dano tenha extensão local. Ademais, a norma foi silente quanto ao cumprimento de eventuais tutelas provisórias deferidas no âmbito da Ação Civil Pública. Deveria o substituído instaurar um incidente de execução provisória em seu domicílio, ou no foro do local do dano, ou, ainda, deveria se deslocar até o foro de tramitação da ação para requerer o cumprimento da tutela à sua situação concreta?

Também resta alterado o critério de prevenção, na hipótese de propositura de ações conexas. Pela disciplina atual, “a propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto” (art. 2º, parágrafo único da Lei nº 7.347/1985). De acordo com o art. 28, parágrafo único do PL, “a prevenção ocorre no momento da decisão que determina a citação”. Entendemos que seria mais coerente manter o critério atualmente previsto, que evidenciaria um alinhamento com o critério previsto pelo art. 59 do CPC/15, segundo o qual “o registro ou a distribuição da petição inicial torna prevento o juízo”.

3. Representatividade adequada das associações

Louvável, em nosso entender, a iniciativa do PL nº 4.778/2020 em incluir a demonstração, pela associação autora da Ação Civil Pública, da sua representatividade adequada (art. 4º, V). A exigência desse requisito como condição de procedibilidade da ação se faz necessária por um duplo aspecto. Assegura, por um lado, que defesa dos substituídos seja realizada por ente que possua qualificação necessária para tanto[4]. E evitará, por outro lado, o manejo abusivo de ações civis públicas em prejuízo do réu, que teria o ônus de se defender de uma ação proposta por uma associação inidônea.

O art. 5º do PL nº 4.778/2020 elenca, exemplificativamente, critérios para aferição da representatividade adequada. Em nosso entender, tais critérios permitem a aferição da solidez institucional, qualificação do corpo técnico e capacidade financeira da associação que proporá a Ação Civil Pública, e se afiguram corretos. Importa destacar, no entanto, que o critério elencado no inciso V – “laudo indicativo do número de pessoas atingidas pelo alegado dano” – não poderá ser considerado isoladamente, uma vez que não se presta a confirmar as características essenciais acima indicadas e consiste tão somente em elemento de reforço aos demais critérios anteriormente dispostos na norma.

4. Litispendência e controle da multiplicidade de ações

Talvez este seja o principal avanço do PL nº 4.778/2020. O art. 27, § 4º impõe expressamente que “não se admite a propositura de mais de uma ação coletiva com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, ainda que não se trate do mesmo autor”. E o parágrafo seguinte é conclusivo ao consignar que “considera-se haver litispendência no caso do parágrafo anterior, devendo a segunda ação ser extinta sem resolução de mérito”.

De acordo com a exposição de motivos do Projeto, “isto garante, entre outras coisas, que o mesmo agente econômico não seja sujeito passivo de infinitas ações coletivas com o mesmo objetivo, não se comprometendo, assim, a saúde econômica da sociedade e não se criando entrave à prosperidade do país”.

Conforme o art. 11 do PL, o CNJ deverá concentrar as informações a respeito de todas as ações civis públicas propostas no país e os seus relatórios mensais “serão necessariamente consultados antes da propositura da ação, para a demonstração do interesse processual e para evitar eventual litispendência” (arts. 11, § 2º)[5].

Em que pese o controle previsto pelo PL nº 4.778/2020 tenha sido considerado, por parte da doutrina, “medida burocratizante e dificultadora do acesso à justiça e que na prática pode se revelar inócua”[6], entendemos, ao contrário, que essa iniciativa fortalece o instituto da Ação Civil Pública, seja por impedir o manejo abusivo de inúmeras ações com pedidos idênticos pelos legitimados, seja porque os réus não mais poderão aproveitar-se da multiplicidade de ações sobre o tema para deixar de dar cumprimento às determinações judiciais.

Ademais, a simples consulta ao cadastro a ser implementado e atualizado pelo CNJ antes do ajuizamento da Ação Civil Pública não se afigura uma barreira ao acesso à justiça. Ao contrário, encerra uma providência útil àquele potencial autor coletivo que, verificando a existência de ação pretérita, poderá ingressar na qualidade de litisconsorte (art. 4º, § 2º do PL) ou assistente litisconsorcial (art. 4º, § 5º do PL).

5. Destinação dos valores de indenizações

O art. 8º do PL implementa em seus parágrafos mais uma alteração salutar para o regramento da Ação Civil Pública, encerrando a polêmica a respeito da destinação dos valores atualmente destinados ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDDD), previsto no art. 13 da Lei nº 7.347/1985 e a sua inefetividade em reparar o dano ao direito objeto da ação.

De acordo com o art. 8º, § 1º do PL nº 4.778/2020, “nas ações que versem sobre direitos coletivos em sentido estrito ou difusos, sempre que possível, o juiz determinará a destinação dos valores pedidos, para que sejam diretamente empregados na realização de obras ou atividades para restaurar o dano causado”. E, ainda, de acordo com o art. 8º, § 2º, “a destinação ao fundo de que trata o art. 31 é forma subsidiária de cumprimento de sentença”.

Na hipótese de indenizações arbitradas em ações civis públicas que versem sobre direitos individuais homogêneos, o valor da condenação será revertido para o fundo apenas se o montante for ínfimo ao ponto de a execução se tornar mais onerosa ao beneficiário (art. 8º, § 3º e art. 31, § 3º). A prioridade, como se vê, é a plena reparação do dano, de forma mais efetiva e transparente.

6. Prestígio à audiência pública

Vislumbramos, também, quanto a este tema, mais um acerto do PL nº 4.778/2020. As audiências públicas, além de um instrumento de participação democrática no processo, podem funcionar como uma excelente ferramenta de aferição da representatividade adequada dos legitimados. É uma boa oportunidade de verificação, pelo magistrado, se o substituto processual está alinhado com os interesses dos substituídos.

O art. 16 do PL prevê que “em todas as ações em que a pretensão verse sobre direito coletivo em sentido estrito e difuso, ou sobre direitos individuais homogêneos, tratados coletivamente, é cabível a participação de amicus curiae e é recomendada, de acordo com as peculiaridades do caso, a realização de, pelo menos, uma audiência pública”.

Importante iniciativa foi prever a necessidade de realização de audiência pública antes da homologação de acordo ou Termo de Ajustamento de Conduta (art. 29, §§ 2º e 6º), de modo a evitar que o ajuste não reflita os interesses dos substituídos. Importa considerar, no entanto, que a melhor interpretação das referidas normas é no sentido de impor a realização de audiência pública como requisito de validade de qualquer acordo ou TAC, e não apenas como condição de eficácia em todo território nacional.

A ressalva é válida, tendo em vista que o art. 29, § 6º do PL dispõe que “o termo de ajustamento de conduta pode ser celebrado exclusivamente pelo Ministério Público e para adquirir validade por todo o território nacional deve ser levado à homologação judicial, precedida de audiência pública”. Uma interpretação mais restritiva do cabimento da audiência pública apequenaria o instituto, e não atenderia ao objetivo de promover a checagem da representatividade adequada do substituto processual.

7. Novo regime da suspensão de liminar?

O art. 27, §§ 2º e 3º do PL nº 4.778/2020 parece contemplar um regime distinto para o instituto da suspensão de liminar previsto no art. 4º da Lei nº 8.437/92. De acordo com o PL, “a requerimento do réu, poderá o presidente do tribunal, a que competir o conhecimento do respectivo recurso, suspender a execução da medida concedida em caráter provisório, em decisão fundamentada, da qual caberá agravo para uma das turmas julgadoras, em 10 dias” (§ 2º). O § 3º dispõe, ainda, que “desta decisão caberá recurso especial ou recurso extraordinário, conforme o caso”.

As diferenças para a lei atualmente vigente são evidentes. Antes de tudo, o PL prevê que o “réu” pode formular o pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal, ao tempo em que o art. 4º da Lei nº 8.437/92 é claro em restringir o cabimento da medida ao Ministério Público ou pessoa jurídica de direito público interessada. Ademais, a medida somente se afigura cabível nas ações civis públicas propostas “contra o Pode Público ou seus agentes”.

A lei atual prevê, ainda, que o pedido de suspensão de liminar só cabível “para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, restrição que não aparece no PL, dando margem à interpretação de que seria cabível em qualquer hipótese de decisão desfavorável a qualquer réu.

Muito embora em ambos os instrumentos seja prevista a possibilidade de colegializar a decisão da Presidência por meio da interposição de agravo interno – no prazo de 5 dias pela lei atual e no prazo de 10 dias pelo PL –, os passos seguintes também revelam novas diferenças. De acordo com a Lei nº 8.437/92, apenas na hipótese de o colegiado referendar a decisão objeto da suspensão, caberá novo pedido de suspensão ao presidente do tribunal superior competente para conhecer da matéria. O PL, por outro lado, prevê o cabimento de recurso especial ou extraordinário, independentemente do resultado do julgamento do agravo interno.

O PL, entretanto, é silente quanto à possibilidade de manejo da medida contra sentenças, ao contrário do previsto no art. 4º, § 1º da norma atualmente vigente. Também restou silente quanto à disciplina da relação entre o pedido de suspensão e a interposição de agravo de instrumento (atualmente prevista no art. 4º, § 6º da Lei nº 8.437/92), ou mesmo sobre os efeitos da decisão que concede a suspensão, uma vez que a norma atual prevê que “a suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal” (art. 4º, § 9º da Lei nº 8.437/92).

Não ficou claro, portanto, como será o regime dessa “nova” suspensão de liminar em cotejo com a legislação atual, que não restou revogada pelo PL. Ademais, tendo em vista as considerações já feitas no item 1, tampouco está claro se esse novo regramento seria aplicável também ao mandado de segurança coletivo e ação popular, ou se para estes institutos seria mantido o regramento previsto na Lei nº 8.437/92.

8. Despesas processuais

O art. 35 do PL nº 4.778/2020 estabelece que os regimes de custas e sucumbência nas ações civis públicas deverão seguir as regras previstas no CPC. Isso quer dizer que, se a ação for proposta por associação, esta deverá arcar com as custas iniciais para seu ajuizamento, bem como honorários periciais e demais despesas, além de arcar com o ônus da sucumbência, caso seja derrotada. Sendo a ação proposta por ente público, será aplicável o regramento previsto pelo art. 91 do CPC, quanto às despesas de atos processuais, e art. 85, §§ 3º a 7º do CPC para arbitramento de sucumbência. Na hipótese de a ação ser proposta pelo Ministério Público ou Defensoria Pública, a sucumbência só será devida, de acordo com o parágrafo único do art. 35, se a propositura da ação for considerada “manifestamente infundada”, por decisão unânime.

Muito embora as inovações no regime de despesas processuais tenham recebido críticas[7], entende-se que a alteração desestimulará o ajuizamento de ações aventureiras e tornará o instituto mais confiável. Corrigirá, ainda, a distorção prevista na legislação atual, na qual apenas o réu tem riscos financeiros na ação coletiva. A previsão de riscos para ambas as partes promove a isonomia e não pode ser vista como um óbice ao acesso à justiça, afinal, o acesso de autores coletivos inescrupulosos ao Poder Judiciário, por igual, representa um desserviço. Ademais, sendo o caso, nada obsta a concessão de gratuidade ao autor coletivo.

Sem prejuízo de, futuramente, aprofundar o debate sobre as questões ora destacadas ou de abordar outras tantas que aqui não foram mencionadas – como a questão da prescrição nas ações individuais, as significativas alterações no regime da coisa julgada e a consagração da eficácia nacional das sentenças e tutelas provisórias, o que poria fim ao conflito atualmente existente entre o art. 16 da Lei nº 7.347/1985 e art. 103 do CDC –, conclui-se que o PL nº 4.778/2020 agregará relevantes e necessárias mudanças ao regramento da Ação Civil Pública, muito embora seja necessário o amadurecimento de algumas questões, sobretudo para garantir coerência e integridade com o sistema.

Notas e Referências

[1] https://www.cnj.jus.br/acoes-coletivas-cnj-entrega-ao-presidente-da-camara-anteprojeto-para-aperfeicoar-lei/. Acesso em 21.11.2020.

[2] Gidi, Antonio. O Projeto CNJ de Lei de Ação Civil Pública. Avanços, inutilidades, imprecisões e retrocessos: a decadência das ações coletivas no Brasil. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3724081&download=yes. Acesso em 21.11.2020.

[3] Nesse sentido: SHIMURA, Sérgio. Tutela coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006; e CAVALCANTI, Marcos de Araújo. A Questão Terminológica: ''Ação Civil Pública" ou "Ação Coletiva"?. Revista Dialética de Direito Processual nº 132, p. 76-87.

[4] Nesse sentido, Thais Amoroso Paschoal defende que a representatividade adequada da associação autora tende a “viabilizar a adoção de técnicas coletivas que possam inspirar a adequada tutela coletiva de direitos”. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/enfim-a-tutela-coletiva-pensada-coletivamente-29102020. Acesso em 21.11.2020. 

[5] No mesmo sentido, o art. 15 determina que “Para demonstrar interesse processual, quando da propositura da ação, os legitimados alistados no art. 4º devem demonstrar terem feito, anteriormente, a consulta ao cadastro do Conselho Nacional de Justiça”.

[6] OSNA, Gustavo; FRANCISCO, João Eberhardt; AZEVEDO, Julio Camargo de; CINTRA, Lia Carolina Batista; ASPERTI, Maria Cecilia de Araújo; SOUZA, Michel Roberto Oliveira de. Primeiras impressões dos recentes projetos de ação coletiva. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acao-coletiva-primeiras-impressoes-dos-recentes-projetos-09112020. Acesso em 21.11.2020. Os autores defendem, ainda, que “De um lado, bastaria alguma singela modificação da causa de pedir ou do pedido para evitar a litispendência. De outro, é de se perguntar: qual seria o conteúdo desta certidão? Seria possível aferir de modo efetivo, mediante análise de uma certidão, semelhanças e diferenças entre as demandas? Ademais, trata-se de tarefa que poderia ser realizada pelas serventias, inclusive com utilização de inteligência artificial, sem a necessidade de se impor tal ônus às partes”.

[7] OSNA, Gustavo; FRANCISCO, João Eberhardt; AZEVEDO, Julio Camargo de; CINTRA, Lia Carolina Batista; ASPERTI, Maria Cecilia de Araújo; SOUZA, Michel Roberto Oliveira de. Primeiras impressões dos recentes projetos de ação coletiva (parte II). Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/primeiras-impressoes-dos-recentes-projetos-de-acao-coletiva-parte-ii-19112020. Acesso em 21.11.2020.

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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Uma Faca De Dois Gumes – A Reserva Legal Da Meação No Processo Expropriatório

As inovações trazidas pelo Código de Processo Civil, na busca da concretude da prestação jurisdicional para o recebimento do crédito no processo de execução, podem acarretar também embaraços e dificuldades na efetividade da satisfação do crédito, quer seja pela alienação ou adjudicação; e, como o próprio título do texto diz, ser uma faca de dois gumes e acabar frustrando a proteção legal de que a execução deve ser o menos onerosa ao devedor.

Com a intenção de proteger a meação existente no patrimônio comum por força do regime de bens, quer seja no casamento ou na união estável, e, portanto, pertencente ao cônjuge ou ao companheiro, a lei processual determina a intimação do meeiro, nos processos de execução, aplicável também ao cumprimento de sentença. Com vistas a dar ciência da constrição judicial ocorrida em bem imóvel ou pela penhora que recair sobre direito real neste tipo de bem; e, acrescentado pelo Novo Código Processual (artigo 843 do CPC), esta imposição aplica-se também ao coproprietário, quando este objeto torna-se garantidor da realização da prestação jurisdicional final, para fins de adjudicação ou de alienação, recebendo o bem em pagamento ou auferir dinheiro para quitação do crédito em execução; haja vista que o ato constritivo pode extrapolar a reserva legal, portanto, tornando-se incompatível com o direito de meação assegurado e protegido sobre o referido bem, quando o meeiro não é o responsável pelo débito em execução.

Todavia, apesar do artigo 842 do Código de Processo Civil, tratar apenas do cônjuge, é pacífico o entendimento na doutrina [ii] [iii] e com inúmeras decisões nos Tribunais, de que a regra sobre a intimação da penhora deve ser estendida aos companheiros, em uma correção honrosa feita na falha da redação da norma quando não reconhece expressamente o mesmo direito de proteção ao meeiro da união estável, mesmo sendo novel a Lei Processual.

Fica evidente que esta determinação, no caso de união estável, só será exigida e cumprida se houver prova do conhecimento da união estável pelo credor ou que esteja documentado este fato nos autos, uma vez que a informalidade aceita pela legislação brasileira para o reconhecimento deste tipo de constituição familiar dá margem a terceiro ignorar o status social do contratante.

Atentem-se a outro ponto importante que esta regra específica peca, quando excetua não ser necessária a intimação caso o regime entre os cônjuges seja o da separação absoluta de bens. Simplesmente porque, ao nominar o regime de separação absoluta de bens cria margem a argumentações de que não incluiu o regime de separação obrigatória. O que não se pode aceitar, pois a falha ocorreu por simples inadequação no uso do vocábulo ao nominar o regime.

Quando a nossa legislação civil cria os quatro regimes de bens, a saber: comunhão universal, comunhão parcial, participação final nos aquestos e separação de bens, biparte o regime de separação de bens em duas modalidades: separação convencional e separação legal. A primeira ocorre por liberalidade dos contraentes, quer seja no casamento ou na união estável. Já a segunda é por imposição legal (art. 1.641 do CC), não sendo permitida a escolha, em razão dos nubentes se enquadrarem nas tipificações que o Código Civil descreve nos incisos do artigo 1.523 e do artigo 1.641.

Via de consequência, tanto na separação convencional, como na separação legal de bens fica o credor desobrigado a intimar o meeiro, simplesmente por não existir meação nestas modalidades de regime, quer seja pelo matrimônio ou pela união estável.

E mais, mesmo aqueles bens excluídos do regime de comunhão parcial ou da participação final nos aquestos não estão isentos de constrição judicial para responderem por dívidas contraídas para compras pelo cônjuge, mesmo que a crédito, quando se tratar de coisas necessárias à economia doméstica, em razão da existência da responsabilidade solidária; todavia, não necessita de intimação do proprietário meeiro, haja vista que não existe meação que recaia sobre estes bens excluídos e o que obriga o cônjuge é a natureza da responsabilidade.

Com a finalidade de obter dinheiro com a alienação do bem constrito para pagamento do crédito em execução ou até mesmo o recebimento do bem como forma de pagamento, se faz mesmo necessário dar conhecimento, através da intimação, daquele que tem a metade, quer seja do bem imóvel ou do direito real que recaia sobre o bem imóvel, sendo que a intimação por si só não transmuda a sua posição de terceiro na execução, quando não for responsável pelo débito (art. 842 do CPC).

Agora estamos diante de um impasse que poderá exigir soluções diversas, dependendo da natureza do bem – divisível ou indivisível.

Caso o imóvel seja divisível, em um primeiro momento, este conhecimento possibilita que o meeiro intimado possa opor embargos de terceiro (art. 674, § 2º, inciso I) [iv] para resguardar e proteger a sua cota, quando não respeitada, visto não ser parte na ação de execução (art. 779, inciso I do CPC). E o papel dos embargos neste caso visa desconstituir o ato constritivo da execução, podendo “acidentalmente” extingui-la. O que cria a participação do cônjuge na expropriação do bem, sendo reconhecido como um litisconsórcio obrigatório e ulterior (art. 114, 1ª parte do CPC), mas não em virtude da responsabilidade pela obrigação exequenda, mas sim pela imposição da outorga conjugal para atos de disposição ditada pela lei material [v] e reconhecida pela lei processual.

E, caso outro, se o bem imóvel for indivisível, o correspondente de sua meação lhe será entregue com o produto auferido pela alienação do bem (art. 843 do CPC), não necessitando da interposição de embargos, uma vez que a lei já cria os tramites e limites para o recebimento do valor da reserva legal.

Entretanto, se o cônjuge tiver responsabilidade secundária, respondendo sua meação pela dívida, poderá interpor embargos à execução para discutir o título cobrado, o que por via de consequência poderá atingir a penhora de sua meação; e também não impede os embargos de terceiro, em razão dos argumentos dispendidos nos da execução.

Chegamos ao ponto nefrálgico da questão proposta.

O artigo 843 do citado Código determina que se a penhora incidir sobre bem indivisível, será assegurado ao meeiro o direito de receber o valor de sua meação, tanto do coproprietário (novidade do CPC de 2015) ou do cônjuge que não responde pela execução, e “recairá sobre o produto da alienação do bem”. Traduzindo em miúdos: arrematado o bem, será separado o valor da meação do produto auferido, e, no caso, sendo relação de conjugalidade este valor é o corresponde a cinquenta por cento (50%), garantindo assim o recebimento da sua meação. Posto que, ao coproprietário este percentual poderá variar.

Denominada como reserva da meação, esta regra possui dois objetivos.

O primeiro é garantir que a parte do bem indivisível e penhorado pertencente ao cônjuge meeiro não responda pela dívida que não é sua; e como segundo objetivo, evita-se e previne a interposição despicienda de embargos de terceiro (art. 674 do CPC), uma vez que o meeiro no caso é terceiro no processo de execução. Situação já prevista no artigo 655-B do CPC de 73, em razão da modificação trazida pela Lei nº. 11.382, de 2006; a vista de que, os embargos se tornaram desnecessários, já que está assegurado ao meeiro o recebimento do valor de sua meação retirada do resultado da expropriação do bem; e assim, todo o procedimento se torna mais célere e eficaz.

Todavia, em uma primeira análise, não podemos fazer vista grossa ao fato de que, mesmo cuidando para que a expropriação não se concretize por preço inferior ao valor da cota parte do meeiro levando-se em conta a avaliação; ou seja, a expropriação deverá ter, no mínimo, como resultado o valor da metade da avaliação, em razão da reserva da meação, implica em concluir que a alienação será infrutífera para o credor. Mas também poderá ser para o devedor, pois se um terceiro arrematar pelo valor mínimo permitido (o valor da meação), esta importância será entregue ao meeiro e por via de consequência volta ao patrimônio comum do casal, por força do regime de bens, e como o credor não recebeu ainda, reiniciará um novo procedimento para recebimento do crédito, com uma nova penhora, e logicamente uma nova alienação, tornando-se cíclico, até que esta repetição ponha a perder todo o patrimônio do devedor ou reste um valor ínfimo.

Razão pela qual o juiz deverá estar atento ao que dispõe o § 1º, do artigo 903, inciso I, do Digesto Processual atual, que invalida a arrematação que contenha vício; e, certamente, caso efetivada a expropriação por preço aquém do valor da meação levando em conta e sendo considerado o valor da avaliação, tornar-se-ia impraticável a aplicação da reserva da meação legalmente assegurada. Em verdade, especificamente neste caso, não precisa de estipulação judicial para o que seja o preço mínimo para a efetivação da arrematação (art. 891 do CPC), posto que a lei já engessa a realização da expropriação ao limite da reserva da meação, calculada sobre a avaliação.

Além do que, não podemos esquecer dos ditames do artigo 836, que previamente não permite que se realize a penhora se o produto resultante for totalmente comprometido com o pagamento das custas do processo de execução.

A única possibilidade para que cesse o ciclo que pode se reiniciar, frente a expropriação do bem no limite da avaliação, é a adjudicação; pois se houver a arrematação por terceiro no limite da meação, nada restará para o credor, e como já explicado acima, reiniciará o processo de nova penhora. Notadamente, se o produto da meação for aplicado em bens imóveis ou depositado na justiça compondo novamente o patrimônio comum do casal. Pois não podemos ignorar que o instituto da reserva da meação não tem o condão, ao menos com previsão expressa na lei, de excluir do patrimônio comum do casal o resultado recebido da expropriação, uma vez recebido pelo meeiro volta ao patrimônio comum do casal, e por força do regime de bens torna-se possível nova penhora sobre a meação do cônjuge ainda devedor.

Em verdade, a reserva da meação fez com que o meeiro recebesse a sua cota parte; mas, esta cota parte obtida com a expropriação caso retorne ao patrimônio comum do casal, subdivide entre eles. E mais uma vez podendo ser penhorado e novamente utilizado o instituto da reserva da meação, até que nada mais reste. O que podemos denominar de “ação diabólica”.

Podemos encontrar estudos que demonstram a genial solução para o malfadado impasse, já que não existe expressa previsão legal. [vi] Ou seja, a meação liberada tornar-se-ia incomunicável para fins de nova constrição judicial, desde que o meeiro não se torne responsável solidário pela dívida cobrada. Porquanto, se assim não for, os embargos de terceiro restariam infrutíferos e ocos em sua função processual de proteção legal da reserva da meação; desta feita, e por via de conclusão lógica, a eficácia da sentença proferida nestes embargos deve ser projetada para caracterizar a meação como bem incomunicável para aquele casal e para aquela dívida, sob pena de não haver sido prestada, com eficácia, a jurisdição que a lei diz assegurar ao meeiro, frente ao direito de sua reserva legal.

O Papel Do Advogado Na Política De Precedentes Judiciais

1. PROLEGÔMENOS ESSENCIAIS AO TEMA

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe em si uma carta principiológica que extrapola o capítulo específico das normas fundamentais de processo (arts. 1º ao 12). É assim que temos o artigo 926 do diploma um verdadeiro implementador do princípio da formação do microssistema de precedentes judiciais no direito brasileiro. Em sendo norma principiológica, possui ao seu dispor outras normas que colaborem para o seu perfazimento.

Nesse sentido, o art. 926 do CPC dispõe: “ Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.”

Pela uniformização, pretende-se a segurança jurídica, com a perpetuação do princípio da isonomia e a previsibilidade de julgamentos com economia processual, que trazem a otimização do processo/celeridade.

Não há como falar-se em integridade da decisão sem se referir a Ronald Dworkin, ainda mais em se tratando de um instituto principiológico. O autor americano construiu uma Teoria da Integridade [3] , dividindo-a em dois patamares: um legislativo, onde os legisladores devem produzir leis coerentes e um judicial, onde os juízes devem julgar com coerência moral sendo que cada caso só traz em si a possibilidade de uma única decisão que seja justa, e esta decisão seria dada com base na integridade, aplicada pelo juiz Hércules[4]. Sobre a coerência, tem-se a expressão da força institucional dos tribunais, que passa a ter dispositivos processuais[5] para subordinar suas instâncias inferiores ao cumprimento das decisões superiores internas. Com essa tríade de estabilidade, integridade e coerência, a uniformização deixa de ser recomendação e passa a ser política [6].

Inevitável não se estranhar esse dispositivo dentro de um sistema tradicionalmente afeto ao Civil Law, como o brasileiro, de base romana. A bem da verdade, paulatinamente, o Brasil vem importando elementos do Common Law, merecendo destaque as súmulas vinculantes, a Emenda Constitucional 45/2004, a política dos recursos repetitivos e por fim o coroamento da política de formação de precedentes trazida no CPC/15.

Mas, não há que se falar em uma migração de sistemas, mas nem um sistema híbrido, portanto, e apto a permitir o entendimento em que as decisões, não apenas em controle de constitucionalidade mas em todas as matérias [7], vinculam o órgão prolator às suas decisões (stare decisis[8] horizontal) e os órgãos hierarquicamente inferiores às decisões dos órgãos superiores (stare decisis vertical). Apesar de naturalmente pertencente ao Common Law, já se universalizou em vários outros sistemas mundialmente, o Brasil é apenas mais um exemplo.

Por seu caráter de fonte formal (fontes na legislação processual), os precedentes, invocam sua aplicação normativa e vinculante, representando o abandono do caráter meramente persuasivo da jurisprudência[9]. Conforme Taruffo[10],

O precedente fornece uma regra (universalizável, como já mencionado), que pode ser aplicada como um critério para a decisão no próximo caso concreto em função da identidade ou – como ocorre normalmente – da analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso.

Sendo os precedentes decisões tomadas em caso concreto que se presta a servir de regra para casos posteriores idênticos, é importante observar que a potencialidade da universalização da racionalidade das decisões (ratio decidendi) é que garante a uniformidade e continuidade na interpretação e aplicação do direito.

Na estrutura do precedente, segundo Peixoto[11] a "ratio decidendi é o elemento vinculante do precedente relevante para a solução das questões do caso concreto e o obiter dictum está relacionado com elementos desnecessários para resolução do caso concreto".

Assim, é apenas a ratio decidendi que compõe o elemento vinculante do precedente, pois é sua essência, seu “fundamento determinante”[12], pois o obiter dictum é o que abunda na decisão, não lhe sendo essencial, mas a “coisa dita ocasionalmente. Em sentido jurídico seria a expressão de uma opinião em matéria de direito, dada por um juiz na corte, mas não essencial à sua decisão, e, portanto, sem imperatividade vinculante.[13]”

Dito isso, é necessário não perder de vista que uma jurisprudência estável, íntegra e coerente[14] compatível com o Estado democrático de Direito e com a interpretação constitucionalizada da mesma, só será apta a formar precedentes se os argumentos analisados forem expostos a amplo contraditório, conforme enunciados n. 2, 460 e 619 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC).

O amplo contraditório será o elemento garante de que os fundamentos determinantes da decisão são efetivamente suficientes a dirimir a questão jurídica, material ou processual, logo, quanto mais amplas a participação e a oportunidade de influência, maiores as chances de universalização de sua aplicação, atendendo ao princípio da isonomia e da previsibilidade.

Logo, não há que se falar em decisão injusta pela falta de acesso pleno à justiça em causas decididas com base em precedentes, posto que é condição de validade nesses casos justamente o exercício do princípio do contraditório. E, seguindo nessa linha, passemos à análise das possibilidades práticas da interação do advogado na construção cooperativa desse processo.

2. OPORTUNIDADES PRÁTICAS DE PARTICIPAÇÃO ATIVA DO ADVOGADO NA POLÍTICA DE PRECEDENTES JUDICIAIS

Entre as críticas ao sistema de precedentes, temos a que levanta o fato de que o julgamento com base em caso anterior semelhante fere o acesso pleno à Justiça, pelo determinismo que isso acarreta.

Selecionamos algumas oportunidades que o advogado tem para interagir cooperativamente nesse sistema, conforme o case em jurisdição, são elas:

a) Intervenção de terceiro no caso paradigmático

Imaginável a angústia do advogado que tem seu caso sobrestado ao aguardo de julgamento do case paradigmático, que definirá a sorte de seu cliente. Dentre as preocupações é resistente a referente ao zelo e preparo do colega que patrocina o paradigmático.

Pensando nisso, alguns autores sugerem que nessa hipótese caiba a intervenção de terceiros para garantir o acesso à Justiça de todos os envolvidos.

Conforme Goldschmidt[15], há interesse jurídico em: Hipóteses em que a força da coisa julgada da sentença deve estender-se ao terceiro; Casos em que a execução da sentença deva fazer-se contra o terceiro; Casos em que a sentença deve produzir efeitos acessórios perante o terceiro; Casos em que a sentença deve produzir efeitos probatórios na relação existente entre o terceiro e o adversário da parte assistida.

Quanto ao procedimento, há de seguir-se os da assistência, constante dos artigos 119 e 120, do CPC/15.[16]

Para Arenhart[17],

Assim, no modelo instituído pelo Código de Processo Civil de 2015, parece certo que das decisões tomadas em incidentes de assunção de competência, em incidentes de resolução de demandas repetitivas ou em outros instrumentos dos quais possam resultar decisões vinculantes devem poder participar – e, evidentemente, quando cabível, também recorrer – não apenas as partes e os terceiros interessados, mas também esses terceiros que eventualmente sofrerão as consequências da tese jurídica fixada.

Além da assistência, há ainda a possibilidade de ingresso do interessado no processo paradigmático através da figura do amicus curiae, com base no art. 138, do CPC/15[18]. Vale registro do Enunciado do FPPC 394.

b) Distinguishing

Técnica de distinção entre o precedente e o caso concreto em julgamento demonstrada pelas particularidades existentes que permitem excepcionar tese firmada pela jurisprudência, restringindo-se ou afastando sua aplicabilidade.” [19]

A técnica da distinção não invalida o precedente, mas dissocia-o do caso analisado, dando liberdade para que se viva um procedimento próprio e amplo, sem o determinismo do seguimento vinculante à decisão do caso paradigmático. Consiste no confrontamento entre o caso paradigmático e o caso concreto posto à uniformização.

É pelo fato que pode se conseguir quebrar a aplicação do precedente, que é firmado pelo texto, é discurso! O próprio art. 926, § 2o do CPC/15 prescreve: “Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.” (GN)

Conforme Peixoto[20],

Quando um dos sujeitos processuais argumenta com base em um precedente que, de acordo com ele, aplica-se ao caso concreto, deverá demonstrar a similitude fática dos casos. À parte contrária, por sua vez, caso discorde, deverá demonstrar que existem fatos relevante que impedem a sua aplicação

Há ainda menção no próprio CPC/15, no tocante à falta de fundamentação do pronunciamento do juiz, no rol do “art. 489, § 1° VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

Sobre o procedimento para a distinção no CPC/15, pode-se fixar o seguinte fluxograma:

 

c) Overruling

“É a técnica que possibilita a superação do precedente que não se encontra mais em relação de coerência com o ordenamento, perdendo sua força vinculante por decisão atribuída ao tribunal que o firmou anteriormente.”[21]

overruling consiste na superação/revogação do precedente, tendo como fundamento a melhoria da eficácia do precedente que a princípio tem essa vantagem de maior mobilidade em relação à lei.

Não é um procedimento onde haja tanto protagonismo do advogado como o da distinção, pois funciona num nível mais macro, podendo ser precedida de audiências públicas com amicus curiae etc[22].

Perfaz o dever de coerência dos tribunais no seu dever de autorreferência.

3. À GUISA DE UMA CONCLUSÃO

Por tudo o que aqui foi levantado, tem-se que de fato é desafiadora a missão do advogado criado no civil law exercer na práxis sua missão num instituto ainda relativamente novo e desconhecido, posto que importado do sistema do common law.

A despeito do caráter vinculante dos precedentes, a possibilidade de sua superação (overruling) ou distinção (distinguishing) são elementos que propiciarão ainda a garantia efetiva da igualdade e da segurança jurídica. A igualdade, ao proporcionar a possibilidade de influência daquele que não teve sua tese apreciada e a segurança jurídica, ao permitir "manifestação prévia das partes, o magistrado terá maiores informações para a construção de sua decisão."[23]

Bem nos aponta Frederico Koehler, "viola a igualdade o comportamento do tribunal que aplica um precedente a uma situação substancialmente distinta daquela que gerou a ratio decidendi."[24]

Ao advogado cabe atentar-se para não levar seu cliente a uma aventura jurídica.

Conjugando-se os arts. 9º, II e 311, parágrafo único e inciso II, pode o juiz julgar liminarmente improcedente a ação, contrariamente à leitura conjunta da redação do art. 10 do CPC e do art. 489, parágrafo 1º, V.

Noutro giro, estrategicamente, pode o advogado lograr êxito em obter uma tutela satisfativa com base no mesmo art.311, da mesma maneira, liminarmente.

Cabe também ao advogado demonstrar que seu processo é distinto do precedente e, mais ainda, sentir se o momento é apto a questionar se de fato já não é hora de superar o precedente em questão[25]. Estes comportamentos irão exigir do advogado que este esteja preparado a fornecer os instrumentais necessários para fomentar, para Zaneti[26], “uma argumentação qualificada” e auxiliar o julgador em seu ônus argumentativo de modo a abalar a convicção que este tenha e possa vir a cogitar não aplicar determinado precedente (distinguindo ou superando-o).

Por óbvio que os precedentes são matéria das Cortes, conforme Taruffo[27], mas cabe ao advogado atento e diligente estar preparado a fornecer matéria capaz de enfrentar o forte arcabouço do ônus argumentativo, segundo Zaneti[28],  de modo a diferenciar seu caso do precedente  em questão.

Segundo Marinoni, cabe ao advogado "demonstrar que a questão sob julgamento, apesar de formalmente parecer igual, tem particularidades que a diferenciam, impedindo a aplicação do precedente."[29] Igual assertiva se extrai do enunciado n.9 da ENFAM.

A fundamentação em um precedente pode levar, portanto, a uma improcedência liminar (art.332), na obtenção da tutela antecipada da evidência (art.311, II) independente do trânsito em julgado da decisão paradigma (enunciado 31 da ENFAM), permitir o provimento do Recurso já pelo Relator ou ainda obstá-lo (art.932, IV e V), dispensar o reexame necessário (art.496,§4º) e permitir ação rescisória de título executivo inexequível ou de obrigação inexigível (art.525, §15 e 535, §§ 5º e 8º), de modo a não só reduzir o tempo de duração do processo como torná-lo mais eficiente.

A responsabilidade dos advogados em uma constante atualização só aumenta. Estrategicamente, conhecer os precedentes encontra utilidade na aceleração da resolução de um conflito tanto quanto para evitar um processo fadado ao fracasso, natimorto por assim dizer.

Notas e Referências:

  • DWORKIN, Ronald. O império do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
  • O semideus que se destaca dos demais mortais exatamente pelos talentos extraordinários que o põem em situação de decidir os casos.
  • CPC – Art. 927
  • Esse dever logístico dos tribunais é ainda regulado pelo CNJ, Resolução n. 235 de 2016 CNJ, alterada pela 286 de 2019.
  • 927 (STF), 927, IV e V (STJ), 927,V e 332, IV(Tribunais de Justiça dos Estados).
  • stare decisis, “mantenha-se o decidido, é a regra básica para que se possa falar de um sistema de precedentes racionalmente vinculante.” (ZANETI JR, Hermes. DOS PROCESSOS NOS TRIBUNAIS E DOS MEIOS DE IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS.IN: Comentários ao novo Código de Processo Civil/coord: Antonio do Passo Cabral, Ronaldo Cramer. Ed:2ª rev.,atual. e ampl.Rio de Janeiro: Forense, 2016.pág:926.
  • ZANETI JR, Hermes. DOS PROCESSOS NOS TRIBUNAIS E DOS MEIOS DE IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS.IN: Comentários ao novo Código de Processo Civil/coord: Antonio do Passo Cabral, Ronaldo Cramer. Ed:2ª rev.,atual. e ampl.Rio de Janeiro: Forense, 2016. pág:1311.
  • TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Disponível em: http://civilistica.com/precedente-e-giurisprudenza/ . Acesso em: 20/10/2020
  • PEIXOTO, Ravi. A superação prospectiva de precedentes:em busca dos requisitos processuais. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos.PROCESSO EM JORNADAS/ coord: Paulo Henrique dos Santos Lucon, Ricardo Aprigliano, João Paulo Hecker da Silva, Ronaldo Vasconcelos e André Orthmann.Salvador:Ed.Juspodivm,2016.pág.811.
  • Glossário STJ.
  • Glossário STJ.
  • CPC/15, Art. 926, caput.
  • (Apud ARENHART, Sérgio Cruz. https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/93954/2016_arenhart_sergio_terceiros_decisoes.pdf?sequence=1&isAllowed=y). Consultado em 02 de outubro de 2020.
  • CPC – Art. 119 e 120.
  • ARENHART,   Sérgio Cruz. https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/93954/2016_arenhart_sergio_terceiros_decisoes.pdf?sequence=1&isAllowed=y). Consultado em 02 de outubro de 2020.
  • CPC – Art. 138.
  • Glossário STJ.
  • PEIXOTO, 2016.
  • Glossário STJ.
  • CPC – Art 927, § 2o.
  • PEIXOTO, Ravi.A superação prospectiva de precedentes:em busca dos requisitos processuais. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos. PROCESSO EM JORNADAS/ coord: Paulo Henrique dos Santos Lucon, Ricardo Aprigliano, João Paulo Hecker da Silva, Ronaldo Vasconcelos e André Orthmann.Salvador:Ed.Juspodivm,2016.pág.821.
  • KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino.O sistema de precedentes vinculantes e o incremento da eficiência na prestação jurisdicional: aplicar a ratio decidendi sem rediscuti-la. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos.PROCESSO EM JORNADAS/ coord: Paulo Henrique dos Santos Lucon, Ricardo Aprigliano, João Paulo Hecker da Silva, Ronaldo Vasconcelos e André Orthmann.Salvador:Ed.Juspodivm,2016.pág.811.
  • “O afastamento da regra de universalização deve ser feito apenas excepcionalmente,e tem que ser fortemente justificado”ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador:Juspodivm, 2015, pág.353.
  • ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador:Juspodivm, 2015, pág.353.
  • apud ZANETI JR., Hermes. DOS PROCESSOS NOS TRIBUNAIS E DOS MEIOS DE IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS.IN: Comentários ao novo Código de Processo Civil/coord: Antonio do Passo Cabral, Ronaldo Cramer. Ed:2ª rev.,atual. e ampl.Rio de Janeiro: Forense, 2016. pág:1315.
  • ZANETI JR, Hermes. DOS PROCESSOS NOS TRIBUNAIS E DOS MEIOS DE IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS.IN: Comentários ao novo Código de Processo Civil/coord: Antonio do Passo Cabral, Ronaldo Cramer. Ed:2ª rev.,atual. e ampl.Rio de Janeiro: Forense, 2016. pág:1311.
  • MARINONI, Luiz Guilherme.Consequências da equivocada aproximação do “IRDR” ao sistema de precedentes.In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos.PROCESSO EM JORNADAS/ coord: Paulo Henrique dos Santos Lucon, Ricardo Aprigliano, João Paulo Hecker da Silva, Ronaldo Vasconcelos e André Orthmann.Salvador:Ed.Juspodivm,2016.pág.693. 

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Sobre O Saneamento Compartilhado No Processo Civil Brasileiro (Ou Em Busca Da Ilha Desconhecida)

É de José Saramago a autoria da obra “O conto da ilha desconhecida”, com publicação original em 1997. Trata-se de produção literária em que o escritor português apresenta uma narrativa alegórica sobre a vida, descreve a capacidade humana de obstinação e, em especial, enfatiza a constante procura pelo porvir.

No conto, certo homem pede um barco ao rei para viajar a uma ilha desconhecida, pedido que é respondido com uma indagação sobre a confirmação da existência da ilha, já que o homem diz ao soberano, paradoxalmente, ser ela desconhecida; o navegante, então, justifica o interesse pela viagem no fato de ser impossível que não exista uma ilha desconhecida. Adiante, em certa passagem, ele assegura: todas as ilhas são desconhecidas até que alguém desembarque nelas.[i]

Transportando a atenção para o processo, não há dificuldade em notar que o instituto do saneamento processual recebeu novas luzes no sistema processual civil, modificando-se profundamente. O curioso, e responsável por relacionar metaforicamente o tema do saneamento ao referido conto lusitano, está na circunstância de o CPC/39 ter sido considerado revolucionário naquele momento por ter instituído o chamado despacho saneador. Não se sabia que décadas mais tarde o que parecia ser uma previsão demarcatória de terreno seguro seria apresentada a novas explorações.

Passados cerca de 75 anos, com a edição de outro CPC nesse ínterim, o desconhecido se descortinou mais uma vez, movendo a atividade saneadora para renovadas porções de terras, por meio do então novo – agora sem a adjetivação – Código de Processo Civil. O destino desse itinerário passou a ser o saneamento compartilhado, cuja instituição legislativa e repercussões no processo civil merecem cuidadoso exame. Antes de analisá-las, não podemos nos furtar da apresentação de alguns aspectos do panorama geral do saneamento.

O exercício da atividade saneadora acompanha o processo do começo ao fim, não sendo um acontecimento exclusivo do que se convencionou chamar de fase de saneamento. Isto é, a prática de atos de regularização processual se concentra, mas não se esgota, nessa etapa do processo. Além do que, a divisão do processo em fases atende a objetivo metodológico, não representando uma delimitação estanque, porquanto se sabe que nem sempre o processo passará por todas as etapas ou sequência de atos, podendo o percurso legislativo se revelar inútil ou desnecessário.

Vale registrar que a cisão dos momentos de análise das questões prévias e de mérito no processo é um problema clássico, com raízes romanas. Todavia, a decisão de saneamento apenas teve seu surgimento no século XX, tendo sido disciplinada pela primeira vez em Portugal em 1907, sob o título de despacho regulador, assumindo depois a denominação de despacho saneador. Com nítida influência lusitana, o processo civil brasileiro acolheu o instituto nos artigos 293 e 294 do CPC/39, sem deixar de apresentar contribuições próprias ao seu regramento, naquela oportunidade e até hoje.

Em obra clássica datada de 1947, Enrico Tullio Liebman chegou a afirmar que o despacho saneador representava contribuição original dos legisladores portugueses e brasileiros ao desenvolvimento e progresso do processo civil, ao passo que destinou elogios para a sua disciplina no Brasil, por favorecer o caráter público do processo, a oralidade e a pronta eliminação de obstáculos ao exame do mérito.[ii]

É de amplo conhecimento que Galeno Lacerda contribuiu decisivamente para a difusão do estudo do tema em território nacional, tendo o autor relacionado o despacho saneador ao papel do juiz em corrigir vícios processuais e assim, devido à sua investidura e exercício do poder ordinatório, decidir pela negativa ou admissão da continuação da causa[iii]. O instituto muito avançou desde então, foi regulado pelo art. 331 do CPC/73 e hoje se encontra no art. 357 do CPC vigente.

Na realidade, o termo saneamento aparece em oito oportunidades no Código. Uma está no título do Capítulo IX, vinculado ao art. 347, que trata das providências preliminares; quatro delas são referentes ao art. 357, no Capítulo X, sobre o julgamento conforme o estado do processo; e as demais constam em dispositivos esparsos, tais como o art. 139, IX, art. 329, II e art. 377, nem sempre com sentidos unívocos. De todo modo, o cerne da disciplina legal do saneamento repousa sobre o art. 357 e seus três primeiros parágrafos.

Agora passa-se à estruturação da decisão de saneamento. Sabe-se que uma vez encerrado o prazo de contestação, com ou sem resposta, inaugura-se a fase saneadora ou ordinatória. A essa altura, deve o julgador verificar se é preciso adotar alguma das providências preliminares (art. 347 a 353), para que então passe ao julgamento conforme o estado do processo (art. 354 a 357), momento em que será decidido qual rumo o processo deve seguir: se é caso de sua extinção; se é cabível o julgamento antecipado de mérito; ou se, sendo negativas as respostas anteriores, ou ocorridas parcialmente, o saneamento e a organização do processo se impõem, exprimindo a necessidade da causa alcançar a fase de produção de provas, até finalmente chegar ao julgamento do mérito.

Conforme sinalizado, a atividade saneadora está presente em uma das providências preliminares (art. 352) e é uma das possíveis rotas do julgamento conforme o estado do processo (art. 357), estando no último a maior contribuição ao tema. Na decisão de saneamento e organização do processo, o juiz deve, ao menos: a) resolver questões processuais pendentes; b) definir as questões de fato e de direito que orientarão a atividade instrutória; c) especificar os meios de prova admitidos; d) distribuir o ônus de prova; e) e, se necessário, designar audiência de instrução. Também é importante perceber que nessa fase as partes possuem o direito de pedir esclarecimentos ou ajustes (art. 357, § 1º); podem apresentar delimitação consensual das questões para homologação judicial (art. 357, § 2º); e, ainda, há previsão da realização de audiência específica de saneamento (art. 357, § 3º), a qual não se limita a causas complexas[iv], sendo obrigatória para essas e facultativa nas demais.

Desde a sua origem, ainda sob a égide do Código de 1939, vozes na doutrina processual tecem críticas à utilização da nomenclatura despacho saneador,[v] seja porque não se trata de despacho e sim de verdadeira decisão, seja porque tecnicamente esse pronunciamento não se presta a corrigir falhas do processo, saneando-o, mas se destina a declarar que não há vícios a serem eliminados ou a dizer que já foram corrigidos, e, a partir disso, adotar as providências necessárias ao prosseguimento do feito.

De fato, a terminologia tradicional do instituto é inapropriada e contribui para a sua desvalorização, já que transmite a impressão de que a decisão de saneamento seria mero ato de impulso judicial, o que justificaria que o juiz e as partes destinassem a ele pouca importância, não se preocupando com o momento de sua realização, ou mesmo com o seu conteúdo e desdobramentos.

A referência ao termo despacho saneador nos tempos atuais só se justifica por razões históricas ou comparatistas. Eventual insistência pelo uso indiscriminado da nomenclatura clássica traz significativos problemas, não sendo simples questão de preferência por esse ou aquele rótulo. Por isso, apesar do tributo aos estudos originários, defende-se ser apropriado chamar de decisão de saneamento e organização do processo, expressão acolhida pelo art. 357, em sintonia com a relevância do instituto na ordem processual civil.[vi]

Como se sabe, em uma visão tradicional a fase saneadora ou ordinatória é compreendida como aquela em que o magistrado põe ordem no processo, sendo vista como etapa processual de características marcadamente inquisitivas, com preponderância à prática de atos do juiz, em contraste com a fase postulatória, em que as partes atuam com maior relevo.[vii] Entretanto, o saneamento sofre as influências das normas fundamentais processuais e do modelo de processo civil contemporâneo, impedindo que continue a ser tratado como uma tarefa individual do juiz.

Partindo de uma acepção técnica, diz-se que a atividade saneadora compreende em um de seus quadrantes a correção de defeitos, os quais possam dificultar ou impedir a continuidade do processo, comprometendo a solução regular da controvérsia.

Sem prejuízo do acerto e utilidade disso, pode-se também afirmar, dessa vez com auxílio de expressão coloquial, que sanear equivale a arrumar a casa, tarefa realizada na expectativa de que os cômodos, anfitriões e convidados estejam prontos para um importante acontecimento que se aproxima – na vida, alguma celebração; no processo, o julgamento de mérito. Em relação a esse segundo sentido, é importante saber que o julgador não mora só, ao contrário, compartilha acomodações com os interessados, em indispensável convivência.

Nesse momento, vem à tona uma indagação: o que se deve entender por saneamento compartilhado? A locução apresenta variações na doutrina.[viii] Para ilustrar, observa-se que há autores que utilizam a expressão ao tratar da delimitação consensual das questões[ix] (art. 357, § 2º), enquanto outros associam à realização da audiência de saneamento e organização[x] (art. 357, § 3º).

Aqui, pretende-se atribuir significado amplo, abrangendo as hipóteses dos referidos parágrafos do art. 357, assim como a do seu caput, o que representa dizer que o atributo “compartilhado” está para todo saneamento realizado em obediência ao modelo cooperativo de processo, de maneira dialogada, simétrica e colaborativa entre o juiz e as partes, como de resto deve ser o processo. Saneamento compartilhado é saneamento cooperado.

Essa interpretação  permite identificar níveis, graus ou intensidades de influência das partes na etapa saneadora, dividindo-a em saneamento compartilhado ordinário, quando feito por escrito pelo juiz, a partir do diálogo e em cooperação com as partes (art. 357, caput), e saneamento compartilhado qualificado, quando realizado com celebração de negócios processuais pelas partes ou delas com o magistrado, com a decisão saneadora por escrito ou construída oralmente em audiência designada para esse fim (art. 357, §§ 2º e 3º).

Na linha do que sustenta Carolina Uzeda, não é admissível, no atual estágio de desenvolvimento do processo civil brasileiro, que a decisão de saneamento seja produzida de maneira isolada pelo juiz. Ainda quando o saneamento for por escrito e a partir de iniciativa do julgador, a cooperação e o diálogo se mantêm, inclusive sendo essa a razão para a existência do direito das partes a pedirem esclarecimentos ou ajustes nessa etapa. Consoante frisa a autora, muda-se o método da atividade, não as premissas.[xi]

O contraditório é a força motriz do processo constitucionalmente orientado, sendo de onde o último extrai seu caráter dialético.[xii] Não sem razão, sobressai a relevância do contraditório enquanto influência reflexiva e dever colaborativo,[xiii] em uma perspectiva elástica e reforçada, de modo a permitir que as partes influam diretamente no resultado do processo e, para tanto, condicionem o seu desenvolvimento.

Para citar alguns exemplos, é o que se vê na exigência de consulta prévia às partes ao longo do processo, na ampla oportunidade de debate e produção probatória, no dever de fundamentação analítica das decisões judiciais, no prestígio à celebração de negócios processuais e, igualmente, no fortalecimento da decisão de saneamento.[xiv]

O legislador reformista apostou na função organizatória do processo. Ao fazer isso, não desconsiderou a importância do diálogo e colaboração entre os diversos sujeitos envolvidos, tomando aqueles, na realidade, como pressupostos, em atenção ao compromisso com a condução e julgamento da causa em tempo razoável, de modo justo e efetivo, anunciado desde os artigos 4º e 6º do Código.

É relevante destacar que a modernização do sistema de justiça civil e a racionalização do processo são paradigmas que defendem o abandono a uma visão estática do fenômeno processual, de inflexível divisão de tarefas entre o juiz e as partes, em favor da transição a uma concepção dinâmica e colaborativa, a partir da utilização de variadas ferramentas de gestão do procedimento, de sorte que haja o equilíbrio entre a eficiência da tutela jurisdicional e o respeito às garantias processuais – problema clássico, internacional e de difícil solução, tal como registrado por Loïc Cadiet.[xv]

Nessa esteira, não se pode perder de vista que o reforço ao saneamento favorece a otimização dos rumos do processo, gerando a economia de tempo, recursos e o aumento da qualidade da tutela jurisdicional, ao permitir, por exemplo, a resolução de questões processuais logo após a postulação, evitar a produção desnecessária de provas sobre pontos irrelevantes ou já demonstrados por outros meios, assim como desincentivar manifestações inócuas das partes (como o protesto genérico) e do juiz (tal como a designação de audiência sem delimitação das diretrizes probatórias, de maneira genérica e irrefletida), que nada ou pouco contribuem com a fase instrutória.

A etapa de saneamento é momento propício ao exercício da consensualidade, ora sobre o objeto do processo, com o uso de métodos autocompositivos, atendendo aos propósitos do art. 3º, §§ 2º e 3º, ocasião em que haverá a antecipação da fase decisória; ora em relação ao procedimento ou a situações jurídicas processuais titularizadas pelas partes, mediante a celebração de negócios processuais, em especial a calendarização (art. 191). É claro que também é desejável que haja a combinação desses instrumentos, por meio da inserção de cláusulas processuais em transações, parciais ou totais, possivelmente surgidas nessa etapa. Essa conjugação é benéfica por potencializar o campo de alcance do autorregramento da vontade, ajustando o desfecho da causa às especificidades do direito material e do conflito, e aos interesses dos litigantes.

A dispensa ou frustração da tentativa de resolução consensual na audiência do art. 334, ainda na fase postulatória, não pode ser um óbice à renovação de tais tratativas quando da realização da etapa saneadora. Primeiro porque a solução consensual pode ser alcançada a qualquer tempo no processo, abrangendo naturalmente o saneamento. Segundo porque a decisão saneadora construída em ambiente cooperativo, tal como planejada pelo Código, intensifica o acesso à informação e as interações entre as partes, bem como delimita com maior precisão o objeto em disputa, especialmente as expectativas de autor e réu sobre a atividade probatória – estimulando, nessa quadra, a adoção de posturas consensuais.

A despeito de tudo que foi ressaltado, percebe-se que a decisão de saneamento e organização do processo não vem recebendo a atenção devida na justiça civil, não sendo rara a existência de pronunciamentos genéricos ou tardios, em clara violação às diretrizes do art. 357, isso quando a etapa saneadora não é suprimida, nunca vindo a efetivamente ocorrer. Esse cenário também envolve as partes e seus procuradores, já que, como indicado, mesmo o saneamento feito de ofício pelo magistrado deve ocorrer em cooperação. Sabendo disso, é crucial que os interessados se atentem a essa etapa desde o início da causa (na petição inicial, contestação ou em petições simples), formulando requerimentos para a influência no conteúdo e momento de realização, além do manejo dos recursos cabíveis para o controle de sua regularidade e completude, quando e se necessário for.  

Afinal, segundo Barbosa Moreira noticiou há mais de trinta anos, o êxito do método concentrado de saneamento depende da intervenção humana, pouco importando o requinte da disciplina legislativa caso a atmosfera não seja favorável.[xvi] A preparação técnica e a mobilização de esforços dos atores jurídicos em prol da utilização adequada do saneamento (ainda) são itens de primeira ordem para transformar a abstração em realidade.

Que diante de ilhas desconhecidas, seja no processo ou na literatura, icemos as velas, sem nos acanhar pelo inexplorado.

Notas e Referências

[i] SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. Ilustrações de Juergen Cannes. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2016, versão eletrônica.

[ii] LIEBMAN, Enrico Tullio. O despacho saneador e o julgamento do mérito. Estudos sôbre o processo civil brasileiro. Saraiva: São Paulo, 1947, p. 149-150.

[iii] LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 3. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1990, p. 7.

[iv] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo do conhecimento. 21. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 805. O Enunciado 298 do FPPC está na mesma direção.

[v] Posicionando-se criticamente naquele período: ARRUDA ALVIM, José Manuel de. Despacho saneador: o saneador no Código de Processo Civil de 1940. Justitia, São Paulo, v. 69, abr., 1970, p. 62.

[vi] Para Camila Victorazzi Martta, trata-se da mais importante decisão interlocutória do processo, entendendo que o ato de sanear o processo apenas fica atrás da sentença em termos de complexidade. MARTTA, Camila Victorazzi. Saneamento do processo: a decisão de saneamento e sua funcionalidade no processo civil brasileiro. Londrina: Thoth, 2020, p. 29.

[vii] DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do processo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2020, p. 504.

[viii] Utilizando a expressão ainda sob a vigência do CPC/73: WAMBIER, Luiz Rodrigues. A audiência preliminar como fator de otimização do processo. O saneamento "compartilhado" e a probabilidade de redução da atividade recursal das partes. Revista de Processo, São Paulo, v. 118, nov.-dez., 2004, p. 3, versão eletrônica.

[ix] SICA, Heitor Vitor Mendonça. Evolução legislativa da fase de saneamento e organização do processo. Revista de Processo, São Paulo, v. 255, maio, 2016, p. 5, versão eletrônica.

[x] TALAMINI, Eduardo. Saneamento e organização do processo no CPC/15. Disponível em: http://www.direitoprocessual.org.br/aid=37.html?shop_cat=23&shop_detail=5. Acesso em: 15 out. 2020.

[xi] UZEDA, Carolina. Pedido de ajustes e esclarecimentos: a participação das partes na decisão de saneamento e organização do processo. Revista de Processo, São Paulo, v. 289, mar., 2019, p. 5, versão eletrônica.

[xii] CALAMANDREI, Piero. A dialética do processo. Processo e democracia: conferências realizadas na Faculdade de Direito da Universidade Nacional Autônoma do México. Tradução de Mauro Fonseca Andrade. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 83.

[xiii] CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 3 ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 394.

[xiv] Nota-se que o Projeto de Lei n. 4441/2020, recentemente proposto para disciplinar o procedimento da “Nova Lei da Ação Civil Pública”, reserva em seu art. 19 tratamento minucioso para a decisão de saneamento, ao encontro do Enunciado 676 do FPPC, mostrando que o tema não está limitado ao CPC ou a litígios individuais.

[xv] CADIET, Loïc. A justiça civil francesa entre eficiências e garantias. Perspectivas sobre o sistema da justiça civil francesa: seis lições brasileiras. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 20-40.

[xvi] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Saneamento do processo e audiência preliminar. Temas de direito processual. Quarta série. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 144.

Juizados Especiais Da Fazenda Pública: Competência Absoluta Ou Relativa?

Os Juizados Especiais foram previstos pela Constituição Federal em seu art. 98, que estipula competência para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo.

Em 1995, com a Lei 9.099 foram criados o Juizados Especial Cíveis e Criminais, para as causas cíveis e criminais de competência estadual e em 2001 foram criados os Juizados Especiais Federais com a Lei 10.259. Os Juizados Especiais da Fazenda Pública foram criados apenas em 2009 pela Lei 12.153. É importante destacar que os Juizados Especiais Federais têm competência para as causas em que a Fazenda Pública Federal seja parte, sendo assim, a Lei dos Juizados Especiais Federais abarca competência da Justiça Estadual.

A questão da competência dos juizados ser relativa ou absoluta sempre foi tormentosa. Quando da entrada em vigor da Lei 9.099/95, discutia-se se a parte poderia optar entre a justiça comum e os juizados. Atualmente, o posicionamento majoritário é no sentido de a competência dos juizados especiais cíveis ser relativa, podendo o autor fazer a opção ao propor sua ação.[i]

O legislador, quando da promulgação da Lei 12.153/09, previu que os Juizados Especiais da Fazenda Pública são competentes para as causas até 60 salários-mínimos (com as exceções previstas no §1º do art. 2º)[ii] e tentou evitar eventual discussão sobre a natureza da competência, ao estipular expressamente que a competência será absoluta nos foros onde estiver instalado o Juizado Especial da Fazenda Pública (§4º, art. 2º).

Alexandre Freitas Câmara entende que tal dispositivo é inconstitucional, nos termos seguintes:

Em primeiro lugar, a inconstitucionalidade decorre da possibilidade de o microssistema dos Juizados Especiais Cíveis Federais, assim como o dos Juizados Especiais da Fazenda Pública produzir resultados inaceitáveis: não são cabíveis todos os recursos existentes no sistema processual comum; não é cabível o ajuizamento de ‘ação rescisória’; é limitada a possibilidade de produção de provas. Em segundo lugar, a tutela jurisdicional que através dele se presta é diferenciada, mas esse sistema é estabelecido por opção do legislador e não pela natureza do direito material, o que faz com que tenha o mesmo de ser opcional para o demandante [...]

Tenho, pois, a convicção de que esse art. 3º, § 3º, da Lei nº 10.259/2001, bem como o art. 2º, § 4º, da Lei nº 12.153/2009, são inconstitucionais, e que o demandante pode, livremente, escolher entre ajuizar sua demanda perante um Juizado Especial ou perante uma Vara Federal Comum, ou escolher entre o Juizado Especial da Fazenda Pública e o juízo fazendário comum.[iii]

Manoel José de Paula Filho considera que a previsão é constitucional quando se estiver diante de causa efetivamente de menor complexidade, mas que restará violada a CF/88 quando houver causa de maior complexidade afeta ao Juizado Especial da Fazenda Pública, ainda que o valor da causa esteja dentro da previsão legal (60 (sessenta) salários mínimos).[iv]

Já para Leonardo Carneiro da Cunha, é possível a propositura da ação no juízo comum em razão da complexidade, ainda que o valor da causa seja inferior a 60 (sessenta) salários-mínimos.[v]

Seguindo essa linha interpretativa, o Enunciado 11 do FONAJEFP concluiu que as causas de maior complexidade probatória, por imporem dificuldades para assegurar o contraditório e a ampla defesa, afastam a competência do Juizado da Fazenda Pública.[vi]

A utilização dos Juizados Especiais da Fazenda Pública pode ser mais vantajosa à parte em razão da celeridade e da simplicidade. Todavia, tal previsão não pode ser interpretada como totalmente estática, uma vez que há hipóteses em que negar à parte a escolha do juízo poderá causar-lhe imenso prejuízo, consistindo em verdadeiro óbice ao Poder Judiciário. Sendo assim, a competência nas Comarcas onde há Juizado Especial da Fazenda Pública instalado, a competência poderia ser compreendida como absoluta mista,[vii] permitindo a escolha da parte pelo juízo comum em causas complexas.

Da mesma forma, as regras de nulidade pela violação da competência absoluta dos Juizados Especiais da Fazenda Pública não devem ser analisadas com tanto rigor e, desde que não vislumbre prejuízo real pela ocorrência de eventual incompetência, a sentença será válida e deverá ser cumprida.[viii]

Mas, como ficam os foros onde não há Juizado Especial da Fazenda Pública instalado? A competência passa a ser a do Juizado Especial Cível, onde houver, ou a parte pode optar pelo juízo comum?

Mesmo após anos de vigência da legislação, não são todas as Comarcas que possuem Juizado Especial da Fazenda Pública instalado, especialmente no interior dos Estados. Sendo assim, entende-se que a melhor interpretação do §4º, art. 2º, da Lei 12.153/09 é no sentido de a competência ser relativa nas Comarcas em que não há Juizado da Fazenda Pública instalado, cabendo a escolha pelo juízo comum ou pelo juizado especial cível ao autor.

Nesse mesmo sentido foi a conclusão de Joel Dias Figueira Júnior[ix] e do Enunciado 09 do FONAJEFP, in verbis:

Nas comarcas onde não houver Juizado Especial da Fazenda Pública ou juizados adjuntos instalados, as ações serão propostas perante as Varas comuns que detêm competência para processar os feitos de interesse da Fazenda Pública ou perante aquelas designadas pelo Tribunal de Justiça, observando-se o procedimento previsto na Lei 12.153/09.[x]

Ainda que a interpretação do dispositivo legal leve a essa conclusão, na prática, a aplicação não é unânime. No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o assunto foi disciplinado pelo Provimento do CSM nº 2.203/2014,[xi] que em seu art. 8º, prevê qual seria a competência nas Comarcas onde não há Juizado da Fazenda Pública instalado.[xii] O problema é que muitos juízes entendem que tal competência dos Juizados Especiais Cíveis seria absoluta, redistribuindo, de ofício, os processos propostos na justiça comum.

Essa questão já foi analisada em conflito de competência por mais de uma vez, sendo que o órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo em todas elas, reconheceu a competência absoluta do Juizado Especial Cível, ainda que na comarca não exista Juizado da Fazenda Pública instalado.[xiii]

E tal questão é extremamente relevante, veja-se, como exemplo, o Conflito de Competência nº 0009165-76.2020.8.26.0000, julgado em maio de 2020, reconhecendo a competência do Juizado Especial Cível. Consta dos autos que o processo originário é de 2017, foi julgado procedente em 2018 e que, em grau de recurso, houve decisão monocrática datada de 18/01/2019, que decretou a nulidade da sentença, ante o reconhecimento da incompetência absoluta do Juízo prolator (juízo comum da Comarca) e determinou a redistribuição dos autos ao Juizado Especial da Comarca de Paulínia. Quando os autos chegaram ao Juizado Especial Cível, o juiz, de ofício, reconhece sua incompetência em razão do cálculo atualizado com valor superior a 60 salários-mínimos e determina o retorno dos autos à justiça comum, o que gera a suscitação do conflito de competência. Reconhecer a competência relativa, nas causas fazendárias, como relativa nas Comarcas em que não há Juizado da Fazenda Pública evitaria nesse caso concreto a demora de mais de 3 anos no processo.

De outra banda, percebe-se uma modificação de entendimento no Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido de entender a competência como relativa nas Comarcas em que não há Juizado da Fazenda Pública instalado,[xiv] especialmente na 5ª Câmara, a partir do ano de 2020. A última decisão sobre o tema concluiu pela relatividade da competência.[xv]

Espera-se que essa mudança de entendimento, acerca da competência relativa nos foros onde não há Juizado da Fazenda Pública, prevaleça nos julgamentos futuros, evitando-se, dessa forma, atrasos na prestação jurisdicional e dificuldades ainda maiores àqueles que litigam contra a Fazenda Pública estadual ou municipal.

Respondendo à questão formulada no título, pode-se dizer que a competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública é absoluta apenas quando tal Juizado estiver instalado na comarca e se não houver complexidade na causa. Nas comarcas onde não foi ainda instalado o Juizado Especiais da Fazenda Pública a competência é relativa, podendo a parte optar pela propositura da ação no juízo comum, ainda que em causas inferiores a 60 (sessenta) salários-mínimos.

Notas e Referências

[i] Enunciado n. 1 do Fonaje: “ENUNCIADO 1 – O exercício do direito de ação no Juizado Especial Cível é facultativo para o autor”. (FONAJE Fórum Nacional de Juizados Especiais. Enunciado 1. Disponível em: <http://www.amb.com.br/fonaje/?p=32>. Acesso em: 19 abr. 2020.

[ii] Art. 2º [...]: § 1º Não se incluem na competência do Juizado Especial da Fazenda Pública: I – as ações de mandado de segurança, de desapropriação, de divisão e demarcação, populares, por improbidade administrativa, execuções fiscais e as demandas sobre direitos ou interesses difusos e coletivos; II – as causas sobre bens imóveis dos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios, autarquias e fundações públicas a eles vinculadas; III – as causas que tenham como objeto a impugnação da pena de demissão imposta a servidores públicos civis ou sanções disciplinares aplicadas a militares.

[iii] autor? Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública: uma abordagem crítica. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 203.

[iv] PAULA FILHO, Manoel José. Da competência absoluta, relativa ou mista e a opcionalidade ou não dos juizados especiais fazendários. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 22, n. 5071, 20 maio 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/57815>. Acesso em: 19 abr. 2018.

[v] A Fazenda Pública em juízo. 14. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 830.

[vi] CNJ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Enunciados da Fazenda Pública. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/redescobrindo-os-juizados-especiais/enunciados-fonaje/enunciados-da-fazenda-publica>. Acesso em: 19 abr. 2020.

[vii] PAULA FILHO, Manoel José de. Da competência absoluta, relativa ou mista e a opcionalidade ou não dos juizados especiais fazendários. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 22, n. 5071, 20 maio 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/57815>. Acesso em: 19 abr. 2018. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais da Fazenda Pública: comentários à Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 83.

[viii] GAJARDONI, Fernando da Fonseca; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Breves anotações sobre a competência nos juizados da fazenda pública: a função social do sistema dos juizados. Revista de Processo, Doutrinas Essenciais: novo Processo Civil, v. 1/2018, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 273, p. 323-341, nov. 2017, p. 339.

[ix] Juizados Especiais da Fazenda Pública: comentários à Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p.85

[x] CNJ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Enunciados da Fazenda Pública. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/redescobrindo-os-juizados-especiais/enunciados-fonaje/enunciados-da-fazenda-publica>. Acesso em: 19 abr. 2020.

[xi] ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Provimento CSM Nº 2.203/2014: Atualiza, sistematiza e consolida as normas relativas ao Sistema dos Juizados Especiais. Disponível em: <https://www2.oabsp.org.br/asp/clipping_jur/ClippingJurDetalhe.asp?id_noticias=23085>. Acesso em: 22 out. 2020.

[xii] Art. 8º. Nas Comarcas em que não foram instalados os Juizados Especiais de Fazenda Pública ficam designados para processamento das ações de competência do JEFAZ: I - as Varas da Fazenda Pública, onde instaladas; II - as Varas de Juizado Especial, com competência cível ou cumulativa, onde não haja Vara da Fazenda Pública instalada; III - os Anexos de Juizado Especial, nas comarcas onde não haja Vara da Fazenda Pública e de Juizado Especial, designados os Juízes das Varas Cíveis ou Cumulativas para o julgamento.

[xiii] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Conflito de Competência nº 0032079-71.2019.8.26.0000. Órgão Especial. Relator: Desembargador Geraldo Wohlers, j. em 09. out. 2019. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=12976815&cdForo=0. Acesso em: 19 out. 2020.

[xiv] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravos de Instrumento n.   2054763-19.2020.8.26.0000; 2052428-27.2020.8.26.0000; 2064919-66.2020.8.26.0000.

[xv] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 2087062-49.2020.8.26.0000, como relator Desembargador FRANCISCO BIANCO, julgado em 22 jul. 2020. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=12976815&cdForo=0. Acesso em: 19 out. 2020.

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O Acesso À Justiça E O Sistema Multiportas

A doutrina tradicional considerava o acesso à justiça como vinculado ao princípio da inafastabilidade da jurisdição estatal, o qual se encontra no inciso XXXV, do artigo 5°, da Constituição Federal, de acordo com o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Nessa perspectiva, o acesso à justiça equivaleria ao acesso ao Judiciário. No entanto, nos dias de hoje, essa compreensão é equivocada. Isso porque o Judiciário é apenas uma das espécies de acesso à justiça.

O CPC/2015, realça tal fato ao longo de seu texto, sobretudo no caput do artigo 3°, do livro inaugural de sua obra, denominado “das normas fundamentais do processo”. O caput do referido dispositivo ressalta que “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão do direito”. Note-se que a expressão “do poder judiciário”, presente no inciso XXXV, artigo 5°, da Constituição Federal, foi substituída pelo termo “jurisdicional”.

Nesse sentido, acesso à justiça é diferente de acesso ao Judiciário. A Jurisdição passa a ser vista dentro de um modelo multiportas, que não é necessariamente estatal. Inclusive, os incisos I e II do artigo 3°, do CPC/2015, enfatizam a arbitragem, a conciliação e a mediação, estes últimos dentro e fora do processo, ou seja, de modo judicial e extrajudicial.

 O utilitarismo é indispensável para os resultados práticos, razão pela qual houve mudanças significativas na forma de se ver a Jurisdição, como também o processo. A pandemia mundial ocasionada pelo Covid-19, mais do que qualquer outro momento, fez reviver a ideia de que o direito, por meio do procedimento judicial ou extrajudicial, serve à sociedade, como meio de resolver conflitos de forma útil e eficaz.

Para isso, o acesso à justiça precisa estar em constante evolução e ebulição no sentido de refletir o momento social e trazer resultados práticos para a resolução dos conflitos dos membros da sociedade.

A sobrecarga de processos é um dos principais problemas do Judiciário, de modo que a reforma do sistema se tornou de natureza iminente. Com o Judiciário em colapso em face da quantidade processos em curso, notadamente o acesso à justiça resta prejudicado.O último relatório da Justiça em Números, realizado pelo CNJ, aponta o Poder Judiciário finalizou o ano de 2019 com 77,1 milhões de processos em tramitação, que aguardavam alguma solução definitiva. Apesar do elevado do número de processos, que demonstra o congestionamento do sistema, houve redução da curva de estoque processual na Justiça Brasileira, de aproximadamente 1,5 milhão de processos. O número de processos pendentes em 2019 é próximo ao de 2015. Trata-se do segundo ano consecutivo de queda do número de processos pendentes.[1]

Há de se destacar o impacto do CPC/ 2015 tornou praticamente obrigatória a realização de audiência de conciliação e mediação, dentro e no início do processo judicial, bem como incentiva os outros métodos de solução de conflitos, inclusive no âmbito extrajudicial. Mas, desde 2003, quando se começou a debater sobre a reforma do sistema de justiça, o Ministério da Justiça vem demonstrando o seu apoio à disseminação de outros métodos adequados de solução de conflitos.

A Constituição Federal, através da Emenda Constitucional 45/2004, criou o CNJ, órgão responsável pela transparência e fiscalização da atividade jurisdicional perante a sociedade.

Nesse sentido, o CNJ criou em 2006 o “movimento pela conciliação”, do qual emanou a Semana Nacional de Conciliação, que devido ao sucesso de seus resultados, vem sendo utilizada anualmente em todos os tribunais do país. [2]

O CNJ, considerando que o direito de acesso à justiça não se encontra limitado à vertente formal dos órgãos do Poder Judiciário, buscou a implantação de uma política pública destinada a disseminação do uso de outros meio adequados e consensuais à solução dos conflitos, como a mediação e a conciliação, visando proporcionar condições de expansão e aferição de sua efetividade, por meio da Resolução 125/2010. Essa ideia restou confirmada no caput, do artigo 3°, do CPC/2015.

O ano de 2015 foi um marco ao movimento pelas soluções consensuais, haja vista que o CPC trouxe dentre seus pilares o estímulo a outros meios de solução de conflitos. A Lei 13.140, conhecida como Lei de Mediação, também adveio no ano de 2015, tendo entrado em vigor no mesmo período. Em razão da atual legislação de processo civil foi que também restaram implantadas, no mesmo período, modificações na Lei de Arbitragem Dessa maneira, nasce o Sistema Multiportas que se caracteriza, sobretudo, pelos meios autocompositivos, como a mediação e a conciliação.

Visando estimular os meios autocompositivos e ampliar o acesso à justiça através da melhoria da prestação jurisdicional, em 03 de maio de 2016, o CNJ criou o Sistema Multiportas Digital, que permite às partes que estejam distantes fisicamente a celebração de acordos. Essa possibilidade, inclusive, já se encontrava prevista no artigo 46 da Lei de Mediação e art. 334 § 7° do CPC, que estabelecem a possibilidade de realização da mediação por meios eletrônicos, que ganhou notoriedade durante a pandemia mundial do novo coronavírus (Covid-19). Isso porque, em razão do isolamento social, as mediações e conciliações on line mostraram-se alternativas adequadas para evitar a paralização das audiências processuais ou sessões nos procedimentos pré-processuais.

O CPC estimula a solução consensual do conflito, por meios estatais e não estatais, deixando tal incentivo claro logo em princípio, no capítulo destinado às normas fundamentais do processo, quando no artigo 3°, §3°, ressalva que os métodos consensuais de solução de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do ministério público, inclusive no curso do processo judicial.

Nessa mesma perspectiva de pacificação consensual, o Judiciário começou a utilizar a constelação familiar, técnica terapêutica criada pelo alemão Bert Hellinger na década de setenta, como meio de facilitar o acordo, podendo preparar as partes, em casos mais complexos, para a audiência de mediação ou de conciliação, conforme o caso.

O CNJ já vinha no incentivo aos meios consensuais de conflito desde 2010, com a Resolução 125[3], considerando que ao Judiciário cabe estabelecer política pública de tratamento adequado aos conflitos, organizando não apenas os serviços prestados no processo judicial, como também mediante outros mecanismos, em especiais os consensuais, como a mediação e a conciliação.

Dentre esses métodos também se encontra a constelação familiar, considerada pelo CNJ como alinhada com a Resolução n° 125/2010, bem como ao CPC/2015. Tal qual a mediação e a conciliação, a constelação familiar também começou a ser utilizada e incentivada antes da legislação processual em vigor. Foi o Tribunal de Justiça da Bahia, no ano de 2012, por meio do juiz SamiStorch que começou a utilizar a constelação familiar, tendo o uso da técnica surpreendeu pelos resultados[4].  A partir daí a técnica passou a ser empregada em diversos tribunais.

Mas, foi no de 2015 que ela ganhou notoriedade, quando o 3° Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) da comarca de Goiânia/GO ganhou o prêmio “conciliar é legal”, do Conselho Nacional de Justiça. Ressalta-se que antes mesmo dessa premiação houve, em 2014, o recebimento de uma menção honrosa no XI Prêmio Innovare, concedido pelo Instituto Innovare[5].

Vale dizer que atualmente a constelação encontra a sua aplicação no Judiciário de 16 (dezesete) Estados e o DF. Importante esclarecer que a mediação, a conciliação e a constelação familiar são meios distintos e que não se excluem, ao contrário se integram.[6]

A mediação, a conciliação e a constelação familiar, são meios de resolução de conflitos acolhidos e estimulados pelo CNJ, que as acolhe na Resolução 125/2010[7]. As três formas vêm sendo disseminadas nos Tribunais, sendo a mais recente a técnica da constelação familiar. Saber diferenciar essas técnicas é de suma importância para a prática da advocacia atualmente, principalmente se estiver a se falar do advogado colaborativo.

A constelação familiar é reconhecida como ciência dos relacionamentos humanos e vem sendo usada de diversas formas e áreas. O método permite a identificação e compreensão de questões mal resolvidas dentro da história familiar que são capazes de influenciar, inclusive de modo inconsciente, o comportamento dos membros da família.

A partir dessa técnica se busca evitar a repetição ou perpetuação, inclusive inconsciente, de comportamentos destrutivos, movida pelos vínculos com seus antepassados. Na dinâmica da constelação se revelam as “Leis Sistêmicas”, também conhecidas como “Leis Sistémicas”, que tratam as relações e padrões inconscientes de comportamentos. As ordens do amor são: o pertencimento, a hierarquia e o equilíbrio, sendo a base do pensamento sistêmico, pois quando respeitados tende a encontrar um equilíbrio nas relações.

De acordo com Bert Hellinger cada um dos elementos tem o direito de pertencer, ou seja, existir dentro do sistema, de modo que quando isso não é respeitado os efeitos da exclusão são sentidos pelo sistema, seja familiar ou organizacional. A hierarquia significa dizer que a ordem cronológica de chegada assegura aos mais velhos serem tratados com mais respeito e cuidado, o que mantém as relações mais harmoniosas. Já o equilíbrio significa a necessidade de preservar o equilíbrio entre o dar e o receber, vez que todo ser é dotado da capacidade de troca. [8]

Pela técnica da constelação familiar observa-se o desrespeito a essas ordens, a compreensão dos efeitos que disso emana compreensão, ou seja, os traumas e o reconhecimento da repetição de determinados padrões de comportamento. Compara-se a constelação a uma rede em que a pessoa está inserida como um nó que afeta e é afetado por toda a trama da rede

Essa técnica vem sendo utilizada no Judiciário, nos casos de alto grau de litigiosidade, como meio de facilitar acordos, sendo, muitas vezes, empregadas de forma anterior à mediação judicial. Ela vem sendo utilizada não apenas nos conflitos familiares, mas também na área penal e até mesmo trabalhista. No TJPE, por exemplo, ela começou a ser utilizada na esfera penal e depois nas ações de família. O TRT/AL e o TRT/GO, por sua vez, vêm utilizando a técnica nos casos trabalhistas. [9]

A mediação, por sua vez, utiliza técnicas mais simples de psicologia[10] e torna mais compreensíveis as mensagens por meio da escuta ativa, da análise da linguagem corporal, do resumo, da recontextualização, dentre outras técnicas, que mostram a importância de verificar o real interesse das partes, que está por detrás do discurso.  Nela, há uma análise não apenas da lide jurídica, mas também da lide sociológica, que envolve além dos aspectos objetivos, os emocionais e inconscientes. O problema jurídico, inclusive, é tratado em segundo plano, daí a razão pela qual o mediador não deve sugerir propostas de acordo. Trata-se de meio utilizado nos casos em que há vínculos anteriores entre as partes. A intenção é a restauração do diálogo e apenas em consequência a resolução do problema, realizada por propostas que surgem das próprias partes, quando conseguem resolver a lide sociológica e se olhar pela lente do outro.

O ideal é que a mediação seja utilizada antes do processo judicial ou logo em seu início. Isso porque quanto mais tempo o processo tramita maior é o conflito, ficando mais difícil o restabelecimento do diálogo.  Daí porque nos casos mais complexos ou em que o processo já tramita por longo período do tempo vem se aplicando a constelação familiar antes da mediação.

A conciliação é mais simples do que a mediação, pois é indicada para os casos em que não há vínculos anteriores entre as partes. Nela o que prevalece é a lide jurídica. No entanto, ainda assim, não se resume apenas à verificação da existência da possibilidade de acordo. Isso porque é comum ser necessário o emprego de algumas técnicas de psicologias, a fim de estimular o exercício da empatia entre as partes. As mesmas técnicas que se utiliza na mediação podem ser aqui empregadas. A diferença é que sua aplicação acaba sendo mais rápida ante a inexistência de vínculos a restaurar, o que também permite ao conciliador poder agir de forma mais direta, até mesmo sugerindo proposta de acordo, o que é vedado na mediação.

As normas existentes sobre o tema estimulam os meios autocompositivos, trazem regramentos e princípios que procuram por meio da cultura do diálogo uma solução em que ambas as partes saiam satisfeitas e com uma comunicação restabelecida.

Nesse sentido, deve-se destacar o aumento do número de Centros Judiciários de Resolução de Conflitos e Cidadania na Justiça Estadual que em 2014 constituía 362 e em 2019 constitui 1.284 unidades, de acordo com o relatório executivo da Justiça em Números do CNJ de 2020[11]

Observe-se que após a vigência do atual CPC houve um esforço estrutural significativo para implementação de políticas públicas que ampliem o acesso à justiça por meio do sistema multiportas. A questão, porém, vai para além do problema estrutural, pois de nada adianta a estrutura adequada se os operadores do direito não estiverem preparados para utilizá-la no sentido vislumbrado pelo legislador. 

Há uma preocupação de levar uma justiça de qualidade ao cidadão por decisões mais adequadas, baseada em uma política de ganhos mútuos e satisfação de todos com a solução empregada ao caso, que traz como consequência a diminuição dos números de processos no Judiciário. Tal fato, também implica a possibilidade de decisões mais rápidas no sistema heterocompositivo.

Nesse sentido, é que a Resolução CNE/CES n/ 5/2018, oriunda do Parecer n° 635/2018, homologado pela Portaria nº 1.351/2018 do Ministério da Educação, fez com que a cadeira de conciliação, mediação e arbitragem passasse a integrar de forma obrigatória a grade curricular do curso de direito. O prazo para as faculdades se adaptarem às novas diretrizes é de dois anos. Essa medida é de extrema importância e reflete uma provocação conjunta do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Assim, é que no contexto atual, do sistema multiportas, não se tem como ver o acesso à justiça limitado apenas à possibilidade de ajuizamento da ação ou à proteção judicial. Os meios adequados de solução de conflitos, sobretudo o autocompositivos, com a utilização da mediação, conciliação e constelação familiar, de modo pré-processual, mas também com os processos em curso, demonstra que a forma de exercer e ver o direito se mostra muito diferente da que se tinha no código de processo civil anterior.

A evolução do acesso à justiça é constante no sentido de servir à sociedade, acompanhando suas necessidades e procurando formas mais úteis e eficazes para a concretização dos direitos. Os novos rumos que se veem na atualidade estão entrelaçados a um sistema multiportas e um processo judicial dialogado, mais próximo do cidadão.

Notas e Referências

[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça-em-Números-2020. Disponível em < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justiça-em-Números-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf> . Acesso: 30.08.2020.

[2] _________. Movimento pela conciliação. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao/movimento-pela-conciliacao/ Acesso: 30.08.2020

[3] _________. Atos Normativos. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/156. Acesso em: 10 out. de 2018.

[4]__________. Juiz consegue 100% de acordos usando técnica alemã antes das sessões de conciliação https://www.cnj.jus.br/juiz-consegue-100-de-acordos-usando-tecnica-alema-antes-das-sessoes-de-conciliacao/ Acesso em 25.08.2019

[5]__________. TJGO é Premiado por Mediação Baseada na Técnica de Constelação Familiar. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79702-tjgo-e-premiado-por-mediacao-baseada-na-tecnica-de-constelacao-familiar Acesso em 25.08.2019

[6]  _________. Constelação Familiar no Firmamento da Justiça em 16 estado. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/86434-constelacao-familiar-no-firmamento-da-justica-em-16-estados-e-no-df.   Acesso em: 24.08.2019

[7]__________. Constelação Familiar ajuda a humanizar práticas de conciliação no Judiciário. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83766-constelacao-familiar-ajuda-humanizarpraticas-de-conciliacao-no-judiciario-2 Acesso em 06/09/2019.

[8]HELLINGER, Bert. Ordens do Amor: Um Guia Para o Trabalho com Constelações Familiares. Disponível em: http://www.petropolis.rj.gov.br/petropolisdapaz/artigos/downloads/Ordens-do-Amor-Um-Guia-para-o-Trabalho-com-Constelacoes-Familiares.pdf  Acesso em 06.06.2019.

[9] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. Tribunal pernambucano utiliza constelação familiar em conciliação. Notícia divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça em 22 de novembro de 2016. Disponível em:    http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/83966tribunal-pernambucano-utilizada-constelacao-familiar-em-conciliacao .   Acesso em: 30 maio 2017.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DE ALAGOAS. Magistrados participam de curso sobre constelações familiares aplicadas à resolução de conflitos. Notícia. Sem data de publicação. Disponível em: http://www.trt19.jus.br/siteTRT19/portal/portalNoticias.jsp?codigoArt=9508  Acesso em 17/06/2017.

[10] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Azevedo, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial, 6ª Edição (Brasília/DF:CNJ), 2016. Disponível em

http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/07/f247f5ce60df2774c59d6e2dddbfec54.pdf . Acesso em: 25 out. 2018.

[11] _________ Sumário Executivo da Justiça em Números 2020: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2020. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB_V2_SUMARIO_EXECUTIVO_CNJ_JN2020.pdf>. Acesso em 30.08.2020.

A Sobrevida Da Ação Monitória No Cpc/2015 E Os Embargos À Monitória Como Garantia De Dialeticidade

A ação monitória no sistema processual brasileiro

O Código de Processo de 2015, ao revés do que parcela da doutrina acreditava, não fulminou a ação monitória. Existente no direito brasileiro desde 1995, por meio da Lei 9.079, o mecanismo deixou inúmeras lacunas e foi objeto de muitas críticas, com várias discussões doutrinárias e jurisprudenciais e hoje a ação monitória encontra-se prevista nos artigos 700 a 702 do novel Codex[i].

Sabe-se que, historicamente, o processo monitório (ou injuncional) é uma técnica processual concebida com a finalidade de obter, de forma rápida, o título executivo “obviando-se os percalços naturais da demora processual na obtenção da sentença condenatória”.[ii]  Pode-se dizer, à luz dos dispositivos legais, que a ação monitória oportuniza ao credor que possui prova escrita representativa de um crédito abreviar o percurso processual para que seja formado o título executivo. Nesse contexto, verifica-se que o instrumento é voltado para aqueles que não possuem um título executivo, mas apenas e tão somente uma prova documental: é o que a doutrina denomina como “forte aparência da existência do direito a crédito”[iii]. É de se dizer: a monitória é instrumento processual para dar eficácia executiva a um título que ainda não o é. Esse viés não foi modificado pelo Código de 2015.

Vale destacar que, diferentemente do que acontece com o procedimento comum, o procedimento especial da ação monitória não se inicia com uma audiência de conciliação ou mediação (disciplinado no art. 334). Essa diferenciação acontece uma vez que, se não houver resistência do réu [por meio dos embargos à monitória], a decisão será automaticamente convertida em título executivo judicial definitivo (nos termos do art. 701)[iv].

Destaca-se como inovação o cabimento da monitória: o novo código de Processo Civil, na tentativa de alastrar a monitória, ampliou o procedimento passando a permitir sua utilização para cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer e generalizou o seu cabimento para exigir entrega de coisa fungível ou infungível ou de bem móvel ou imóvel.

Mister abordar o contraditório diferido: a decisão que defere a expedição do mandado monitório é proferida liminarmente (nos termos do art. 9º, III do CPC/15) é realizada sem que seja ouvida a parte contrária — decisão tomada a partir do juízo de evidência do direito do autor, cabendo ao réu, resistir à pretensão pela via dos embargos (e não por meio do agravo!), uma vez que provoca a automática suspensão do processo[v].

Dos embargos à monitória

À partida convém trazer a lume que o prazo para embargos da monitória seguiu os padrões no Código de Processo Civil de 2015: 15 dias nos termos do art. 701 (com prazo em dobro para a Fazenda Pública, Defensoria e litisconsortes com procuradores diferentes de escritórios distintos em processos físicos). Aplica-se à contagem do prazo o art. 231: a partir da juntada do AR da citação postal ou do mandado cumprido.

Após a oposição dos embargos à monitória, o autor poderá apresentar resposta também no prazo de 15 dias.

A respeito da natureza jurídica, acolhe-se a doutrina majoritária de que os embargos à ação monitória têm natureza jurídica de defesa — e não de ação: “é, pois a resposta do réu à pretensão do Autor”[vi]. O STJ também já se manifestou a respeito disso: “os embargos à monitória têm natureza jurídica de defesa”[vii]. Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini adotam a teoria de que é ação própria incidental[viii].

Sobre o recolhimento das custas, vale destacar sua dispensa: “mostra-se inadequada a imposição de recolhimento de custas processuais para sua oposição” (JTJ 329/37: AI 7.724.109-9) e, na mesma toada, dispensa garantia do juízo. Vale destacar, não se admite negativa geral[ix], nos termos do art. 341 do CPC.

Apresentados os embargos, a ação monitória torna-se uma normal ação de conhecimento, em procedimento comum, capaz de dar ensejo também a exceções processuais e até mesmo à reconvenção — a reconvenção na ação monitória, bem a propósito, foi assunto da Súmula 292 do STJ. Confira-se:

A reconvenção é cabível na ação monitória, após a conversão do procedimento em ordinário.

Confira-se lição de Humberto Theodoro Júnior[x] sobre a conversão ao procedimento ordinário, após a oposição dos embargos à monitória:

Ao contrário do que se passa na execução, os embargos aqui não são autuados à parte. São processados nos próprios autos, como a contestação no procedimento ordinário (art. 1.102, c, § 2º).

Após os embargos, o desenvolvimento do iter procedimental seguirá o rito ordinário do processo de conhecimento, até a sentença, que poderá acolher ou não a defesa. Rejeitados os embargos, e execução terá início, pois a sentença transformará ação monitória em execução de título judicial. O devedor será intimado para pagar ou segurar o juízo e a execução prosseguirá dentro da marcha prevista para as obrigações de quantia certa ou de entrega de coisa (Livro II, Título II, Capítulos II e IV, do CPC).

Acolhidos os embargos, revogado estará o mandado inicial de pagamento e extinto será todo o processo. Se o acolhimento for apenas parcial, a execução terá curso sobre o remanescente do pedido do autor não alcançado pela sentença[xi]

Nessa mesma toada e, diferentemente do que acontece nas ações executivas, os embargos à monitória abrem a possibilidade de ampla discussão da matéria com a possibilidade de produção de provas em audiência, com contraditório pleno e cognição exauriente[xii]. O ponto é expresso no § 1º do art. 702: Os embargos podem se fundar em matéria passível de alegação como defesa no procedimento comum. Significa, ainda, dizer que o réu, em sede de embargos pode arguir qualquer das matérias previstas nos arts. 337[xiii] e 342[xiv] do CPC[xv].

O CPC/15 traz inovações ao apontar expressamente o recurso cabível: nos termos do dispositivo legal (art. 702, § 9º), cabe apelação contra sentença que acolhe ou rejeita os embargos.

A dúvida permanece sobre os efeitos da apelação: mais bem explicando, falta definir se o recurso teria ou não efeito suspensivo. A resposta advém da leitura e interpretação do § 4º: “A oposição dos embargos suspende a eficácia da decisão referida no caput do art. 701 até o julgamento em primeiro grau” — evidenciando-se, assim, o evidente efeito suspensivo do apelo. Todavia, a exceção se mostra na possibilidade de concessão da tutela de evidência na sentença, de modo a subtrair o efeito suspensivo do apelo e a permitir o cumprimento provisório de sentença:

A sentença de procedência do pedido da ação monitória, após o oferecimento de embargos pelo réu, é exemplo do momento em que o juiz pode conceder ao autor tutela provisória da evidência, com fundamento no art. 311, IV. Isso porque o autor terá instruído a petição inicial com prova “documental suficiente dos fatos constitutivos” de seu direito e o réu, por não ter sucesso em impedido a condenação, não terá apresentado “prova capaz de gerar dúvida razoável[xvi].

Vale trazer a lume, ainda, que, muito embora o Código não tenha dito expressamente, no caso de procedência dos embargos, os honorários advocatícios devem ser calculados sobre o proveito econômico obtido, ou seja: a diferença entre o valor cobrado e aquele que se verificou ser efetivamente devido, conforme entendimento já firmado pelo Superior Tribunal de Justiça[xvii].

Elucida-se, assim, que, ocorrendo o julgamento pela procedência da ação monitória, rejeitando a matéria dos embargos, forma-se, o título executivo judicial. Em caso de pagar quantia certa, o autor deve dar prosseguimento no “tradicional” cumprimento de sentença”. Já no caso de obrigação de fazer ou não fazer, caso não haja cumprimento espontâneo, o juiz poderá determinar nos termos do art. 536, as medidas necessárias para a satisfação do direito exequente — com arbitramento de multa, busca e apreensão, remoção de pessoas, etc.

À derradeira, o Código de Processo Civil de 2015 inova ao incorporar no procedimento especial da ação monitória, o dever de boa-fé das partes, prevista no art. 5º do CPC, uma vez que possibilita a aplicação de multa de até 10% quando, de má-fé for ajuizada a ação monitória ou os embargos à monitória.

Notas e Referências 

BATISTA DA SILVA, Ovídio. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. XI art. 796-889. Do processo cautelar. 2ª Ed. LEJUR. 1986. p. 31.

BUENO, Cassio Scarpinella. Custo sistematizado de direito processual civil. v. 2 T. II, 2011, São Paulo: Saraiva, p. 179/180.

NERY JUNIOR, Nelson. ANDRADE NERY, Rosa Maria. Comentários ao Código de Processo Civil. Ed. Revista nos Tribunais, 2015. p. 1520.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. (in As Inovações do Código de Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 86.

VOLPE CAMARGO, Luiz Henrique. Art. 702. In Streck, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo. Saravia, 2016. p. 740. 

ZENI, Fernando César. Aspectos Polêmicos da Ação Monitória, artigo publicado no SÍNTESE JORNAL, ano 2 - n. 18 - agosto/1998 - Editora Síntese Ltda.

[i] A ação monitória não estava recepcionada no anteprojeto do Novo Código de Processo Civil e foi incluída já no Senado. Em um primeiro momento, a inserção da monitória foi rejeitada ao fundamento de que o Novo Código adotava uma linha simplificada e que a monitória iria de encontro com esse novo perfil. Conta no voto de rejeição do Senador Valter Pereira: ““Na prática, quando a ação monitória é embargada, o procedimento é similar ao de uma ação de cobrança. Isso significa que, na hipótese de resistência, não existe ganho de tempo de tramitação. Ademais, o projeto adota a linha da simplificação, com a adoção de um procedimento único, orientação que merece ser mantida. Além disso, a forma prevista na Emenda dispensa a realização da audiência de conciliação, divergindo, portanto, de outra das linhas centrais do projeto, que é o estímulo à autocomposição”. O assunto foi posto novamente em debate e a monitória foi incluída, ainda no Senado, ao fundamento de que esse procedimento especial era bastante utilizado no Brasil, com vasta jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça.

[ii] BATISTA DA SILVA, Ovídio. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. XI art. 796-889. Do processo cautelar. 2ª Ed. LEJUR. 1986. p. 31.

[iii] NERY JUNIOR, Nelson. ANDRADE NERY, Rosa Maria. Comentários ao Código de Processo Civil. Ed. Revista nos Tribunais, 2015. p. 1520.

[iv] Art. 701. Sendo evidente o direito do autor, o juiz deferirá a expedição de mandado de pagamento, de entrega de coisa ou para execução de obrigação de fazer ou de não fazer, concedendo ao réu prazo de 15 (quinze) dias para o cumprimento e o pagamento de honorários advocatícios de cinco por cento do valor atribuído à causa.  (..)

[v] Nesse sentido: Já que o oferecimento daquele provoca a automática suspensão do processo e a sentença a ser proferida em cognição exauriente (tutela definitiva) substituirá a decisão proferida em cognição sumária (tutela provisória). Vale dizer, o oferecimento dos embargos à ação monitória retira a eficácia da decisão que defere a expedição do mandado inicial para pagamento (art. 702, § 4º). VOLPE CAMARGO, Luiz Henrique. Art. 702. In STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo. Saraiva, 2016. p. 740. 

[vi] BUENO, Cassio Scarpinella. Custo sistematizado de direito processual civil. v. 2 T. II, 2011, São Paulo: Saraiva, p. 179/180.

[vii] STJ. Resp 1.265.509-SP, Dje 27/03/2015.

[viii] WAMBIER, Luiz Rodrigues. TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil.v.1. 14 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 384-385.

[ix] Ressalvada a exceção da citação por edital que enseja a nomeação de curador especial (art. 72, II), podendo, assim, ofertar embargos por negativa geral. (art. 341, parágrafo único).

[x] Também, no mesmo sentido, Fernando César Zeni (Aspectos Polêmicos da Ação Monitória, artigo publicado no SÍNTESE JORNAL, ano 2 - n. 18 - agosto/1998 - Editora Síntese Ltda.):8. Reconvenção no procedimento monitório. Também não é incompatível com o procedimento monitório a reconvenção (art. 315), na medida em que, com o oferecimento dos embargos, que se dá no prazo de quinze dias, o feito converte-se em ordinário. Assim, só pode o devedor reconvir ao credor, na medida em que ofereça embargos e a reconvenção no mesmo prazo (artigo 297 do CPC). Sendo a modalidade de resposta do réu, a reconvenção, constituindo-se como ação judicial do demandado ao autor do pedido, em cumulação objetiva de ações, deve ser aceita no procedimento injucional, apesar de ter este procedimento especial. Trata-se de cumulação objetiva de ações, não se confinando à defesa o reconvinte, que vai ao ataque, propondo uma outra ação, no dizer de Clito Forniciari Junior, o qual sustenta ainda que o princípio da economia processual tem encontro com o pedido reconvencional. E segundo orienta a melhor doutrina, desde que a ação que se processa seja compatível com o processamento da reconvenção, sua admissão não encontra óbice algum, apesar de no Direito alemão a inoponibilidade de reconvenção ser prevista expressamente, segundo anota J. M. Othon Sidou. Porém, referido jusliterato não deixa de enaltecer a desvirtualização com que vem sendo utilizado o procedimento monitório no direito tedesco.

[xi] THEODORO JÚNIOR, Humberto. (in As Inovações do Código de Processo Civil, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1996, p. 86.

[xii] STJ 4º T., Resp 1.172.448, Min Luis Felioe, j. 18.6.13, DJ 1.7.13

[xiii] Art. 337. Incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar:

I - inexistência ou nulidade da citação;

II - incompetência absoluta e relativa;

III - incorreção do valor da causa;

IV - inépcia da petição inicial;

V - perempção;

VI - litispendência;

VII - coisa julgada;

VIII - conexão;

IX - incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização;

X - convenção de arbitragem;

XI - ausência de legitimidade ou de interesse processual;

XII - falta de caução ou de outra prestação que a lei exige como preliminar;

XIII - indevida concessão do benefício de gratuidade de justiça.

[xiii] Art. 342. Depois da contestação, só é lícito ao réu deduzir novas alegações quando:

I - relativas a direito ou a fato superveniente;

II - competir ao juiz conhecer delas de ofício;

III - por expressa autorização legal, puderem ser formuladas em qualquer tempo e grau de jurisdição.

[xiv] Art. 342. Depois da contestação, só é lícito ao réu deduzir novas alegações quando:

I - relativas a direito ou a fato superveniente;

II - competir ao juiz conhecer delas de ofício;

III - por expressa autorização legal, puderem ser formuladas em qualquer tempo e grau de jurisdição

[xv] VOLPE CAMARGO, Luiz Henrique. Art. 702. In STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo. Saravia, 2016. p. 939. 

[xvi] VOLPE CAMARGO, Luiz Henrique. Art. 702. In STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo. Saravia, 2016. p. 740. 

[xvii] STJ 3ªTurma. Resp 730.861, Min Castro Filho, j. 10.10.06 DJU 13.11.06)

Aplicabilidade Das Astreintes Em Casos De Direito De Visita

O instituto das astreintes no direito processual civil brasileiro significa multa cominatória imposta ao devedor que descumpre decisão judicial de obrigação de fazer e não fazer. As astreintes têm seu caráter eminentemente pautado no sistema francês, isto é, a finalidade é coercitiva, não punitiva ou repressiva.

Assim, a multa pode ser definida, nas palavras de Marcus Vinicius Rios Gonçalves, como um “mecanismo de coerção para pressionar a vontade do devedor renitente que, temeroso dos prejuízos que possam advir ao seu patrimônio, acabará por cumprir aquilo a que vinha resistindo”[i].

A aplicação das astreintes aos institutos de direito de família, especialmente no tocante ao direito de visita, é tema polêmico e que levanta algumas controvérsias. O Superior Tribunal de Justiça, em fevereiro de 2017, decidiu no Resp 1481531/SP causa que versava sobre a possibilidade ou não da execução de astreintes decorrentes de acordo de visitas entabulado entre os genitores[ii].

Em que pese o julgamento do Recurso Especial tenha ocorrido em 2017, o processo havia sido iniciado em 2014, portanto, antes da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, aplicando-se ao caso o Código de Processo Civil de 1973. Mas, as reflexões trazidas no voto acerca da aplicação das astreintes são atuais e capazes de gerar algumas conclusões.

Na decisão de primeiro grau, o juízo não aplicou as astreintes, pois entendeu que a obrigação passou a ser cumprida pelo genitor guardião e extinguiu a ação. O genitor, que tinha direito a visitas, apelou, requerendo a fixação de astreintes para eventual descumprimento futuro da obrigação. O Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a sentença, concluindo que as astreintes deveriam ser fixadas para fazer cumprir obrigação de fazer consistente no direito de convivência do genitor com sua filha. Uma das discussões surgidas nos autos foi a de se as astreintes podem ser fixadas de forma preventiva, ou seja, se poderia ser fixada para um eventual descumprimento futuro.

A parte guardiã ingressou com Recurso Especial alegando que não eram cabíveis as astreintes porque não havia sido descumprido o regime de visitação, e que a multa não poderia ter caráter acautelatório.

O STJ, pela sua Terceira Turma, entendeu ser o direito de visitas um direito fundamental de convivência familiar, daí porque deveria ser entendido enquanto uma obrigação de fazer. Desse modo, a aplicação das astreintes em hipótese de descumprimento do regime de visitas por parte do genitor detentor da guarda da criança, “se mostra um instrumento eficiente, e, também, menos drástico para o bom desenvolvimento da personalidade da criança, que merece proteção integral e sem limitações”[iii].

No contexto do julgado, algumas questões podem ser levantadas: as astreintes podem ser fixadas de forma preventiva? A situação inversa, ou seja, o descumprimento por parte do genitor não guardião, deixando de visitar seu filho, poderia ensejar a aplicação das astreintes?

Para responder ao primeiro questionamento é necessário refletir sobre o direito de visita ou direito de convivência familiar.

A Constituição Federal, no seu art. 227, assegura os direitos das crianças e adolescentes com absoluta prioridade, prevendo o princípio do melhor interesse da criança. E é com base nesse princípio que o direito de visitas ou direito à convivência familiar deve ser interpretado.

Rolf Madaleno entende que o direito à convivência familiar tem a finalidade de favorecer as relações humanas e estimular vínculos afetivos entre pais e filhos[iv]. No mesmo sentido, Maria Berenice Dias entende que a visitação é, além de um direito dos genitores, um direito do próprio filho de convivência, com o objetivo de reforçar os vínculos paterno e materno-filial[v].

Reconhecendo o direito de visitas como um direito do filho de manter o vínculo com ambos os genitores, é possível concluir que se trata de uma obrigação de fazer e, nesse caso, aplica-se à decisão a previsão do art. 497 do CPC: “Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.”

Dúvida que poderia surgir é com relação à aplicação de astreintes a obrigação que não tenha caráter patrimonial, como é o direito de visitas. Porém, o Código de Processo Civil, no capítulo que trata do cumprimento das obrigações de fazer e não fazer, tem previsão expressa no § 5º do art. 536 no sentido de serem aplicadas as mesmas regras ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de fazer e de não fazer de natureza não obrigacional[vi].

Dessa forma, pode-se concluir pelo cabimento das astreintes ao direito de visitas, seja na sentença que prevê tal direito (condenatória ou homologatória), seja em sede de cumprimento de sentença. Assim, a fixação das astreintes também pode ser preventiva. E mais, pensando-se no melhor interesse da criança e adolescente, a fixação de astreintes para o descumprimento do estipulado com relação ao direito de visitas é uma opção bem menos traumática para a criança e o adolescente. A falta de estipulação de astreintes poderia gerar uma ação de busca e apreensão de menor, muito mais invasiva e traumatizante para todos os envolvidos.

Com relação ao segundo ponto, ou seja, a questão do descumprimento por parte do genitor não guardião que deixa de visitar seu filho, não há unanimidade na doutrina e jurisprudência acerca da possibilidade de incidência das astreintes. Para se chegar a uma conclusão, é necessário refletir sobre a existência ou não de dever do genitor não guardião em visitar.

Tomando como base a conclusão do Recurso Especial já mencionado, sendo o direito de visita um direito fundamental baseado no melhor interesse da criança e do adolescente, a conclusão lógica vai no sentido da aplicabilidade das astreintes, isto é, é possível a fixação de multa em ambos os casos, tanto na hipótese do genitor guardião dificultar o exercício do direito de visitas, quanto no caso da inércia do genitor não guardião em cumprir o seu dever.

Mas há entendimentos contrários a esse na prática. Exemplifica-se com os seguintes julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DE VISITAS. MULTA PELO DESCUMPRIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. A imposição de multa em caso de descumprimento do dever de visita não constitui a forma mais adequada de garantir o direito do filho ao convívio com o pai, eis que o relacionamento entre ambos deve se desenvolver a partir da livre e espontânea vontade das partes. RECURSO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70016868333, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 01/11/2006)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE APLICAÇÃO DE MULTA PELO DESCUMPRIMENTO DAS VISITAS.

1. Não cabe imposição de multa pecuniária por eventual descumprimento de parte da genitora, já que o interesse em disputa transcende a questão meramente econômica, situando- se no plano do direito do filho de conviver com o genitor.

2. A regulamentação de visitas materializa o direito do filho de conviver com o genitor não-guardião, assegurando o desenvolvimento de um vínculo afetivo saudável entre ambos, devendo ser resguardado sempre o melhor interesse da criança, que está acima da conveniência dos genitores. Recurso desprovido. (TJ-RS - AI: 70047324876 RS, Relator: Roberto Carvalho Fraga, Data de Julgamento: 25/07/2012, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 31/07/2012).

Os julgados acima citados, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, primaram pela liberdade e espontânea vontade do não guardião e filho para a construção de um bom relacionamento familiar. Nesse sentido, classificaram as visitas enquanto uma faculdade, e não um dever.

Em sentindo contrário, defendendo a aplicação das astreintes na hipótese de inércia daquele que deveria visitar, Rolf Madaleno entende que “A multa tem ampla incidência na execução de obrigação de fazer, como sucede no dever ou direito de convivência, podendo ser imposta em caso de descumprimento do acordo, ou da pontual determinação das visitas”[vii]. Concluindo também pela possibilidade da aplicação das astreintes para o genitor não guardião, Adriane Medianeira Toaldo, Claudia Schmitt Rieder e Eliane Celina Goulart Leal Severo concluem que a aplicação das astreintes nessa hipótese pode até mesmo reverter a conduta do obrigado inadimplente[viii].

No mesmo sentido, Dimas Messias de Carvalho: “o descumprimento do dever, da obrigação jurídica e moral do pai não guardião, autoriza o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, a imposição de multa, da mesma forma em que se aplica ao genitor guardião que dificulta ou impede as visitas”[ix]

Nessa mesma linha, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios posiciona-se pela possibilidade de fixação de multa cominatória ao genitor que descumpre o dever de visita do filho, ao terceirizar tal obrigação para a família. Vejamos:

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. FIXAÇÃO DE MULTA POR DESCUMPRIMENTO. POSSIBILIDADE. DEVER DO GENITOR. DIREITO DA CRIANÇA. EXERCÍCIO POR PARENTES. NATUREZA PERSONALÍSSIMA. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. O direito às visitas há muito deixou de ser um direito do genitor, sendo visto mais como um direito do filho de conviver com seu pai, sendo essa obrigação infungível, personalíssima, não podendo ser exercida por parentes (Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, 8ª ed., p. 456).

2. É cabível e conta com amparo legal a fixação de multa por descumprimento do dever de visitas, nos dias e horários aprazados.

3. Apelo não provido. Sentença mantida.[x]

Infere-se da decisão que o direito de visita faz nascer obrigação de fazer infungível e de caráter personalíssimo, daí porque não pode a visitação ser terceirizada, nem mesmo para outros membros da família.

Diante do exposto, conclui-se que as astreintes são um importante mecanismo para tornar efetiva a decisão do juiz no caso de descumprimento do direito de visitação, reconhecendo que o direito de visitas deve ser entendido não apenas enquanto direito do genitor não guardião, mas, também, como direito do filho à convivência familiar. Dessa forma, são cabíveis as astreintes tanto na hipótese em que o genitor guardião desrespeite o regime de visitas ou convivência estipulado, quanto para forçar o genitor não guardião a cumprir o seu dever de estar com seu filho.

Notas e Referências

[i] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, Direito Processual Civil, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 762.

[ii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 148153. 3. Turma. Relator: Ministro Moura Ribeiro, j. 16 fev. 2017. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201401869064&dt_publicacao=07/03/2017>. Acesso em: 15 set. 2020: 09:50.

[iii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. REsp 148153. 3. T. Relator: Ministro Moura Ribeiro. j. 16 fev. 2017. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201401869064&dt_publicacao=07/03/2017>. Acesso em: 15 set. 2020: 09:50.

[iv] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 10. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 808.

[v] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 532-534.

[vi] “Art. 536, § 5º O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de fazer e de não fazer de natureza não obrigacional”

[vii] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 10. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 816.

[viii] TOALDO, Adriane Medianeira; RIEDER, Claudia Schimitt; SEVERO, Eliane Celina Goulart Leal. O direito à convivência familiar e a possibilidade jurídica da multa cominatória. Revista Justiça & História, v. 10, n. 19-20, 2010, p. 223.

[ix] CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 512-513.

[x] DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. Apelação n. 20140110171334. Relator: Desembargador Arnoldo Camanho de Assis. Revisor: Sérgio Rocha 4. Turma Cível, j. 18 mar. 2015. Diário de Justiça Eletrônico, 30 mar. 2015. Disponível em: <https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordaoGet&baseSelecionada=BASE_ACORDAOS&numeroDoDocumento=856472&idDocumento=856472>. Acesso em: 17 set. 2020, 15:32.

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Audiências virtuais x Devido processo legal constitucional: uma contradição aparente

As audiências por videoconferência foram instituídas pela Resolução nº 314 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como forma de dar continuidade aos processos, enquanto as políticas de isolamento social se fizerem necessárias, em razão da pandemia da Covid-19.

Embora, desde 2006, com a instituição do processo judicial eletrônico pela Lei nº 11.419/2006, já fosse possível a prática de atos eletrônicos, as audiências ainda ocorriam, primordialmente, de forma presencial.

O aumento da produtividade do Poder Judiciário está sendo comemorado pelo CNJ. Segundo dados apresentados no seminário online “Trabalho remoto no Judiciário: resultados do uso da plataforma Webex[1], mais de 366 mil videoconferências foram realizadas no âmbito do Poder Judiciário e 19.616 salas de reuniões foram criadas.  Em alguns tribunais, como é o caso do TJMG, registrou-se um aumento de 40% da produtividade.

Alguns aspectos positivos podem ser apontados pela instituição dessas audiências: aumento da produtividade dos órgãos do Poder Judiciário, celeridade processual e avanço tecnológico.

Entretanto, o aumento da produtividade deve ser analisado criteriosamente, pois a quantidade não necessariamente representa a qualidade. Enquanto magistrados e órgãos do Poder Judiciário comemoram os resultados promovidos pelas plataformas virtuais, advogados apontam algumas questões a serem aprimoradas, com base em experiências nas audiências telepresenciais.

Recentemente, foi noticiado que a juíza da 2ª Vara do Trabalho de Cabo Frio (RJ) silenciou o microfone de um advogado, enquanto ele se manifestava em uma audiência por videoconferência. Segundo foi noticiado, o advogado Marcos Chehab Maleson teve o microfone silenciado “enquanto fazia uso autorizado da palavra para pedir que fosse registrado em ata o fato de uma das testemunhas da outra parte estar acompanhada durante a oitiva”[2]. A justificativa para o ato foi no sentido de que a audiência estaria sendo gravada e que os requerimentos do advogado não precisariam ser registrados no termo de audiência.

As audiências de instrução e julgamento telepresenciais têm sido alvo de críticas por parte da doutrina, tendo muitos defendido a sua inviabilidade. As principais dificuldades apresentadas para a sua realização são: a) a ausência de publicidade; b) dificuldade de manutenção de incomunicabilidade no depoimento pessoal; c) dificuldade de identificação das testemunhas; d) dificuldade de intimação, incomunicabilidade e inquirição das testemunhas; e) valoração da prova pelo magistrado; e f) instabilidade de tráfego de dados[3].

O art. 459 do CPC/2015 prevê que o juiz não poderá admitir perguntas que puderem induzir a resposta. Entretanto, quando se trata de audiência telepresencial, há uma enorme dificuldade de fiscalização por parte do magistrado, pois, como aponta a doutrina especializada, poderá o advogado fazer uma pergunta, e, logo após, fora do espectro da câmera, passar a resposta para a testemunha[4].

Em que pese a justificativa da magistrada do caso narrado, não há qualquer relação entre o fato de as audiências estarem sendo gravadas e o direito de o advogado solicitar o registro, no termo de audiência, dos motivos pelos quais a prova deveria ser desconsiderada. Isto porque a prova seria registrada pelo documento eletrônico (gravação), mas a argumentação do advogado não, já que seu microfone foi desligado.

O princípio do contraditório deve ser interpretado segundo duas garantias: a) de participação (de ser ouvido) e; b) de possibilidade de influência na decisão (ter a oportunidade de desenvolver argumentação capaz de influenciar no julgamento)[5].

O fato de a juíza desligar o microfone do advogado durante a sua fala em audiência por videoconferência violou o contraditório em suas duas garantias: participação e possibilidade de influência na decisão.

Segundo Humberto Theodoro Júnior[6], devem ficar consignados no termo de audiência: a) as presenças dos sujeitos do processo; b) todos os requerimentos formulados durante os trabalhos; c) as decisões do juiz com relação aos requerimentos; d) o debate oral; e, se for o caso; e) a sentença.

O termo de audiência possui a função de assegurar a perpetuação da memória do conteúdo do ato processual, bem como facilitar a reapreciação da prova oral produzida quando do eventual exercício do duplo grau de jurisdição[7].

Conforme prescreve o inciso X, do art. 7º do Estatuto da Advocacia, é direito do advogado usar da expressão “pela ordem” em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento.

Portanto, o ato da juíza de se silenciar o microfone do advogado, representa uma afronta ao devido processo legal constitucional.

Conforme Brêtas, a mais importante das garantias processuais constitucionais é o devido processo legal que deve ser compreendido como um:

“(...) bloco aglutinante e compacto de vários direitos e garantias fundamentais e inafastáveis, ostentados pelas pessoas nas suas relações com o Estado, quais sejam: a) direito de amplo acesso à jurisdição; b) garantia ao juízo natural; c) garantia do contraditório; d) garantia de plenitude de defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, aí incluído o direito da parte à produção da prova e à presença do advogado ou defensor público; e) garantia da fundamentação racional das decisões jurisdicionais, com base no ordenamento jurídico vigente (reserva legal); f) garantia de um processo sem dilações indevida”[8].

Assim, a garantia fundamental do devido processo legal se integra na principiologia normativa maior do devido processo constitucional. Logo, o processo constitucional é metodologia de garantia de direitos fundamentais. Portanto, qualquer processo que viole tal metodologia estará apartado do que a Constituição de 1988 previu em seu art. 5º (incisos LIII, LIV e LV), como premissa para garantia de direitos fundamentais.

Quando tais fatos, como o que ocorreu na 2ª Vara do Trabalho de Cabo Frio (RJ), de desrespeito a direitos e garantias fundamentais, acontecem, concretiza-se inarredável violação à garantia fundamental do devido processo legal e se confirma a necessidade de ressaltar a importância do contraditório, como garantia de influência e não surpresa, e da ampla defesa, como o legislador do CPC/2015 fez.

Lamentavelmente, atitudes autoritárias por parte de magistrados têm ocorrido desde de que foi reconhecido, pela Lei n.13.979/2020, o estado de calamidade pública no Brasil em razão da pandemia do Corona vírus[9]. No que tange à função jurisdicional do Estado, o CNJ regulamentou a suspensão de prazos processuais, as práticas processuais durante o período de pandemia, a fluências dos prazos dos processos eletrônicos – Resoluções n. 313/2020, 314/2020 e 322/2020[10]. Regulamentou, ainda (art. 6º, Resolução n. 314/2020), a possibilidade de realização de audiências e de sessões de julgamento por juízos e tribunais via videoconferência, recomendando a utilização da plataforma “Cisco Webex”. Ressalte-se que o CPC/2015 já previu a realização de atos processuais por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, no art. 236, §3º.

Mais especificamente, o TRT da 1ª região, circunscrição jurisdicional em que o fato narrado ocorreu, disciplinou, em 04 de maio de 2020, por meio do Ato Conjunto n. 6/2020[11], a adoção de meios telemáticos para a realização de audiências e sessões de julgamento, em caráter excepcional e em decorrência da pandemia causada pelo Coronavírus. Em tal Ato - art. 1º, §1º -, consta expressamente que tais ferramentas telemáticas “observarão os princípios do devido processo legal, da duração razoável do processo e o do contraditório e ampla defesa”, indubitavelmente violados na audiência realizada na 2ª Vara em Cabo Frio (RJ). Ademais, o art. 2º do mencionado Ato Conjunto n. 6/2020 evidencia que não basta que as audiências sejam gravadas. Além da gravação, deve haver o registro dos atos processuais praticados em ata.

Ademais, a incessante busca pela efetividade processual e pela produtividade do Poder Judiciário não pode implicar na supressão dos direitos e garantias processuais constitucionais e infraconstitucionais, sob pena da promoção de um verdadeiro retrocesso no âmbito do devido processo legal constitucional.

A ampliação da prática de atos processuais de forma eletrônica promovida em razão da pandemia do Covid-19 tem demonstrado que a utilização dos meios eletrônicos pode ser uma aliada na relação da produtividade dos órgãos do Poder Judiciário. Entretanto, este avanço não deve ser comemorado sem que se considere a qualidade da atuação dos sujeitos do processo e da maneira como os atos processuais estão sendo praticados.

Após a Constituição de 1988 ter instituído um verdadeiro projeto teórico-constitucional-democrático, é inaceitável que se pratiquem atos processuais sem o adequado respeito às premissas do devido processo legal constitucional, sobretudo em momento de pandemia, em que se possibilitou sua prática por meios virtuais para que o cidadão não ficasse prejudicado. Ademais, experiências como a descrita neste texto motivam sérias reflexões acerca da real necessidade de se realizar audiências, sobretudo audiências de instrução probatória, durante o período de isolamento social. Isso porque, o direito de provar passa a ser garantia constitucional inafastável, concretizadora do devido processo legal, em conexão direta com os princípios institutivos do processo (contraditório, ampla defesa e isonomia)[12].

Toda e qualquer audiência, assim como os atos processuais, devem ser realizados sob o manto do devido processo legal constitucional, a fim de que nenhum direito ou garantia fundamental possam ser violados.

Notas e Referências

[1] Seminário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça, em 7 de agosto de 2020, em seu canal no Youtube. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=XI3bgkBRSTA>. Acesso em 14 set. 2020.

[2] Revista Consultor Jurídico. Juíza do RJ desliga microfone de advogado em videoaudiência. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-ago-27/juiza-rj-desliga-microfone-advogado-videoaudiencia>. Acesso em 14 set. 2010.

[3] ALVES, Lucélia de Sena; SOARES, Carlos Henrique. Audiências telepresenciais na Justiça Cível e sua compatibilidade com o devido processo constitucional. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/331078/audiencias-telepresenciais-na-justica-civel-e-sua-compatibilidade-com-o-devido-processo-constitucional>. Acesso em 14 set. 2020.

[4] ALVES, Lucélia de Sena; SOARES, Carlos Henrique. Audiência telepresencial e devido processo constitucional. No prelo. Belo Horizonte: Editora D’Plácido. 2020.

[5] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 21. edição. Salvador: Jus Podivum, 2019, p. 107.

[6] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: procedimentos especiais. Vol. I. 60ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 889.

[7] CÂMARA, Alexandre Freitas. Atos de cooperação judiciária devem ser documentados (e o Enunciado 687 do FPPC). Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-abr-10/alexandre-camara-documentacao-atos-cooperacao-judiciaria#_ftn2>. Acesso em 14 set. 2020.

[8] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018. p. 90-91.

[9] Em 06 de fevereiro de 2020 entrou em vigor a Lei n.13.979, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

[10] Resolução CNJ n.313/2020, disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3249>; Resolução CNJ n.314/2020, disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3283>; Resolução CNJ n.322/2020, disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3333>, todas acessadas em: 13. Set. 2020.

[11] Ato Conjunto n. 6/2020 do TRT da 1ª Região (RJ), disponível em: <https://bibliotecadigital.trt1.jus.br/jspui/bitstream/1001/2253571/4/Ato2020-0006_PresCorreg_Rep-C.htm>. Acesso em: 13. Set. 2020.

[12] BORGES, Fernanda Gomes e Souza. A prova no processo civil democrático. Curitiba: Juruá, 2013. p. 32 e 50.

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