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Da alegação de violência doméstica como justificativa para dispensa de audiência de conciliação: comentários ao Enunciado 765 do FPPC

Cecilia Hildebrand[i]

Marina Sanches[ii]

Em 2025, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), um evento democrático que reúne processualistas civis anualmente em Brasília e aprova enunciados interpretativos e boas práticas do processo civil por unanimidade em plenária, aprovou importante enunciado com objetivo de prestigiar tratados internacionais e legislação protetiva para pessoas em situação em situação de violência com a seguinte redação:

Enunciado 765. (arts. 334, § 8º, 694 e 695) A alegação de violência doméstica ou familiar é justificativa para o não comparecimento à audiência de conciliação ou mediação, sem aplicação de multa. (Grupo: Sistema brasileiro de justiça multiportas; XIV FPPC-Brasília)

A audiência de tentativa de conciliação e mediação previstas nos arts. 334 e 695, do CPC é contraindicada nas situações em que uma das partes está em situação de violência doméstica, pois essa parte está em situação de vulnerabilidade.

Além disso, a presença da pessoa vítima de violência no mesmo ambiente que seu agressor, ainda que de maneira virtual[iii] seria uma forma de revitimizá-la, conduta que deve ser evitada pelo Poder Judiciário em razão das previsões da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e suas recomendações, além do protocolo do CNJ para julgamento com perspectiva de gênero.

A não realização de audiência em situações de violência compactua-se com as previsões da Recomendação Geral nº 35 da CEDAW, que prevê que, os casos de violência, não sejam obrigatoriamente encaminhados a procedimentos alternativos de resolução de litígios, incluindo mediação e conciliação e que os procedimentos alternativos não devem constituir obstáculo ao acesso das mulheres à justiça formal[iv].

Com a alteração promovida pela Lei 14.713/2023 ao Código de Processo Civil, incluindo o art. 699-A, que determina que o juiz indague as partes e ao Ministério Público para os fins do art. 695, abriu-se a possibilidade ao juízo de apurar a situação de violência doméstica nos casos concretos e, se for o caso, dispensar a audiência de conciliação nas ações de guarda.

No mesmo sentido, a Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo editou o Provimento nº 39/18, que, ao dispor regramentos para atuação procedimento dos juízos de primeira instância, considerou que “o disposto no artigo 41 da Lei Maria da Penha se mostra, em primeira análise, incompatível com a conciliação/mediação prevista no artigo 695 do Código de Processo Civil, porque a violência sofrida pela vítima de violência doméstica e familiar retirada mulher a sua capacidade volitiva, e, via de consequência, de transigir”[v].

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), no julgamento da Apelação Cível nº 1.0000.23.256061-5/001, anulou um acordo de partilha de bens em que uma das partes era vítima de violência doméstica ou familiar. Para o colegiado, houve vício de consentimento por coação, posto que “a violência doméstica altera a percepção da vítima que, temendo por sua própria vida e de seus próximos, tem o consentimento corrompido pelo temor excessivo”.

No FPPC, tal preocupação já havia sido debatida em outras edições, tendo sido a proposta inicial: “O juiz poderá dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações de família em que a mulher estiver em situação de violência”. Foram vários os ajustes de redação, trocando mulher por parte em situação de violência, tendo em vista outras leis protetivas, como estatuto do idoso e estatuto da criança e adolescente. Todavia, em plenária, só foi possível aprovar com o acréscimo de texto restritivo, ficando o enunciado inicialmente com a seguinte redação: Enunciado “639. (arts. 695 e 334, §4º, II) O juiz poderá, excepcionalmente, dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações de família, quando uma das partes estiver amparada por medida protetiva”. No IX FPPC-Recife a redação foi revista para abarcar outras ações: “(arts. 334, §4º, II e 695) O juiz poderá, excepcionalmente, dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações em que uma das partes estiver amparada por medida protetiva”.

E, finalmente, em 2024, houve nova proposta de revisão no XIII FPPC sugerida por Cecilia Hildebrand com a seguinte redação: “O juiz deverá dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações de família quando uma das partes estiver amparada por medida protetiva ou quando houver requerimento da pessoa em situação de violência”. Tal redação não foi aprovada na plenária que sugeriu ajustes, ficando o enunciado revisado com a seguinte redação: “639. (arts. 334, §4º, II e 695) O juiz poderá dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações de família, quando uma das partes estiver amparada por medida protetiva. (Grupo: Mediação e conciliação)”. Essa é a atual redação do enunciado 639.

Em 2025, buscando ampliar o alcance prático, novo enunciado foi elaborado por Nilsiton Aragão, Cecilia Hildebrand e Marina Sanches, com a seguinte redação: Enunciado 765. (arts. 334, § 8º, 694 e 695) A alegação de violência doméstica ou familiar é justificativa para o não comparecimento à audiência de conciliação ou mediação, sem aplicação de multa. (Grupo: Sistema brasileiro de justiça multiportas; XIV FPPC-Brasília).

Esse enunciado é mais abrangente que o anterior, aplicável a qualquer procedimento e não exige a prévia existência de concessão de medida protetiva. Afinal, “existe uma parcela da violência que não entra nas estatísticas oficiais, por razões diversas como desconfiança nas instituições, fatores psicológicos como medo e culpa, burocracia e dificuldade do acesso a serviços, entre outros.[vi]

Importante destacar a expressão “alegação de violência”, que se coaduna com a redação do § 4º do art. 19 da Lei Maria da Penha, que dá valor à mera alegação da situação de violência pela ofendida. Diz a redação do dispositivo: “As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes”.

As violências contra mulheres ocorrem, majoritariamente, no âmbito familiar, sendo, em 63% dos casos, praticados por parceiros íntimos, em 21,2% por ex-parceiros íntimos e em 8,7% por familiares[vii]. Ao final dessa relação, a mulher-vítima precisa regularizar questões nas Varas de Família, tais como: divórcio, partilha de bens, alimentos, guarda e convivência. Ocorre que é comum a postura de magistrados e magistradas em promoverem uma cisão na prestação jurisdicional ao separarem o que deve ser alegado nas Varas de Família e o que deve ser dirimido no Juízo das Varas Especializadas em Violência Doméstica ou Familiar contra a Mulher. Tal conduta desconsidera a interseccionalidade das questões apresentadas, especialmente quando envolvem relações familiares atravessadas por assimetrias de poder e marcadas por violência de gênero. Dessa forma, o mais novo enunciado do FPPC é vanguardista ao prever uma maior cooperação entre os Juízos de Família e Violência Doméstica na proteção integral de mulheres.

Noutro giro, continuar designando audiências de conciliação ou mediação, cuja parte alega ser vítima de violência doméstica ou familiar, pode ser considerada violência institucional de gênero, nos termos do artigo 15-A da Lei de Abuso de Autoridade (Lei Nº 13.869/2009), acrescido pela Lei Nº 14.321/2022, que afirma:

Violência Institucional. Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade: I - a situação de violência; ou II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços). § 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.

Trata-se, portanto, de um procedimento desnecessário e invasivo, sobretudo considerando que os advogados de ambas as partes possuem legitimidade para conduzir tratativas extrajudiciais na defesa dos interesses de seus representados.

A própria Lei Maria da Penha, alterada pela Lei n.º 13.505/2017, prevê, no artigo 10-A, § 1º, III, a diretriz de “não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.”

É certo que “impor às mulheres vítimas de violência doméstica o comparecimento de forma compulsória à audiência de conciliação em ações de família, as quais já fora demonstrado o seu desinteresse, é compactuar com uma leitura fria e literal do art. 695 do CPC, ignorando, inclusive, a obrigação de se adotar uma perspectiva de gênero no exercício da judicatura (Resolução 492/2023 do CNJ). Mais do que isso. É a concessão por parte do Estado-juiz de espaço institucional apto à germinação de situações traumatizantes e que violam o direito à integridade física e psicológica de mulheres vítimas de violência doméstica.[viii]

Flavia Hill[ix] e Fernanda Tartuce[x] entendem possível a dispensa da audiência em situações de violência.

América Nejaim e Cecilia Hildebrand destacam que “basta a alegação da pessoa que sofre violência para justificar a dispensa da audiência, pois a palavra da vítima tem valor probante”[xi].

Dessa forma, o juiz tem o dever de dispensar a audiência quando a vitima assim o requerer ou aceitar como justificativa suficiente para a não imposição da multa a alegação de situação de violência por parte dela.

A discussão de temas processuais com perspectiva de gênero no FPPC demonstra a maturidade do evento e um olhar para um processo civil que caminha rumo à igualdade processual de gênero.

Entender que a alegação da pessoa em situação de violência seja justificativa suficiente para a sua ausência na audiência de conciliação e mediação pode evitar a violência institucional e proteger a integridade da vítima, deixando o processo civil mais próximo do cumprimento dos tratados internacionais e normas protetivas.

 

[i] Mestre em Direito Processual pela UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora. Advogada. Especialista em Direito Processual Civil. Vice-presidente da Associação Brasileira Elas no Processo (ABEP), membra do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil IBDP) e da ABMCJSP.

[ii] Mãe solo do Vitor, de seis anos. Advogada para mulheres, com perspectiva de gênero, nas áreas de Direito de Família e Violência Doméstica ou Familiar Contra a Mulher. Graduada em Direito na Universidade Cândido Mendes (UCAM). Membra da Associação Brasileira Elas no Processo (ABEP).

[iii] No dia 02/04/2025, foi noticiado que uma mulher foi mantida refém durante uma audiência online sobre violência doméstica. Segundo informações da PM, o sequestro aconteceu na noite de segunda-feira, 31, no Recanto das Emas, mas veio à tona apenas na tarde desta terça, enquanto a vítima participava de uma audiência judicial virtual relacionada à lei Maria da Penha. Durante a sessão, realizada dentro de um veículo, ela estava acompanhada pelo próprio agressor, que respondia por agressões anteriores. Integrantes do Ministério Público, do Tribunal de Justiça e da Defensoria Pública perceberam que a mulher estava sendo coagida e, na verdade, era vítima de um sequestro. Notícia disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/427543/mulher-vitima-de-violencia-e-sequestrada-durante-audiencia-virtual. Acesso em: 03 abr. 2025.

[iv] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Recomendação Geral n. 35 sobre violência de gênero contra as mulheres do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/769f84bb4f9230f283050b7673aeb063.pdf. Acesso em: 20 mar. 2025.

[v] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. PROVIMENTO CG Nº 39/2018. Disponível em:http://esaj.tjsp.jus.br/gecon/legislacao/consulta?deTiponorma=%22PROVIMENTO%22&deOrgaoexpedidor=%22CORREGEDORIA+GERAL+DA+JUSTI%C3%87A+DO+ESTADO+DE+S.PAULO%22. Acesso em: 07 mar. 2025.

[vi] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024, p. 136. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/253. Acesso em: 15 abr. 2025.

[vii] Ibid., p. 16.

[viii] HEEMANN, Thimotie Aragon. Violência Doméstica: ações de família e dispensa da audiência de conciliação. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/violencia-domestica-acoes-de-familia-e-dispensa-da-audiencia-de-conciliacao. Acesso em: 15 abr. 2025.

[ix] HILL, Flavia Pereira. Uns mais iguais que os outros: Em busca da igualdade (material) de gênero no Processo Civil brasileiro. In: Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro, a. 13, v. 20, n. 2, maio‑ ago. 2019, p. 221.

[x] TARTUCE, Fernanda. Audiência consensual inicial, violência doméstica e empoderamento. 2017. Disponível em: https://www.fernandatartuce.com.br/wp-content/uploads/2017/11/Dispensa-da-audiencia-inicial-em-acoes-de-familia-Fernanda-Tartuce.pdf. Acesso em: 16 abr. 2025.

[xi] NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima; HILDEBRAND, Cecilia Rodrigues Frutuoso. Há obrigatoriedade da designação da audiência de mediação e conciliação em ações de família com violência doméstica e familiar? Revista de Direito do Poder Judiciário do Rio de Janeiro, v.2, n.2, jan. jul. 2024. Disponível em: https://portaltj.tjrj.jus.br/documents/d/portal-conhecimento/014-revistadireito2024-02-americacardosobln-ceciliarfhildebrand. Acesso em: 16 abr. de 2025.

O tema 91 do IRDR do TJMG e a flagrante violação do Direito do Jurisdicionado de escolher a Jurisdição Estatal para a solução dos conflitos

O art. 5º, XXXV da CF traz a norma que garante ao jurisdicionado o direito potestativo de procurar a tutela jurisdicional em caso de ameaça ou de efetiva violação de direitos. Dele decorre o direito fundamental e abstrato de ação concedido a qualquer jurisdicionado para provocar o Poder Judiciário na realização da sua missão jurisdicional de solucionar os conflitos de interesses (jurisdição contenciosa) ou de homologar os interesses convergentes (jurisdição voluntária). 

No cenário jurisdicional brasileiro evidencia-se o número crescente de conflitos sociais e, com eles, a excessiva quantidade de ações judiciais, inclusive de natureza consumerista, superlotando, em escala geométrica, o Poder Judiciário.  Essa excessividade de ações judiciais provoca a maléfica morosidade nas soluções dos conflitos e, consequentemente, faz com que a prestação jurisdicional seja desprovida de efetividade, pela inexisência de celeridade processual.

Esse caótico cenário jurídico-social decorrente do fenômeno da judicialização dos conflitos causa uma verdadeira insatisfação da sociedade, o que faz emergir, cada vez mais, a necessidade da implantação de meios alternativos de solução de conflitos e a disponibilização de outros acessos para a busca da justiça, caracterizando o sistema de justiça multiportas.[2]

Dentro desse olhar para o amplo acesso à ordem jurídica, inspirado nas ideias dos juristas Mauro Cappelletti e Bryant Garth [3], que apresentaram propostas de solução de conflitos concentradas na necessidade de criar vários e novos meios de solução de conflitos, mais céleres e eficazes, dentre eles a conciliação, a arbitragem e a mediação, como métodos de interferência apaziguadora para preservar, da melhor forma, as relações jurídicas [4], o CNJ, por meio da Resolução n. 125/2010, implementou a política de divulgação da mediação e das outras formas alternativas de conflitos, criando, para tanto, os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos.

Em reforço à releitura do princípio constitucional, o CPC de 2015 traz, dentro de suas normas processuais fundamentais, uma redação modernizada com o seguinte texto presente no caput do art. 3º: “Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.” O legislador, propositalmente, trocou a expressão “apreciação do Poder Judiciário” prevista no art. 5º, LXXX, da CF, por “apreciação jurisdicional”, dando poderes jurisdicionais para além do Estado, na resolução de conflitos de interesses, excluindo expressamente o monopólio da jurisdição estatal [5].

Referida conclusão é de fácil extração por meio da leitura sistemática de diversos dispositivos legais espalhados na legislação processual (arts. 3º, §§ 1º, 2º e 3º, 42 e 175), que atribuem ao árbitro e ao mediador ou conciliador (judicial ou extrajudicial), poderes para concretizarem a solução do conflito, seja por meio da arbitragem, ou pelo método autocompositivo da mediação e da conciliação.  Além de proporcionar a abertura do acesso à justiça por outras portas além do Poder Judiciário, o legislador direciona aos juízes, ao Ministério Público, ao Defensor Público e à advocacia o dever de fomentar os métodos autocompositivos antes e no decorrer da ação judicial.

Entretanto, esse dever de incentivo à autocomposição tem sido interpretado de forma equivocada por alguns julgadores, os quais estabelecem que o interesse de agir presente na redação do art. 17 do CPC deve ser representado pela obrigatoriedade do jurisdicionado de comprovar a tentativa extrajudicial de autocomposição do conflito social, configurando-o como condição de acesso ao Poder Judiciário para obter a resolução do mérito da sua pretensão autoral, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito com base no art. 485, VI, do CPC.

Esse foi o posicionamento do TJMG, ao estabelecer a tese jurídica no tema 91 do IRDR de n. 1.0000.22.157099-7/002, nos seguintes termos:

“A caracterização do interesse de agir nas ações de natureza prestacional das relações de consumo depende da comprovação da prévia tentativa de solução extrajudicial da controvérsia. A comprovação pode ocorrer por quaisquer canais oficiais de serviço de atendimento mantido pelo fornecedor (SAC); pelo PROCON; órgão fiscalizadores como Banco Central; agências reguladoras (ANS, ANVISA, ANATEL, ANEEL, ANAC, ANA, ANM, ANP, ANTAQ, ANTT, ANCINE); plataformas públicas (consumidor.gov) e privadas (Reclame Aqui e outras) de reclamação/solicitação; notificação extrajudicial por carta com Aviso de Recebimento ou via cartorária. Não basta, nos casos de registros realizados perante o Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) mantido pelo fornecedor, a mera indicação pelo consumidor de número de protocolo”.

O acórdão trouxe como argumento a terceira onda renovatória de acesso à justiça de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, com a consagração do sistema de justiça multiportas, afirmando que a solução judicial deixa de ter primazia nos litígios que permitem a autocomposição e passa a ser a ultima ratio. Dentro dessa fundamentação, pondera que a exigência de prévia tentativa de solução extrajudicial para fins de análise do interesse de agir não viola a inafastabilidade da jurisdição e o acesso ao Poder Judiciário, consoante jurisprudência do STF, e que o intuito da tese jurídica é harmonizar os princípios constitucionais e os diversos direitos fundamentais inseridos na Carta Magna a fim de se cumprir com os reais e principais objetivos do Estado Democrático de Direito.

Todavia, a tese jurídica e os argumentos apresentados não estão harmonizados com os ideais democráticos e a garantia constitucional de acesso à justiça.  A interpretação do art. 3º, §§ 2ºe 3º do CPC deve ser feita com base na força normativa da Constituição Federal (art. 1º, CPC).  Do enunciado do texto legal, resta límpido que a intenção do legislador foi fazer emergir o princípio do incentivo à justiça coexistencial pautado na solução consensual dos conflitos, gerando um dever conjunto do Poder Judiciário, da advocacia, da defensoria pública e dos membros do Ministério de fomentarem a autocomposição, seja antes ou durante da propositura do processo judicial.  Ou seja, um verdadeiro protagonismo conjunto no esforço do conflito vir a ser solucionado por meio dos métodos consensuais.

Contudo, em paralelo ao princípio do incentivo à utilização da autocomposição, as normas processuais concedem, de forma flagrante, o empoderamento do jurisdicionado, dando-lhe o direito potestativo de optar pela via que mais lhe pareça adequada para a solução do conflito. Ou seja, poderá escolher a via extrajudicial da arbitragem, da mediação ou da conciliação; bem como a via do processo judicial mediante a provocação do Poder Judiciário. 

Destarte, em seu novo enfoque, o acesso à justiça não pode restringir-se ao formalismo legal, isto é, como pura instrumentalidade processual, mas sim como um direito fundamental de caráter substancial, o qual passa a ter como epíteto, o direito de obtenção a uma ordem jurídica justa e adequada, isto é, deve-se garantir ao jurisdicionado o direito previsto em lei de utilizar todos os meios de solução de conflitos disponibilizados para a sociedade, a fim de alcançar a justiça, independentemente da forma que for alcançada [6].

Pois bem, contemplando o acesso à justiça como um direito fundamental substancial, instrumento de proteção de outros direitos fundamentais, nasce para o Estado, o dever de assegurá-lo, por meio de mecanismos potencializadores da igualdade real à sua concretização. Esses mecanismos podem decorrer de propostas para oferecer ao jurisdicionado uma prestação jurisdicional mais célere e eficaz, a fim de obter um resultado útil e eficiente; como também por intermédio de propostas incentivadoras das formas de pacificação extrajudiciais de conflitos, objetivando democratizar a distribuição da justiça [7].

O Poder Judiciário, ao ser provocado pelo jurisdicionado, passa a ter o dever de, sempre que possível, a depender da natureza do litígio, promover a solução do conflito pela via autocompositiva (justiça coexistencial), sendo a heterocomposição (justiça impositiva), a via residual, como se extrai da leitura da redação dos arts. 139, IX e 334 do CPC.

Não se pode confundir esse dever estatal de estímulo à autocomposição com uma “falsa” necessidade do jurisdicionado de comprovar, junto ao Poder Judiciário, a utilização prévia da via extrajudicial de solução consensual.   Em nenhum momento, o legislador estabeleceu norma escrita que autorizasse o juiz a impor esse obstáculo para que o jurisdicionado possa exercer o seu direito de ação, ou seja, de obter a solução do seu conflito pela via judicial. Esse ativismo judicial, vindo de uma interpretação equivocada do texto legal, confronta indubitavelmente com o direito constitucional que o jurisdicionado possui de amplo e adequado acesso à ordem jurídica. Portanto, residual não é o acesso ao Poder Judiciário, mas sim a solução heterocompositiva do conflito. O acesso à jurisdição estatal é direito fundamental de escolha do jurisdicionado que poderá acessá-lo primordialmente.

Quando o juiz impõe ao jurisdicionado a demonstração dessa prévia tentativa extrajudicial, por exemplo, na plataforma do consumidor.gov ou do reclameaqui., está ceifando o direito constitucional de escolha da via mais adequada para a solução do seu conflito, o que é inconcebível no nosso Estado Democrático de Direito.

Não se pode mais considerar o acesso à justiça como sinônimo de acesso ao Judiciário, enquanto poder público, mas sim como o direito do jurisdicionado de optar pela forma mais adequada de solução do conflito, com a possibilidade de escolha de vias extrajudiciais com a utilização de autocomposição por meio de centrais de mediação e conciliação privadas, pelos cartórios e núcleos de práticas jurídicas de instituições de ensino, por exemplo.  Mas, volta-se a afirmar: a via extrajudicial de tentativa de autocomposição é uma opção e não pode ser vista como uma condição de acessibilidade ao Poder Judiciário para que seja analisada a pretensão do jurisdicionado e, posteriormente, ser concedida a tutela estatal. [8]

Para a efetiva garantia do direito fundamental e constitucional de acesso à ordem jurídica, deve ser feita uma leitura conjunta e complementar do art. 5º, XXXV da CF com o art. 3º do CPC, no sentido de que a Lei Magna não admite outra condicionante ao exercício do direito de ação, além da existência da afirmação de lesão ou ameaça ao direito material. 

O acréscimo da condição da ação (interesse de agir) representado pela tentativa extrajudicial retrata uma interpretação contrária às normas e valores previstos na CF e não é esse o caminho que deve ser direcionado pelo intérprete.  O ato hermenêutico na aplicação das normas deve ser sempre pautado na presunção de constitucionalidade das leis, numa interpretação conforme à Constituição, como bem afirma o art. 1º do CPC. Nesse sentido, a Min. Carmen Lúcia já se manifestou da seguinte forma: O condicionamento do acesso à jurisdição ao cumprimento de requisitos alheios àqueles referentes ao direito sobre o qual se litiga, como a obrigatoriedade de tentativa de conciliação prévia por órgão administrativo analisada na espécie, contraria o inc. XXXV do art. 5º da Constituição da República”. [9]

 O sistema multiportas foi autorizado pelo CPC em benefício do jurisdicionado e não como condicionante do seu direito de ação e à ação. Tanto é assim que o art. 23 da Lei de Mediação autoriza essa condicionante somente se houver pacto prévio das partes nesse sentido, ou seja, é preciso que haja uma negociação processual em que as partes se comprometam a somente iniciar o processo judicial se houver o implemento da condição estipulada por elas, ou seja, de haver a busca da via extrajudicial de tentativa autocompositiva do conflito. 

A extinção do processo sem resolução do mérito com base na não comprovação da tentativa extrajudicial apenas pela vontade “arbitrária” do juiz, além de violar frontalmente o princípio da inafastabilidade da jurisdição, também macula o princípio processual da primazia do mérito tabulado nos arts. 4º e 6º, presentes no capítulo das normas fundamentais, alinhados com a redação dos arts. 139, IX e 317, todos do CPC.

A conduta do magistrado, sob o olhar da norma fundamental do incentivo à autocomposição, presente no art. 3º, §§2º e 3º, do CPC, deverá estar voltada para, se for o caso, determinar a suspensão do processo, com base no art. 313, II, no sentido de estimular que as partes, de comum acordo, aceitem passar por procedimentos administrativos de tentativas de autocomposição.  Sendo positivas as tentativas, será proferida a sentença de mérito, homologatória do acordo e; sendo infrutíferas, segue-se para a continuidade da demanda judicial até a prestação jurisdicional final.

Dentro dessa forma adequada de incentivar a autocomposição, estará o magistrado agindo em perfeita cooperação processual com as partes para se alcançar o mérito da pretensão autoral, seja pela via da autocomposição, seja pela via da heterocomposição.  O que não se pode admitir é que o juiz prolate a decisão terminativa pela imposição abusiva de obrigar o jurisdicionado a buscar primeiramente a via extrajudicial, criando uma condicionante do direito à ação, a qual não tem qualquer amparo constitucional ou legal.

Importante frisar que o CNJ, em procedimento de controle administrativo nº 0004447-26.2021.2.00.0000, proposto contra a Orientação Normativa 01/2020, expedida pelo Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do TJMG, impôs a sua anulação [10], com base no parecer emitido pela Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflito [11].

Nesse mesmo sentido, o TJSE se pronunciou no IAC de n. 202300655787, estipulando a seguinte tese jurídica: “Desnecessidade de prévio requerimento e/ou esgotamento da via administrativa para o manejo de ações declaratórias de inexistência de relação jurídica de consumo”.  No acórdão, o relator afirma que, inobstante a justiça multiportas ser um importante caminho para pacificação, o sistema deve ser visto como uma política judiciária macro de incentivo à composição, de forma a não configurar uma negativa de acesso ao Poder Judiciário, sob pena de ferir a regra de direito fundamental do art. 5º, XXXV da CF. Acrescenta ainda que não se pode criar obstáculos ao acesso à justiça quando não há norma jurídica que os prescreve.

A tese jurídica firmada pelo TJMG, em sede de IRDR, possui uma redoma de vidro perigosa que violenta o direito de acesso de jurisdicionado hipossuficiente no âmbito econômico, jurídico, social, cultural. 

Portanto, uma releitura do conceito jurídico do interesse processual para inserir a prévia tentativa extrajudicial está contrária ao livre acesso ao Poder Judiciário. Os limites desse acesso, baseados no prévio requerimento administrativo, somente poderão ocorrer em casos delineados e justificados pelas características do litígio, com previsão na ordem jurídica para tanto; bem como pela autonomia de vontade das partes quando existir uma negociação processual nesse sentido.

Sob hipótese alguma, uma interpretação voltada para a teoria econômica do processo com o descongestionamento do Poder Judiciário e a desjudiciliazação dos conflitos, não poderá ter respaldo em detrimento ao direito fundamental do jurisdicionado de buscar a tutela jurídica estatal, a qual é garantida a todos, cuja via do processo judicial deve ser ofertada como um dos acessos de solução do conflito.

Aguarda-se que o STJ, ao receber esse imbróglio interpretativo, atue com firmeza e sapiência, para retirar o obstáculo do acesso à justiça imposto na tese jurídica do TJMG, que está em descompasso com o Estado Democrático de Direito.

[1] Doutora em Direito pela UFBA. Mestra pela UNESA. Advogada, Professora de processo civil. Vice-Presidente da ABEP. Membra do IBDP e da ANNEP.

[2] Trícia Navarro conceitua a justiça multiportas como "um sistema que compreende variados espaços e ferramentas de prevenção e solução de disputas, com potencialidade de interconexão, proporcionando à sociedade formas eficientes de alcance da pacificação social. Em outros termos, a Justiça Multiportas é a ressignificação do acesso à justiça, para contemplar diferentes ambientes e métodos interrelacionáveis, capazes de garantir o adequado e proporcional tratamento das controvérsias". (NAVARRO, Trícia. Teoria da Justiça Multiportas. Revista de Processo. v. 343, São Paulo, Set./2023, p, 453-471, cit., p. 456)

[3] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.

[4] NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima. A democratização da administração da ajustiça: a mediação preventiva e extrajudicial como instrumento ao direito fundamento do acesso à justiça. Criação Editora, Aracaju (SE), 2019, p. 18-19.

[5] Não obstante as expressões acima sejam próximas, uma leitura mais acurada demonstra a sutileza do comando infraconstitucional, ao dispor de uma garantia mais ampla, não restrita à estrutura do Poder Judiciário, a quem é entregue o dever de prestar a jurisdição, mas não como um monopólio. (CAMARGO, Carolina Leite de; JACOB, Muriel Amaral. Uma releitura do princípio do acesso à justiça a partir dos novos parâmetros trazidos pelo código de processo civil de 2015. Revista Jurídica Luso-Brasileira [RJLB], ano, v. 6, p. 207-231, 2015)

[6] NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima. A democratização da administração da ajustiça: a mediação preventiva e extrajudicial como instrumento ao direito fundamento do acesso à justiça. Aracaju: Criação Editora, 2019.

[7] NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima. A democratização da administração da ajustiça: a mediação preventiva e extrajudicial como instrumento ao direito fundamento do acesso à justiça. Aracaju: Criação Editora, 2019.

[8] Nesse sentido, está Didier Jr. ao afirmar que “se não houver condicionante ou exclusividade, a escolha da porta a ser utilizada cabe aos sujeitos envolvidos no problema jurídico. Dado o caráter facultativo, em tais casos, da adoção de uma das diferentes portas, a eventual verificação da maior adequação, no caso concreto, de outra porta de acesso à justiça leva ao surgimento de um deve de esclarecimento pela instituição ou sujeito que conduz o processo de solução do problema jurídico”. (DIDIER JR., Fredie e FERNANDEZ, Leandro. Introdução à Justiça Mutiltiportas. Sistema de solução de problemas jurídicos e o perfil do acesso à justiça do Brasil. Salvador: JusPodivm, 2024, p. 287.

[9] Fundamentação do voto da relatora na ADI 2.139/DF - COMISSÕES DE CONCILIAÇÃO PRÉVIA.

[10] “Por todo exposto, julgo procedente o presente Procedimento de Controle Administrativo, para determinar ao TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS que proceda a anulação da ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 01/2020, expedida pelo Núcleo Permanente de Métodos de Solução de Conflitos (NUPEMEC) da 3ª Vice-Presidência deste órgão. “(Ministro EMMANOEL PEREIRA Conselheiro Relator)

[11] “O Código de Processo Civil não torna compulsória a adoção dos métodos alternativos de conflitos como primeira via de resolução das demandas, tampouco exige a sua frustração como requisito essencial para que o cidadão tenha acesso ao Poder Judiciário”, tendo concluído que “impossibilidade de se exigir, para 7 Conselho Nacional de Justiça caracterização do interesse processual, tentativa prévia de solução consensual de conflitos, até que sobrevenha legislação específica alteradora da atual, de modo a contemplar esse tipo de exigência”.

Honorários advocatícios de sucumbência: natureza alimentar? Prestação alimentícia? Os possíveis reflexos do julgamento do tema 1153 sobre o tema 1230, ambos do STJ

 

Daiana Arruda[i],

Priscila Seifert[ii] 

Natacha Nascimento Gomes Tostes Gonçalves de Oliveira[iii]

 

Tanto nos processos judiciais, como nos livros de doutrina, a natureza dos honorários advocatícios de sucumbência sempre foi alvo de celeumas. Recentemente, no entanto, as discussões ficaram ainda mais acaloradas. Ao julgar o Tema 1153, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o salário não pode ser penhorado para garantir o pagamento dos honorários de sucumbência já que eles não se caracterizariam como verbas de natureza alimentícia, razão pela qual escapariam da exceção prevista no §2°, do art. 833 do CPC.

Inspirado por esse assunto tão caro à comunidade jurídica, este singelo artigo tem como finalidade lançar algumas reflexões acerca do decidido pelo STJ[iv]

Propõe-se, em um primeiro momento, ressaltar o teor dos argumentos trazidos no voto condutor, de lavra do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Posteriormente, faz-se a análise dos argumentos lançados nos Embargos de Divergência ERESP 1.874.222. Por fim, aborda-se o julgamento, ainda pendente no STJ, do Tema 1230, que também cuida da possibilidade de penhora do salário. Em outras palavras, o assentado no julgamento do tema 1153, nem de longe, encerrou as discussões.

Por uma maioria apertada (6x5), a Corte da Cidadania decidiu que os honorários de sucumbência, não obstante sua natureza alimentar, não são considerados prestação alimentícia, donde não ser permitida a aplicação, para sua excussão, da regra prevista no § 2º do art. 833 do CPC. A tese firmada foi a seguinte: “A verba honorária sucumbencial, a despeito da sua natureza alimentar, não se enquadra na exceção prevista no § 2º do art. 833 do CPC/2015 (penhora para pagamento de prestação alimentícia)”[v]

Da leitura do voto condutor, é possível extrair que a ratio decidendi da referida tese foi a necessidade de distinguir a prestação de natureza alimentar em sentido amplo da prestação alimentícia em sentido estrito. Somente esta última se enquadraria na excepcionalidade da penhora.

Segundo o Relator, a solução da controvérsia estaria em reconhecer a existência de sutil, mas crucial, distinção entre as expressões "natureza alimentar" e "prestação alimentícia", a que se referem os arts. 85, § 14, e 833, § 2º, do Código de Processo Civil de 2015, estando elas de fato interligadas por uma relação de gênero e espécie, como já defendido em alguns julgados da Corte Superior, no entanto, em sentido inverso, ou seja, a "prestação alimentícia" é que ressai como espécie do gênero "verba de natureza alimentar", e não o contrário.

Dessa forma, formou-se maioria a favor da tese de que os honorários advocatícios, apesar da sua inquestionável natureza alimentar, não se confundiriam com a prestação de alimentos, sendo esta última obrigação periódica, de caráter ético-social, normalmente lastreada no princípio da solidariedade entre os membros do mesmo grupo familiar, embora também possa resultar de condenações por ato ilícito e de atos de vontade.

Apesar dos 05 votos a favor da penhorabilidade proferidos pelos ministros Humberto Martins, Luís Felipe Salomão, Mauro Campbell, Raul Araujo e Antonio Carlos Ferreira, percebe-se que os ministros não aprofundaram a discussão.

O Ministro Raul Araujo, por exemplo, propôs uma tese para que a questão seja analisada caso a caso pelo julgador, assim sugerindo: "Os honorários advocatícios, diante de sua natureza reconhecidamente alimentar, enquadram-se no conceito de prestação alimentícia, podendo o julgador, sopesando as circunstâncias de cada caso concreto e observando a proporcionalidade e razoabilidade, afastar a regra de impenhorabilidade das verbas remuneratórias e das quantias depositadas em caderneta de poupança, na forma prevista do parágrafo 2º do artigo 833 do CPC." Deixar a cargo do magistrado a análise de cada caso concreto, porém, não parece ser a solução ideal, uma vez que traria mais incerteza ainda.

Já o Ministro Humberto Martins foi muito suscinto, ao propor a seguinte tese: "A verba honorária sucumbencial, em razão de sua natureza alimentar, amolda-se à exceção prevista no parágrafo 2º do artigo 833 do Código de Processo Civil (penhora para pagamento de prestação alimentícia)."

Vê-se, portanto, que os dois ministros não esmiuçaram suas razões, dando azo à prevalência da tese contrária – pela impenhorabilidade[vi].

A partir do momento em que o STJ decide que os honorários não são equivalentes às prestações alimentícias, para fins de penhora, conforme o § 2º do art. 833 do CPC, é necessário buscar uma compatibilização desta decisão com a tese fixada na ocasião em que foram julgados os Embargos de Divergência n. 1.874.222.

Reafirmando jurisprudência que já se destacava nos julgamentos da Corte da Cidadania, o julgamento dos embargos de divergência, visando uniformizar o entendimento no seio daquele Tribunal, confirmou a possibilidade de penhora de até 30% do salário do devedor, desde que não se acarretasse risco à subsistência digna do devedor e de seus familiares.

Em um primeiro momento, pode parecer incongruente o STJ permita a penhora de salário, até o montante de 30%, para pagamento de quaisquer dívidas, independentemente de sua natureza, e negue esta mesma possibilidade para fins de constrição de valores para pagamento de honorários advocatícios de sucumbência, verba de natureza alimentar. As disposições, porém, não são excludentes, mas sim complementares.

O que o tema 1153 do STJ vedou foi a penhorabilidade do salário do devedor de honorários advocatícios sem nenhum limite ou critério objetivo, por aplicação da regra de exceção do § 2º do art. 833, considerando apenas a natureza da verba.

Não há, porém, qualquer vedação que o advogado, credor de honorários sucumbenciais (ou mesmo contratuais), requeira a penhora de até 30% do salário do devedor, medida que pode ser deferida, desde que não afete a subsistência deste último. Tal compreensão não retira a possibilidade de penhora de parte das verbas remuneratórias elencadas no art. 833, IV, do CPC/2015, desde que seja preservado percentual capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.

Nessa direção, é possível concluir que, se de um lado não se reconheceu ao advogado o direito de buscar a excussão de seus honorários sucumbenciais como prestação alimentícia, de outro lado continua aberta a possibilidade de se pleitear a relativização da impenhorabilidade salarial, com pedido de penhora de até 30% das verbas, nos termos dos julgados citados no voto.

Pensa-se inclusive que na eventualidade de um “concurso de credores”, com pedidos de penhora de parte do salário do devedor, deve ser dada preferência ao crédito do advogado, por sua natureza alimentar.

A discussão, porém, ainda não está encerrada.

É que apesar de se destinarem os embargos de divergência à uniformização da dissidência interna no seio dos Tribunais Superiores, ainda que de seus julgamentos se extraiam teses, eles carecem de força obrigatória perante os Tribunais inferiores.[vii]

Esta é a razão pela qual parece justificável e adequada a afetação do Tema 1230, onde se busca rediscutir o assunto, com caráter vinculante.

O Tema 1230 busca definir o “alcance da exceção prevista no § 2º do art. 833 do CPC, em relação à regra da impenhorabilidade da verba de natureza salarial tratada no inciso IV do mesmo dispositivo, para efeito de pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a cinquenta (50) salários mínimos”[viii].

Aguarda-se, assim, que a Corte da Cidadania estabeleça, agora com força de precedente qualificado, a regra da possibilidade (ou não) de relativização da regra da impenhorabilidade de salário, inclusive em relação a hipóteses em que a renda do devedor seja inferior a 50 salários-mínimos. Espera-se que a questão agora pendente de debate, inobstante se refira à dívida não alimentar, não exclua as verbas alimentares, mas não equiparadas à prestação alimentícia, como os honorários advocatícios.

Com efeito, interpretação neste sentido irá relegar um crédito reconhecidamente privilegiado, por sua natureza salarial, a um desprestígio ignóbil e assistemático.

Noutro sentido, se a lei processual civil expressamente dispôs em seu §14, art. 833 que os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, por que nas execuções trabalhistas - em que se pretende receber verba salarial/honorários – essa natureza é reconhecida de forma mais pacífica, enquanto nas execuções cíveis o advogado encontra barreiras?

Assim, a dificuldade imposta ao advogado em executar seu próprio salário – honorários – infringe a ordem processual, uma vez que ao impedir a execução do salário do devedor, impõe-se ao advogado - de maneira transversa, a penhorabilidade de seu próprio salário.

A controvérsia aqui abordada está longe de ser definitivamente solucionada. Inobstante a corrente que se adote, vencedora ou vencida, é certo que o julgamento do Tema 1153 se deu por estreita maioria. A questão ainda pode ser alvo de revezes. Caso o STJ, ao julgar o Tema 1230, confirme a possibilidade de relativização da regra da impenhorabilidade salarial, a comunidade jurídica terá que buscar compatibilizar a tese (hoje constante em embargos de divergência), com a decidida no tema comentado, ou se terá uma verba alimentar relegada a um patamar inferior a de uma verba não alimentar, na medida em que esta permite penhora de parte de vencimentos, e aquela não.

Como defendido, crê-se que, a prevalecer a posição do STJ tomada nos ERESP 1.874.222, firmando-se neste sentido o tema 1230, será possível penhorar o salário do devedor para satisfação dos honorários advocatícios, inclusive com preferência, em caso de eventual concurso de credores.

 

[i] Pós-Graduada em Direito de Família e Sucessões e Direito Processual Civil. Secretária-adjunta da OAB vai à Escola da Seccional RJ. Mentora de Direito das Sucessões da OAB/RJ. Advogada. Membro da ABEP.

[ii] Pós-doutoranda em Direito pela UFF. Professora de Processo Civil da Pós Graduação da FGV. Advogada da União. Membro da ABEP.

[iii] Mestre em Direito. Desembargadora do TJRJ. Professora de Processo Civil da EMERJ. Membro da ABEP.

[iv]As discussões aqui tratadas foram alvo de debate pelas autoras, em live realizada no Instagram da Associação Brasileira Elas no Processo, no dia 24.06.2024. Disponível em https://www.instagram.com/reel/C8nbvG6vqdz/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D, acesso em 16.07.2024.

[v]REsp n. 54382 – SP, voto do relator disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/6/E9393652762802_votocuevapenhorasalariohonorar.pdf , acesso em 16.07.2024.

[vi] O que se verifica é que, apesar da decisão favorável quanto à impenhorabilidade do salário para pagamento de honorários advocatícios, o debate ainda não está encerrado, pois não é crível imaginar que o legislador pretendia proteger o salário do devedor em prol do salário do credor, ambos de natureza alimentar.

[vii] Tomamos a liberdade de remeter o leitor ao texto sobre esse tema: OLIVEIRA, NATACHA NASCIMENTO GOMES TOSTES GONÇALVES DE. SOBRE A NECESSIDADE DE APRIMORAR A FORÇA VINCULANTE NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA: BREVES CONSIDERAÇÕES. In: HILL, FLAVIA PEREIRA; CORTEZ, Renata, HILDEBRAND, Cecilia. (Org.). PROCESSOS NOS TRIBUNAIS SUPERIORES. 01ed. Londrina: Editora Thoth, 2024, v. 10, p. 147-153.

[viii] STJ. Precedentes Qualificados. Tema 1230. Disponível em https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp, acesso em 16.07.2024.

Superação e distinção dos precedentes e a participação da ABEP nas XV Jornadas Brasileiras de Direito Processual

           A Associação Brasileira Elas no Processo (ABEP) foi convidada a compor o painel 2 nas XV Jornadas Brasileiras de Direito Processual, promovidas pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Este evento de relevância ímpar ocorrerá a partir de 18 de setembro de 2024 e contará com a ABEP abordando temas cruciais sobre a superação e distinção dos precedentes, os quais são de vital importância no atual cenário jurídico brasileiro.

            No contexto do direito processual civil, os precedentes judiciais desempenham um papel central na promoção da segurança jurídica e na uniformização da jurisprudência, bem como na garantia de um tratamento isonômico dos jurisdicionados, proporcionando, ao mesmo tempo, a confiança destes no Poder Judiciário, para manutenção de um olhar interpretativo estável, íntegro e coerente.

            O fortalecimento da jurisprudência no direito brasileiro já era evidente bem antes da vigência do CPC/2015. Daí porque o termo precedente passou a ser utilizado mais frequentemente, inclusive para designar os provimentos judiciais e as orientações jurisprudenciais capazes de persuadir ou de vincular, em maior ou menor grau, os órgãos do Poder Judiciário e até mesmo a Administração Pública (caso das súmulas vinculantes), relativamente a casos pendentes e futuros.

            Assim é que já se sabe, antecipadamente, que tais provimentos, quando emitidos, exercerão algum tipo de efeito, persuasivo ou vinculante, notadamente no que concerne aos juízes e tribunais. Em outras palavras, o órgão jurisdicional, ao proferir essas decisões, já tem a exata consciência de que está fixando uma tese com efeito persuasivo ou vinculante relativamente a outros órgãos do Poder Judiciário e, por vezes, à Administração Pública.

            Observa-se, então, que já faz algum tempo que a lei deixou se ser o único paradigma vinculante para as decisões judiciais. Os precedentes já tinham força antes da vigência do CPC/2015.

            Entrementes, com o escopo de reduzir a instabilidade da jurisprudência, de estabelecer e uniformizar regras relativas à teoria dos precedentes no direito brasileiro e, em consequência, garantir isonomia no tratamento de situações semelhantes e mais segurança jurídica aos jurisdicionados, o CPC/2015, em seu art. 926, determina aos tribunais que uniformizem a sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente.

            Além do art. 926, o legislador elencou, no art. 927, provimentos judiciais que devem ser observados por todos os juízes e tribunais: a) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; b) os enunciados de súmula vinculante; c) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; d) os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

            O CPC/2015, portanto, ampliou o rol das hipóteses de efeito vinculante proveniente de decisões do Poder Judiciário em seu art. 927.

            Assim é que a teoria dos precedentes, adotada pelo CPC/2015, não apenas contribui para a previsibilidade das decisões judiciais, mas também para a eficiência do sistema judiciário. O papel dos precedentes judiciais é essencial para a prestação jurisdicional justa, oportuna, efetiva e adequada, passando a fazer parte do ordenamento jurídico (enunciado 380 do FPPC), cuja fiscalização de sua aplicação correta se constitui em uma das missões atribuídas ao Ministério Público através do artigo 178 do CPC.

            O painel 2 pretende fazer uma abordagem profunda e detalhada sobre a superação e distinção dos precedentes. Estas duas temáticas são essenciais para a compreensão e a evolução do sistema de precedentes no Brasil.

            A superação dos precedentes (overruling) envolve a possibilidade de que um tribunal não siga um precedente estabelecido anteriormente em razão dele ter se tornado inadequado ou equivocado devido a mudanças sociais, legislativas ou na interpretação do direito. A superação dos precedentes é um mecanismo de atualização do direito que permite a adaptação da jurisprudência às novas realidades, garantindo que o direito permaneça vivo e dinâmico.

            Já a distinção dos precedentes (distinguishing) pode ocorrer quando um tribunal identifica que o caso em julgamento possui particularidades que o diferenciam do caso anteriormente decidido, tornando inaplicável o precedente existente. Este processo exige uma análise criteriosa dos fatos e do direito aplicável, e é fundamental para assegurar que decisões justas e apropriadas sejam proferidas em cada caso concreto.

            No painel 2 a ABEP estará representada por sua presidente Renata Cortez que será a mediadora. Participarão das palestras e exposições, a vice-presidente América Nejaim com o tema “O contraditório efetivo como legitimação da superação e revisão dos precedentes”, a secretaria geral Cecilia Hildebrand com o tema “O julgamento com perspectiva de gênero como hipótese de distinção dos precedentes judiciais”, a diretora de pesquisa e ensino Fernanda Gomes e a membra Clarissa Vencato com o tema “O desgaste dos precedentes e a necessidade de superação”.

            As Jornadas pretendem homenagear Luiz Guilherme Marinoni, que possui vasta produção acadêmica e é uma das referências contemporâneas no estudo do sistema dos precedentes no Brasil. Suas obras e pesquisas oferecem uma análise aprofundada e crítica sobre como os precedentes devem ser interpretados e aplicados, fornecendo diretrizes essenciais para a prática judiciária.

            Marinoni destaca a necessidade de um sistema de precedentes que seja flexível e capaz de evoluir com as mudanças sociais e jurídicas. Sua abordagem enfatiza a importância de critérios claros e consistentes para a superação e distinção de precedentes, garantindo que o sistema judiciário permaneça justo e previsível, sem se tornar rígido e inflexível.

            A presença de seus ensinamentos no debate proposto pela ABEP, nas XV Jornadas Brasileiras de Direito Processual, enriquecerá a base teórica e prática indispensável para todos os profissionais do direito que buscam compreender e aplicar corretamente os precedentes judiciais em suas atuações.

            A ABEP, associação comprometida com a excelência jurídica, buscará, com sua presença nas Jornadas, enriquecer os debates acerca da superação e distinção dos precedentes, oferecendo uma oportunidade única para o desenvolvimento acadêmico e profissional de todos os participantes.

            Convidamos todas(os) as(os) profissionais e estudantes de direito, pesquisadoras(es) e interessadas(os) na temática dos precedentes judiciais a participarem das XV Jornadas Brasileiras de Direito Processual.

            A participação neste evento certamente proporcionará uma compreensão mais ampla e técnica sobre os mecanismos que regulam os precedentes judiciais, além de fomentar o debate sobre a necessidade de uma jurisprudência adaptável e em conformidade com a segurança jurídica e com a proteção da confiança dos jurisdicionados.

A Igualdade de Gênero no Direito Processual e a Associação Brasileira Elas no Processo (ABEP)

A igualdade de gênero é prevista na Constituição Federal e está inserida na agenda 2030 da ONU como um dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Tais previsões reforçam o que já previa a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW.

Em que pese tais previsões, a igualdade ainda não foi alcançada. Em artigo da Associação Brasileira Elas no Processo que inaugurou a coluna no Migalhas, destacou-se a desproporção da desigualdade de gênero na cúpula dos três Poderes. Com a maior parte dos cargos de poder sendo ocupado por homens, muitas das pautas relativas às mulheres demoram excessivamente para serem discutidas[i]. A título de exemplo, destaca-se a paridade na OAB, no Poder Judiciário e no Ministério Público, como se vislumbra a seguir.

A OAB possui em seus quadros, mais mulheres do que homens, mas esse número não se reflete de forma proporcional em suas atuações. Em razão disso, a Ordem criou normas para prestigiar políticas afirmativas para participação de mulheres em eventos[ii] e nas eleições para cargos diretivos[iii].

No âmbito do Poder Judiciário, a Resolução nº 106/2010, do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre os critérios objetivos para aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos Tribunais de 2º grau foi alterada pela Resolução CNJ nº 525/2023 para buscar a igualdade de gênero material. O art. 1º-A foi acrescentado para prever que “no acesso aos tribunais de 2º grau que não alcançaram, no tangente aos cargos destinados a pessoas oriundas da carreira da magistratura, a proporção de 40% a 60% por gênero, as vagas pelo critério de merecimento serão preenchidas por intermédio de editais abertos de forma alternada para o recebimento de inscrições mistas, para homens e mulheres, ou exclusivas de mulheres, observadas as políticas de cotas instituídas por este Conselho, até o atingimento de paridade de gênero no respectivo tribunal”[iv].

No relatório da Participação Feminina na Magistratura 2023 (ano-base 2022), produzido pelo Conselho, o percentual de magistradas apresentou queda de 38,8% para 38%, com expressiva diminuição nos postos mais altos da carreira. Saíram de 25,7% de desembargadoras, em 2019, para 25%; e de 19,6% de ministras de tribunais superiores, também em 2019, para 25%, no levantamento mais recente[v].

O Tribunal de Justiça de São Paulo foi o primeiro a implementar a norma de paridade nos concursos de promoção em 2024, através do Edital nº 02/2024 do Conselho Superior da Magistratura – CSM.  Atualmente, possui apenas 12% de mulheres no Tribunal. Ou seja, dos 351 desembargadores, apenas 42 são mulheres[vi].

No Ministério Público, a Resolução nº 259/2023 instituiu a política nacional de incentivo à participação feminina e há proposição de aprovação de Resolução similar à 525 do CNJ[vii].

Com os exemplos colacionados é possível perceber que a desigualdade de gênero é patente no mundo jurídico. Tendo como um dos seus objetivos a igualdade de gênero, mulheres profissionais do Direito, como advogadas, juízas, procuradoras, defensoras públicas, notárias, pesquisadoras e professoras universitárias, comprometidas com o fomento de debates, boas práticas e a promoção da diversidade de diálogos no âmbito da pesquisa e da prática do direito processual e igualdade de gênero, decidiram reunir-se em forma de associação.

A Associação Brasileira Elas no Processo (ABEP) é uma entidade de direito privado, sem fins econômicos, que tem como missão promover a inserção e o destaque das mulheres no ambiente acadêmico do direito processual e nas carreiras jurídicas. A ABEP pauta-se pelos princípios da igualdade de gênero, buscando transformar o cenário jurídico brasileiro por meio de diversas atividades e iniciativas.

A ABEP possui uma gama abrangente de finalidades que refletem seu compromisso com a promoção da igualdade de gênero no direito processual. Entre seus principais objetivos, destacam-se:

a) Promoção Acadêmica e Profissional: A ABEP realiza atividades voltadas para a inserção de mulheres no ambiente acadêmico e nas carreiras jurídicas. O incentivo à participação em programas de mestrado, doutorado é sempre presente.

b) Proteção dos Direitos das Mulheres: A associação empenha-se na proteção dos direitos das mulheres, especialmente no cumprimento de tratados internacionais, da Constituição Federal e da legislação interna brasileira. No ano de 2024 foi aceita para concorrer a uma vaga da sociedade civil no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, obtendo 11 votos de outras associações.

c) Educação e Difusão do Direito Processual: Promover o aprimoramento, a difusão e o ensino do direito processual é uma das missões centrais da ABEP. Isso inclui a realização de pesquisas, cursos, conferências, seminários e congressos. Nos seus dois anos de existência, a ABEP já promoveu congressos e seminários, lives, palestras, além de ser apoiadora em inúmeros eventos científicos.

d) Publicações e Divulgação: A associação já promoveu editais para a publicação de livros de autoria coletiva e publica artigos em periódicos jurídicos. No início de sua existência, as publicações ocorriam em parceria em uma coluna no “Empório do Direito”. Em momento posterior, obteve espaço no informativo Migalhas, com coluna própria.  E, o presente texto, inaugura um momento de crescimento da Associação, que passa a possuir coluna de artigos das associadas, em site próprio. Além disso, há projetos para reunir todas as publicações de suas membras em um único local, apelidado de “elaspédia”.

e) Intervenções e Manifestações Judiciais: A ABEP tem como finalidade realizar intervenções e manifestações judiciais, incluindo a propositura de ações civis públicas e a atuação como amicus curiae. Um exemplo marcante da atuação da ABEP no combate às desigualdades de gênero foi sua admissão como amicus curiae no Mandado de Segurança nº 2079924-89.2024.8.26.0000, junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Tal Mandado de Segurança visava impugnar ato do Conselho Superior da Magistratura que instituiu concurso de promoção exclusivamente para mulheres, para uma vaga de desembargador(a) no TJSP.

f) Cooperação e Parcerias: A Associação fomenta a cooperação entre outros órgãos, mantendo intercâmbio com organizações e associações congêneres, tanto nacionais quanto internacionais. Também colabora com instituições universitárias, órgãos públicos e entidades privadas para a realização de projetos e estudos.

A Associação Brasileira Elas no Processo (ABEP) desempenha um papel crucial na promoção da igualdade de gênero no direito processual brasileiro. Por meio de suas atividades educacionais, judiciais e de cooperação, a ABEP fomenta um ambiente mais inclusivo e justo, garantindo que as mulheres tenham voz e espaço significativo no campo jurídico. A Associação representa verdadeiro exemplo de como a articulação de esforços em prol da igualdade de gênero pode transformar estruturas sociais e profissionais, promovendo uma sociedade mais equilibrada e justa.

Como forma de discutir temas relevantes do direito processual e de dar mais visibilidade à produção científica das mulheres é que inauguramos a presente coluna em nossa casa, nosso site, cujo espaço estará repleto de informações jurídicas atualizadas.

Convidamos a todas e a todos ao debate de temas relevantes ao direito processual com textos publicados pelas associadas, bem como pelos convidadas e convidados. Que seja uma coluna frutífera, demonstrando a relevância da produção acadêmica e científica das mulheres no processo.

 

[i] Uma reflexão sobre a igualdade de gênero no Direito Processual. Migalhas, 15 out. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/elas-no-processo/353144/uma-reflexao-sobre-a-igualdade-de-genero-no-direito-processual.

[ii] Proposição n. 49.0000.2019.013134-1 do Conselho Pleno. Disponível em: http://www.oab.org.br/leisnormas/legislacao/provimentos/195-2020.

[iii] Resolução 5/20, que altera o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB para estabelecer paridade de gênero (50%) e a política de cotas raciais para negros (pretos e pardos), no percentual de 30%, nas eleições da OAB. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/58808/publicada-resolucao-que-estabelece-paridade-de-genero-e-cotas-raciais-nas-eleicoes-da-oab.

[iv] CNJ. Resolução Nº 106 de 06/04/2010. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/168

[v] CNJ. Paridade de gênero nos tribunais agrega diferentes visões de mundo às decisões. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/paridade-de-genero-nos-tribunais-agrega-diferentes-visoes-de-mundo-as-decisoes/#:~:text=A%20norma%2C%20aprovada%20pelo%20Plen%C3%A1rio,promo%C3%A7%C3%B5es%20pelo%20crit%C3%A9rio%20do%20merecimento.

[vi] CALEGARI, Luiza. Mulheres são 40% na 1ª instância, mas só 12% entre desembargadores no TJ-SP, 10 abr. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-10/mulheres-sao-40-na-primeira-instancia-mas-so-12-entre-desembargadores-no-tj-sp/

[vii] CNMP. Resolução n. 259 de 28 de março de 2023. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/2021/Resoluo-n-259-2023.pdf.

A Colisão aparente entre Normas e a Aplicabilidade do § 2º do art. 489 do CPC: Uma reflexão sobre a aplicabilidade do juízo de ponderação no Sistema Processual Brasileiro

O presente artigo tem o intuito de refletir sobre a redação do texto de lei previsto no parágrafo 2º, art. 489 do Código de Processo Civil para analisar se o termo “norma” deve ser interpretado como regra ou princípio.

A redação do referido dispositivo legal dispõe que: “No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.”

A doutrina processualista se divide quanto à interpretação mencionada no dispositivo legal. Os autores Teresa Wambier, Maria Lúcia Lins da Conceição, Leonardo Ribeiro e Rogério Mello chamam atenção quanto ao fato de que o legislador usou termo que não se encontra consolidado na doutrina pátria e, por isso, entendem que o enunciado tem uma redação complexa. [1]

A questão problemática apresentada no §2º do art. 489 do CPC está no termo “norma”, haja vista que o sentido não se apresenta unânime na doutrina. Explicam os autores que enquanto o CPC fala em ponderação de normas, a doutrina fala, majoritariamente, em ponderação de princípios.

Sob a ótica desses doutrinadores, o magistrado deve assumir uma postura mais ativa quanto à escolha da norma no caso de colisão, devendo a opção adotada ser previamente refletida e detalhadamente fundamentada, a fim de que se garanta a clara apresentação da linha de entendimento que alicerçou a sua decisão.

Nelson Nery Junior e Rosa Nery criticam o texto normativo, pois entendem que há uma impropriedade na menção à técnica da ponderação, destacando que a ponderação deve ser interpretada à luz dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais. [2]

Nesse sentido, afirma Daniel Neves que há uma impropriedade na referência à utilização da técnica de ponderação, o que pode levar ao equívoco de que toda a antinomia pode vir a ser solucionada através dessa técnica.  Para o citado autor, o juízo de ponderação está voltado para a solução dos conflitos entre os direitos fundamentais e os princípios previstos na Constituição Federal, os quais não se consegue resolvê-los pelas regras da hermenêutica clássica, aplicáveis, em regra, às normas. Por isso, o §2º, do artigo 489 do CPC deve ser analisado com cautela, para que não haja uma interpretação extensiva. [3]

Conclui, então, que as normas jurídicas são divididas em regras e princípios e que, ocorrendo colisão entre as normas, deverá o intérprete observar as técnicas adequadas para cada tipo normativo (regras e princípios).  Ou seja, no conflito entre regras deve ser utilizado os critérios da hierarquia e da especialidade, além da aplicação do diálogo das fontes, por meio do qual se ponderam as fontes heterogêneas das regras, conferindo preferência às normas mais benéficas à tutela do direito. [4]

O autor destaca que a solução do conflito entre a regra e o princípio é extremamente sensível e difícil, afirmando que a regra deve prevalecer. Constata também, que é impossível aplicar determinadas regras sem que ocorra uma violação clara a princípios constitucionais, pois, entende que não seria legítimo, nesse caso, defender-se pura e simplesmente a aplicação da regra no caso concreto, haja vista que qualquer juiz poderá deixar de aplicar uma regra com base em fundamentação.

Para esclarecer o seu raciocínio, Daniel Neves cita a previsão do artigo 300, §3º, do CPC, no qual prevê que a tutela de urgência não deve ser concedida se houver perigo de irreversibilidade fática, mas que ela vem sendo excepcionada pelos tribunais quando levar ao sacrifício definitivo de um direito evidente, ainda mais no caso de ser tal direito indisponível.”  [5] Verifica-se, portanto, a revelação de uma prática aplicada pelos tribunais antes mesmo da vigência do Código de Processo Civil de 2015.

Dentro desse mesmo raciocínio está o enunciado 25 da ENFAM, o qual prevê a possibilidade da concessão de tutela urgência, de efeitos irreversíveis, com a justificativa de que, diante do caso concreto, seja observada a garantia do acesso à justiça. [6]

Dessa forma, no caso concreto, quando puderem ser aplicados diferentes princípios, com possibilidade de solução diversa, o juiz deverá optar por um dos princípios em detrimento do outro e, nesse caso realizará um juízo de ponderação, para tomar decisão sobre qual dos princípios deverá incidir no caso concreto. Assim, “deverá se orientar pelos valores que inspiram o princípio e justificar a aplicação de um deles em detrimento do outro.” [7]

Referido entendimento vem sendo aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça, como no caso em que julgou a questão ambiental sobre queima da palha e a fuligem da cana-de-açúcar [8], pois, a discussão pairou sobre a ausência de dados científicos sobre danos ambientais e o processo cancerígeno. Tal situação, demonstrou uma clara tensão entre princípios, a qual foi resolvido pela ponderação, fundamentada e racional, entre os valores conflitantes.

Na visão de Cassio Scarpinella Bueno [9] entende que o § 2º do art. 489 do CPC se trata de qualidade da fundamentação da sentença, pois, na sua visão, o dispositivo impõe que a “decisão indique os critérios de ponderação que foram empregados pelo juiz para solucionar eventual conflito entre normas jurídicas, o que se harmoniza com o art. 8º [10] e também com o art. 140 [11] do CPC.

José Garcia Medina entende que o dispositivo em comento trata sobre a “hipótese de colisão entre direitos regulados por disposições que têm conteúdo de princípios, hipótese em que, para parte da doutrina seria o caso de “ponderar” para se definir qual dos princípios deveria ser aplicado.” [12]

Fredie Didier Júnior analisa o conflito normas, previsto no parágrafo 2º do art. 489 do CPC, a partir do pensamento de Alexy, para saber se trata de conflitos entre regras ou entre princípios, o qual leciona que para solucionar tais conflitos, “é necessário que uma das regras integre uma hipótese de exceção à outra, ou então que um a delas seja invalidada e expurgada do ordenamento, em nome da subsistência da outra”. [13] Dessa forma, constatada a contradição entre "juízos concretos de dever-ser", se ela não pode ser sanada com a inserção de uma "cláusula de exceção" em uma das regras, então se deve decidir qual delas deve ser invalidada.

Dessa maneira, reflete que os princípios não são tomados como exceção ao outro e nenhum deles precisa ser invalidado.  O que existe é uma “dimensão de pesos” (não de validade). Com isso, o princípio que mais pesar tem preferência em relação ao outro. Nesse ponto, Fredie Didier cita a obra de Humberto Ávila intitulada “Teoria dos Princípios”, que examina essa diferenciação, trazendo que a ponderação não é exclusividade dos princípios. [14].

 A partir dessas considerações, Fredie Didier compreende que a técnica utilizada para superar o conflito normativo, exige do juiz uma justificação. [15]

Diante do que foi alhures exposto, entende-se que a discussão sobre conflito de normas está longe de terminar, mas, de todo modo, a doutrina processual, ao analisar o parágrafo 2º do art. 489 do CPC, chama atenção da necessidade do aplicador da lei observar a hermenêutica jurídica e, sendo caso de colisão de normas, deverá justificar, de forma fundamentada a decisão, dever esse previsto no art. 93, IX na Constituição Federal e reforçado no art. 11 do CPC que, quando violado, gerará a nulidade da decisão judicial.

Por fim, é importante ressaltar que a falta da justificativa específica contida na redação do §2º, do art. 489 do CPC, gera a possibilidade da parte interpor os embargos de declaração nos termos do art. 1022, II, do CPC, para que a decisão judicial seja completa, cumprindo o Poder Judiciário a sua missão de ofertar uma prestação jurisdicional qualificada e transparente, observando-se os valores e as normas previstas na Constituição Federal e na Lei Processual Civil, nos termos do art. 1º, do CPC.

[1] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p.796.

[2] JUNIOR, Nelson Nery, NERY Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado I, 21. ed. Rev. atual. e ampl. -- São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p.1107

[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, Manual de Direito Processual Civil, 10ª Ed., Ed. Juspovm, 2018 p.192

[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, p.192

[5] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, p.192

[6] Enunciado 25 da ENFAM: "A vedação da concessão de tutela de urgência cujos efeitos possam ser irreversíveis (art.300, § 3°, do CPC/2015) pode ser afastada no caso concreto com base na garantia do acesso à Justiça (art. 5°, XXXV, da CRFB)

[7] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, p.192

[8] REsp n. 1.285.463/SP, Relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma do STJ.

[9] Bueno, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil, 3 ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 2017, p.414.

[10] Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

[11] Art. 140 O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.

[12] MEDINA, José Miguel Garcia, MEDINA, Janaina Marchi, Guia Prático do novo Código de Processo Civil Brasileiro, Ed. RT, 2016, p.114

[13] DIDIER JR. Fredie, BRAGA, Paula Sarno e Oliveira, Rafael Alexandria de, Curso de direito processual civil, 10. ed.- Salvador: Ed. Jus Podivm, V 2, 2015. p. 324.

[14] DIDIER JR. Fredie, BRAGA, Paula Sarno e Oliveira, Rafael Alexandria. p. 325.

[15] DIDIER JR. Fredie, BRAGA, Paula Sarno e Oliveira, Rafael Alexandria de, p. 325.

O cabimento da ação possessória sobre o bem digital Diante do avanço tecnológico, desenvolver um instrumento adequado para a tutela de bens digitais tornou-se pauta obrigatória.

Introdução

As ações possessórias, originalmente, foram concebidas para tutelar bens tangíveis. Entretanto, o avanço das tecnologias tornou evidente a necessidade de estender o seu alcance a outras espécies de bens, dentre os quais se destacam os digitais.

Em meio às eleições de 2022, percebeu-se um número crescente de decisões do Supremo Tribunal Federal determinando a suspensão de perfis em redes sociais. Embora sejam decisões proferidas em sede criminal, a repercussão política gerada trouxe consigo interessantes questionamentos em matéria processual.

Neste contexto, discute-se o cabimento das ações possessórias para a retomada dos perfis em redes sociais.

Os perfis em redes sociais são bens digitais?

Segundo a doutrina clássica, bens são as coisas corpóreas e incorpóreas suscetíveis de apropriação e que podem constituir objeto de direito.[3]

Na época em que o conceito de bem foi concebido, o mundo virtual não era uma realidade. No entanto, a ciência do Direito deve evoluir. Inéditas categorias de bens jurídicos precisam ser reconhecidas.[4]

Bem digital pode ser definido como o conjunto de informações virtualmente registradas por alguém, com ou sem conteúdo econômico.[5] Segundo Bruno Zampier, os bens digitais podem se apresentar sob a forma de correios eletrônicos, redes sociais, sites de compras ou pagamentos, blogs, plataformas de compartilhamento de fotos ou vídeos, contas para aquisição de mídias, como filmes, músicas e livros digitais; contas para jogos on-line e contas para armazenamento de dados[6].

Cada bem digital pode contar com uma variedade de provedores. Nota-se uma preocupação legislativa para que se confira tutela a estas novas formas de bens incorpóreos a partir da Lei nº 12.965/2014, o Marco Civil da Internet, que teve por objetivo regulamentar uso da internet no Brasil.

À medida em que as dinâmicas das relações sociais passam a se concentrar no mundo virtual, cresce de forma exponencial a quantidade e a variedade de bens digitais.

Daí se extrai a necessidade de uma atualização do sistema protetivo dos bens digitais, para que então seja viabilizada a criação de soluções jurídicas específicas[7].

Os perfis em redes sociais estão, portanto, enquadrados no conceito de bens digitais.

É possível ter posse sobre os bens digitais?

Segundo Pontes de Miranda, a posse pode recair sobre universitas iures, ou seja, sobre tudo aquilo que for legitimamente passível de apropriação, assim entendido como o que se possui, à luz da física contemporânea. Assim, por exemplo, não seriam passíveis de apropriação os direitos pessoais, mas algo humanamente intangível, como a eletricidade, poderia[8].

Portanto, a possibilidade de apropriação seria o elemento essencial para que a coisa fosse considerada como bem em termos jurídicos.[9]

Entretanto, a crescente virtualização das relações humanas trouxe a necessidade de serem conferidos novos contornos a respeito da posse, justificando, deste modo, a revisão de conceitos tradicionais acerca de sua tutela.

É cada vez mais questionável não considerar bens imateriais e intangíveis como objeto da posse, tendo-se como exemplo disto os direitos autorais, as patentes e os registros de softwares, e outras tantas produções intelectuais, industriais e artísticas.

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema em questão no julgamento dos casos do RE 330.817 e do RE 595.676, tendo decidido pela extensão da imunidade tributária aos livros eletrônicos e congêneres, servindo como um marco para o debate sobre o tema dos bens digitais. E assim, qualificou os bens jurídicos por seu aspecto funcional, desapegando-se de conceituações tradicionais baseadas em aspectos meramente estruturais.[10]

A doutrina vem defendendo a extensão da proteção possessória sobre os bens imateriais incorpóreos e semi-corpóreos, considerando que a relevância da tutela se evidencia pelo elemento externo e objetivamente perceptível da destinação econômica imprimida ao bem[11]. Portanto, o objeto da posse não se identificaria pela materialidade, mas sim pela sua delimitação e determinação.

 

Os bens digitais podem ser objeto de proteção possessória?

A suspensão dos perfis em redes sociais pode causar enormes prejuízos aos usuários, de natureza material, inclusive. Por ser um tema ainda novo, não existem muitas fontes de leitura acerca dos mecanismos para a retomada da posse dos bens digitais.

As políticas para o uso das mídias sociais incluem, dentre outros serviços, o oferecimento de oportunidades para se criar, conectar, comunicar, descobrir e compartilhar[12]. A mídia é, desta forma, um bem digital, sendo o usuário o seu legítimo possuidor, conforme as condições e termos de uso da empresa.

Assim, a empresa provedora - fazendo-se aqui menção ao mesmo conceito de provedor utilizado pelo Marco Civil da Internet - figuraria como proprietária dos perfis de seus usuários, que, a seu turno, seriam os possuidores. Estabelecida uma relação contratual por adesão entre ambos, se registra, de forma onerosa, a pactuação de serviços de hospedagem e gerenciamento de dados em uma plataforma virtual.

Como visto, segundo o ordenamento jurídico, são objetos de posse, a princípio, os bens corpóreos, enquanto os incorpóreos, são suscetíveis de apropriação e comercialidade.

Todavia, o objeto da posse não se identificaria pela materialidade do bem, mas sim pela sua delimitação e determinação, razão pela qual pode se afirmar que os bens digitais podem sim, ser objetivo de proteção possessória.[13]

Conclusões

 

Em um mundo cada vez mais digital, não há razão para não estender a tutela da posse aos bens imateriais.

Os bens digitais, como perfis em redes sociais, e-mails, nomes de domínio, são bens que, inclusive, podem ser objeto de direito sucessório e possuem valor econômico.

Inegável, é, portanto, o cabimento de ações possessórias para a retomada do direito de uso dos perfis em redes sociais por meio de ações possessórias, com todos os seus institutos, inclusive com a possibilidade de concessão liminar da posse nos casos em que se demonstrarem presentes os seus requisitos.

Resta assim, evidente, a necessidade constante de revisão sobre institutos e conceitos tradicionais por parte da doutrina e jurisprudência, tendo-se como objetivo promover um avanço jurídico sobre o sistema de tutelas e garantias, em harmonia com o natural processo de modernização das relações sociais.

Referências

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: direitos reais. Salvador: Ed. Jus Podivum, 2020.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direitos reais. Vol. 5. Versão Kindle. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens Digitais: em busca de um microssistema próprio, p. 93 In TERRA, Aline de Miranda Valverde [et al.] Herança digital: controvérsias e alternativas. Tomo 1. Coord. Ana Carolina Brochado Teixeira e Livia Teixeira Leal. Indaiatuba: Editora Foco, 2022. Edição do Kindle.

MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. Tomo II. Campinas, Bookseller, 2000.

SARAI, Leandro et. al. Bens públicos na era digital. In: Lucélia de Sena Alves; Cássio Augusto Barros Brant. (Org.). Bens digitais: implicações jurídicas contemporâneas. 1ed.Belo Horizonte: D'Plácido, 2023, v. 1, p. 141-172.

STJ, REsp. 769731/PR, 1a T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ 31.5.2007.

TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana. STF acerta ao qualificar bens jurídicos por seu aspecto funcional. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-abr-03/stf-acerta-qualificar-bens-juridicos-aspecto-funcional. Acesso em: 31 maio 2023.

 

[1] Mestre em Direito, pela Universidade de Itaúna (2014). Professora da Escola Superior da Advocacia de Minas Gerais e da PUC Minas. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro da ABEP. Advogada.

[2] Doutora e Mestre em Direito pela UERJ. Pós-Graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação do Mercado de Capitais pelo Ibmec/RJ. Professora da Escola Superior da Advocacia-Geral da União. Pesquisadora na área de Direito Processual, Inovação e Gestão no Setor Público e Legal Design. Procuradora Federal.

[3] BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 12.

[4] LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens Digitais: em busca de um microssistema próprio, p. 93 In TERRA, Aline de Miranda Valverde [et al.] Herança digital: controvérsias e alternativas. Tomo 1. Coord. Ana Carolina Brochado Teixeira e Livia Teixeira Leal. Indaiatuba: Editora Foco, 2022. Edição do Kindle.

[5] Zampier, Bruno. Bens Digitais. Edição do Kindle. 2ª Edição. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 74.

[6] Ibidem, p. 76.

[7] SARAI, Leandro et. al. Bens públicos na era digital. In: Lucélia de Sena Alves; Cássio Augusto Barros Brant. (Org.). Bens digitais: implicações jurídicas contemporâneas. 1ed.Belo Horizonte: D'Plácido, 2023, v. 1, p. 141-172.

[8] MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. Tomo X. Campinas, Bookseller, 2000, p. 107.

[9] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direitos reais. Vol. 5. Versão Kindle. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 38.

[10] TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana. STF acerta ao qualificar bens jurídicos por seu aspecto funcional. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-abr-03/stf-acerta-qualificar-bens-juridicos-aspecto-funcional. Acesso em: 31 maio 2023.

[11] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: direitos reais. Salvador: Ed. Jus Podivum, 2020, p. 117.

[12] Ver os termos de uso do Instagram. Disponível em: < https://pt-br.facebook.com/help/instagram/581066165581870>. Acesso em 21 dez. 2022.

[13] STJ, REsp. 769731/PR, 1a T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ 31.5.2007.

O acesso à justiça e a importante atuação das Defensorias Públicas nos IRDR

Nossa Constituição Federal prima por seu garantismo e pelo real intuito de proteção dos direitos individuais e, dentre eles, destacamos a previsão contida no art. 5º, LXXIV, da CF/88 de que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

Logicamente, considerando a enorme demanda processual frente ao perfil contencioso apresentado pelos jurisdicionados, as pessoas (ou agrupamentos sociais) em situação de vulnerabilidade podem não ter acesso ao Judiciário no intuito de pleitear determinado direito.

No entanto, pontuamos aqui que, nem sempre o acesso à justiça somente se personifica mediante a proposição de ação individual.

O Código de Processo Civil trouxe em seu bojo, o incidente de resolução de demandas repetitivas - IRDR, instituto processual que se inspirou no direito alemão diante do similar musterverfahren, sofrendo influências ainda do sistema de agregação de causas no direito português e, finalmente do modelo de decisões de litígio de grupo (group litigation order) e demanda-teste (test-claim) do direito inglês (MENEZES, 2018).

O cabimento do IRDR se dá quando se tem, de forma concomitante, uma efetiva repetição de processos tratando de semelhante controvérsia acerca de questão unicamente de direito e que, inclusive, possua o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, conforme determina o art. 976 do Código de Processo Civil de 2015.

Portanto, poderíamos considerar que o IRDR seria um incidente legítimo apto a discutir litígios de interesse coletivo com legitimidade superior à própria ação civil pública?

Pontua-se que o IRDR pode tratar de casos que estão em discussão e que ainda possam surgir, tendo a Ação Civil Pública, por exemplo, a previsão, pelo menos a princípio, da existência de um dano que, contudo, tornará prevento o juízo para eventuais novas ações.

No entanto, embora a Lei nº 7347/85 traga restrições à própria propositura da ação, situação semelhante não ocorre no âmbito do IRDR, pois além do alcance a que se pode dar das decisões proferidas, o Código de Processo Civil prevê diversas particularidades que trazem a discussão a ser realizada no incidente à valorada temática da teoria geral dos precedentes.

Diante dessa nuance, pode-se afirmar que o IRDR se torna importante mecanismo de acesso à justiça, mas não se constitui como técnica processual a se estabelecer como sucedâneo de ações coletivas.

E o CPC/2015 apresentou a possibilidade dos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, verdadeiro aparato processual também a tutelar os direitos dos hipossuficientes de forma a consolidar o entendimento repetitivo proferido com busca à garantia da segurança jurídica, da uniformidade de entendimentos e da igualdade.

Outrossim, trouxe a nova norma, em seu art. 977, a possibilidade da Defensoria Pública, no exercício de suas atribuições da promoção dos interesses individuais e coletivos dos necessitados (art. 185 do CPC/2015), a instauração do incidente diretamente ao presidente de tribunal.

Importante pontuar valiosa colocação da defensora pública Luciana Jordão, ao tratar da importância da atuação da Defensoria nesta seara, perante a qual destaca que esta é instituição pública voltada à implementação de política pública de acesso à justiça, à avaliação técnica a respeito da maximização dos resultados, que podem gerar benefícios ao maior número de cidadãos e, como tal, sugerimos que pode, portanto, o instrumento do IRDR assumir protagonismo nesta prática qualificada.

Em complemento, cabe destacar que o IRDR se caracteriza como incidente processual, considerando que pode ser instaurado por meio de um pedido, exigindo sempre um prévio processo judicial instaurado (MENDES, 2021).

Outrossim, as particularidades apresentadas no CPC/2015 relacionadas ao IRDR trazem inúmeros benefícios em sua tramitação, tais como: a previsão do caput do art. 980, que determina o prazo de prazo de 1 (um) ano para julgamento; e, a suspensão dos processos pendentes, conforme previsto no art. 982, I. E acrescenta-se que, a inadmissão do incidente de resolução de demandas repetitivas por ausência de qualquer de seus pressupostos de admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito, possa ser o incidente novamente suscitado (Art. 976, §3º).

A participação social, a realização de audiências públicas, os amici curiae serão ferramentas importantes para consolidar o acesso à justiça, podendo contar, agora, com a competência da Defensoria Pública para imiscuir-se em tais questões, através do IRDR, podendo a referida discussão ser levada, inclusive, para o âmbito dos Tribunais Superiores e, quiçá, ter a modulação de efeitos também como instrumento de concretização de direitos.

Em breve pesquisa no Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios é possível afirmar que a sistematização de informações dos IRDR não permite saber se a defensoria pública foi a postulante na busca pela promoção dos direitos humanos, ou então pela defesa dos direitos coletivos dos necessitados, conforme determina o art. 185 do CPC/2015.

Com isso, a ausência de informações detalhadas obsta o acompanhamento da defesa dos mais necessitados na criação de precedentes qualificados por meio de julgamento de demandas repetidas.

Seria o caso, portanto, quanto ao ponto, de sugerir ao CNJ (órgão regulador da atividade judiciária conforme esta autora já pontuou em obra anterior) que possa disponibilizar filtros cada vez mais detalhados a fim de facilitar o controle e a consequente melhoria na prestação jurisdicional no que tange aos direitos dos hipossuficientes frente às demandas contidas em IRDR perante todos os tribunais.

Por conseguinte, destaca-se que, funcionando a Defensoria Pública como postulante lhe é conferido melhor meio para desenvolver a tese e levar ao judiciário no tempo adequado às possibilidades de atuação deste órgão.

Guedes (2018) expõe neste sentido:

Tal participação é tão importante quanto a atuação nas demandas individuais, pois, a partir da entrada em vigor do novo CPC, há grande tendência de que todas as questões repetitivas passem a ser decididas por meio do julgamento de IRDR, sendo, então, proferidas decisões e escolhidas as teses jurídicas que vincularão todos os juízes subordinados hierarquicamente ao tribunal.

Em síntese, a consolidação da atuação da defensoria pública como participante da criação de precedentes qualificados deve ficar destacada vez que funciona como guardiã dos interesses da população hipossuficiente de fato.

Com efeito, a defensoria pode, então, identificar tema que possa ser objeto de discussão por meio do IRDR, promovendo a discussão dos direitos dos vulneráveis diante da previsão processual de apresentação de petição, a qual conterá pedido de instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas tal como preceitua o art. 977 do CPC/2015, inaugurando uma nova era na temática dos precedentes frente à proteção do direito dos hipossuficientes.

__________

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível aqui.

BRASIL. [CPC (2015)]. Código de Processo Civil, Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível aqui.

CARVALHO, Luciana Jordão da Motta Armiliato. A Defensoria Pública e o IRDR: reflexões sobre desafios e caminhos para a consolidação do instituto. In: Acesso à justiça em contexto de litigância repetitiva. DELCHIARO, Mariana Tonolli Chiavone; MAIA, Maurilio Casas. (org.). Belo Horizonte, São Paulo: Editora D'Plácido, 2022.

GUEDES, Cintia Regina. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e o papel da Defensoria Pública como porta-voz dos litigantes individuais na formação da tese jurídica vinculante. REVISTA DE DIREITO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Nº 28 - 2018. Disponível aqui.

MENDES, Bruno Cavalcanti Angelim. Julgamento de casos repetitivos: critérios de seleção dos casos paradigmáticos e formação de precedentes. São Paulo: Editora Juspodivm, 2021.

MENEZES, André Beckmann de Castro. O IRDR Como Política Pública Judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018.

PAULINO, Ana Flávia Borges. CNJ: o regulador da atividade judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021.

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