A comunicação dos atos processuais faz-se necessária para a transmissão de informações entre Juízos e, também, para transmitir as informações entre juízos e partes por diversos sujeitos da relação processual. De acordo com o CPC de 2015, a comunicação dos atos dá-se pela citação (art. 238) e pela intimação (art. 269), sendo a citação o primeiro ato de ciência do polo passivo acerca da existência de um processo, e a intimação o ato pelo qual se dá ciência dos demais atos processuais.
A citação é o ato formal de integralização do réu, executado ou terceiro na relação processual e gera importantes efeitos, conforme dispõe o art. 240, do CPC (induz à litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor).[1] A citação é condição de eficácia do processo em relação ao réu, sem a qual os atos processuais posteriores a ela tornam-se passíveis de alegação de nulidade para a parte prejudicada a qualquer tempo.[2]
Complementa a doutrina, que a citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual[3].
Assim, a citação é ato processual essencial, porque é por meio dela que se concretizará o contraditório no processo. O Código de Processo Civil reveste a citação de uma série de formalidades que devem ser observadas.
Quanto à forma, o art. 246 do CPC/15 dispõe que o ato se realizará de forma pessoal (pelo correio, por oficial de justiça, pelo escrivão ou chefe de secretaria ou por meio eletrônico, conforme regulado em lei) ou ficta (por edital ou por hora certa).
O presente trabalho pretende analisar se a citação por meio do aplicativo WhatsApp está em consonância com o devido processo constitucional e, portanto, seu enfoque residirá nas citações por meio eletrônico.
As comunicações dos atos processuais até a pandemia
Seguindo o avanço tecnológico da Quarta Revolução Industrial, o legislador do CPC de 2015 previu, no art. 239, §3°: “Admite-se a prática de atos processuais por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real.”
Os artigos 4° a 7° da Lei 11.419 (Lei dos Processos Eletrônicos), desde 2006, regulamentam a forma de comunicação dos atos processuais eletrônicos.
Segundo o art. 5º, as intimações e as citações serão feitas por meio eletrônico, em portal próprio, aos que se cadastrarem na forma do art. 2º, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico.
No que se refere às intimações veiculadas pelos meios oficiais, quais sejam, o DJe, para os processos físicos, e as plataformas de processos judiciais eletrônicos, como o PJe, não se verificam maiores problemas, já que elas acontecem quando a relação processual já está formada (após a citação).
Entretanto, com relação às citações, a necessidade de cadastro prévio para que ocorram pode acabar inviabilizando a sua realização, uma vez que apenas as pessoas jurídicas são obrigadas a se cadastrarem, nos termos do art. 246, §1º, do CPC.[4]
Portanto, antes da pandemia, as citações ainda ficavam a cargo dos sistemas tradicionais, sendo realizadas, primordialmente, pelo correio ou pelo oficial de justiça. As intimações, pelo portal em que corria o processo eletrônico ou pelo DJe, nos processos físicos.
As comunicações dos atos na pandemia
Com a pandemia e a necessidade de se manter o distanciamento social, diversas providências foram tomadas pelo Poder Judiciário no sentido de se viabilizar a continuidade do rito processual.
Neste sentido, o TJMG autorizou, por meio da nota complementar n° 1/2020 da Presidência do Tribunal, publicada em 26/03/2020, o cumprimento dos mandados judiciais de citação e intimação pelo aplicativo WhatsApp:
Os mandados que se encontrarem em poder dos oficiais de justiça deverão ser preferencialmente cumpridos por meios remotos (telefone, WhatsApp e outros), que evitem o contato presencial dos servidores com partes e advogados, salvo determinação em contrário do juiz competente para apreciar o processo.
Estão ocorrendo citações por WhatsApp, no âmbito do TJMG, nos casos em que a comunicação pelo correio não seja exitosa.
O cumprimento dos mandados segue o seguinte procedimento: a) a parte informa o WhatsApp da pessoa a ser citada; b) o oficial de justiça liga para o citando, pedindo a sua autorização para o envio dos documentos obrigatórios para o WhatsApp. Quando o réu autoriza, os documentos são enviados por fotos e é solicitado pelo oficial o envio de foto do seu documento de identidade para a confirmação. Após, o oficial certifica nos autos todo o procedimento e envia à secretaria do juízo para que proceda à juntada dos prints da conversa aos autos.
Seguindo o entendimento similar do TJMG, o TJDFT, por meio da Portaria GC 155 de 09 de setembro de 2020, autorizou a utilização de meios eletrônicos para a comunicação dos atos processuais e a dispensa da colheita da nota de ciência pelos oficiais de justiça (art. 1º).
Dessa maneira, o TJDFT vem validando as citações e intimações que estão sendo realizadas por WhatsApp, inclusive em processos criminais. Vejamos:
HABEAS CORPUS. AMEAÇA. VIAS DE FATO. CITAÇÃO. MEIO ELETRÔNICO. PORTARIA CONJUNTA Nº 52 E PORTARIA GC 155 DO TJDFT. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. NÃO VERIFICADO. PANDEMIA. COVID-19. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. DENEGAÇÃO DA ORDEM. I - Durante o regime especial de trabalho instituído em razão da pandemia da COVID-19, este Tribunal de Justiça autorizou, de forma excepcional e temporária, a utilização de meios eletrônicos para a comunicação dos atos processuais e a dispensa da colheita da nota de ciência pelos oficiais de justiça (Portaria Conjunta 52 e Portaria GC 155). II - No caso, a certidão exarada pelo Sr. Oficial de Justiça e as mensagens travadas pelo aplicativo WhatsApp denotam que o paciente foi citado e que recebeu o respectivo mandado. III - A declaração de nulidade processual exige a comprovação do prejuízo, nos termos do art. 563 do CPP, do qual se extrai o princípio pás de nulitte sans grief, o que na espécie não foi demonstrado, pois o paciente está sendo patrocinado pela Defensoria Pública, que, inclusive, já apresentou resposta à acusação. IV - Ordem denegada. 3ª Turma Criminal. HC 07530538220208070000. Relator NILSONI DE FREITAS CUSTODIO. DJe 12/02/2021.
Embora estejam ocorrendo na prática, há quem alegue que tal modalidade de citação seria nula por não ser regulamentada por lei.
A experiência dos Juizados Especiais
A Lei nº 9.099 (Lei dos Juizados Especiais) dispõe, expressamente, em seu art. 19 que: “As intimações serão feitas na forma prevista para citação, ou por qualquer outro meio idôneo de comunicação.”
Em 2017, a portaria n° 2 do JESP-BH, regulamentou o procedimento para as intimações no âmbito dos juizados da Fazenda Pública da Comarca de Belo Horizonte. Art. 1º Fica instituído o procedimento de intimação, com a utilização do aplicativo de mensagens WhatsApp, nos Juizados Especiais Cíveis e da Fazenda Pública da Comarca de Belo Horizonte.
Entretanto, o CPC, ao contrário da Lei 9.099, não prevê a intimação por qualquer meio eletrônico, o que, para alguns juristas, gera a conclusão de não ser possível a comunicação por este meio, por ausência de regulamentação.
O entendimento do CNJ acerca das intimações por WhatsApp
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no julgamento Procedimento de Controle Administrativo (PCA) 0003251-94.2016.2.00.0000, entendeu ser válida a intimação por WhatsApp como ferramenta para intimações em todo o Judiciário.
No caso analisado, o Procedimento de Controle Administrativo (PCA) foi instaurado por um juiz que impugnava a decisão proferida pelo Corregedor-Geral da Justiça do Estado de Goiás, que não ratificou a Portaria Conjunta n. 01/2015, que dispunha sobre o uso facultativo do aplicativo WhatsApp como ferramenta para intimações e comunicações, no âmbito do Juizado Especial Cível e Criminal, às partes que voluntariamente aderirem aos seus termos. O Corregedor, inclusive, determinou a revogação da Portaria.
O Corregedor-geral justificando-se nos seguintes termos: (i) a ausência de sanções processuais quando não atendida a intimação torna o sistema ineficaz, pois o jurisdicionado somente confirmará o recebimento quando houver interesse no conteúdo; (ii) houve redução da força de trabalho no juízo, pois a nova sistemática demandou a designação de dois servidores para operacionalizá-la; (iii) a empresa estrangeira (Facebook), controladora do aplicativo WhatsApp, vem descumprindo determinações judiciais para que sejam revelados os conteúdos das mensagens, em ofensa à Lei n. 12.965/2014 (marco civil da internet); (iv) há necessidade de regulamentação legal para permitir que um aplicativo controlado por empresa estrangeira seja utilizado como meio de intimações judiciais, o que não ocorre no caso.
A respeito da confiabilidade do compartilhamento de dados pelo aplicativo, Cristiane Rodrigues Iwakura leciona:
Ao se utilizar do WhatsApp para veicular comunicação dos atos processuais, deve ter a cautela de verificar se a política de privacidade do aplicativo está em conformidade com os seus deveres, tal como estatuídos na LGPD, assim como em todo o microssistema de proteção de dados.[5]
Ao final, por unanimidade, o Conselho concluiu pela validade da portaria, uma vez que a utilização do WhatsApp para intimações é facultativa, de modo que deve haver voluntariedade à adesão dos termos da referida portaria, além de a portaria estabelecer que deve haver “a confirmação do recebimento da mensagem no mesmo dia do envio; caso contrário, a intimação da parte deve ocorrer pela via convencional”8.
O entendimento do STJ
A Defensoria Pública do Estado do Distrito Federal impetrou habeas corpus em favor de um homem que teria supostamente praticado atos de violência doméstica contra sua ex-companheira, pois teria sido citado por meio de WhatsApp.
Assim, a Defensoria do DF alegou a nulidade do ato citatório, que não seria albergada pela legislação penal e estaria em contrariedade ao disposto no art. 351 do Código de Processo Penal. Além disso, alegou que a citação pessoal seria exigência fundamental do Estado Democrático de Direito e, no processo penal, a citação eletrônica estaria expressamente vedada, nos termos do art. 6º da Lei n. 11.419/2006.
No julgamento do caso, os ministros concluíram que, para a citação por WhatsApp ser considerada válida, é necessário que se concorram três elementos indutivos da autenticidade do destinatário: número de telefone, confirmação escrita e foto individual. Desta forma, consideraram nula a citação no caso em questão, pois não havia nenhum comprovante quanto à identidade do paciente[6].
Os Vulneráveis Digitais
Embora o aplicativo WhatsApp seja de conhecimento da maioria da população brasileira, a operabilidade dessa plataforma vai além das mensagens de textos, pois, atualmente, permite o compartilhamento de arquivos de diversos formatos, chamadas de voz e outros recursos[7].
Assim, determinados grupos da sociedade não têm acesso à internet e nem mesmo conhecimento operacional do aplicativo WhatsApp. Em 2019, foi realizada uma pesquisa pelo Centro Regional para o Desenvolvimento de Estudos sobre a Sociedade da Informação (Cetic.br), vinculado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil, que identificou que 134 milhões de pessoas têm acesso à internet. No entanto, mesmo diante de um quantitativo expressivo de usuários e de serviços online, ainda persistem diferenças de renda, gênero, raça e regiões”[8]. Cite-se como exemplo de vulneráveis digitais os indígenas, que durante a pandemia tiveram dificuldades de acesso às plataformas digitais, nas quais se destacam aquelas mantidas pelo próprio Poder Judiciário[9].
Considerações Finais
O art. 277 do CPC de 2015 dispõe que o juiz considerará válido o ato se, realizado de forma diversa daquela prevista na lei, lhe alcançar a finalidade.
Nas lições de Cândido Rangel Dinamarco, “velhos formalismos e hábitos comodistas minam o sistema”[10]
Embora realmente não haja expressa previsão legal acerca da citação por meio de WhatsApp, não há qualquer proibição para tanto.
Além disso, as experiências do Tribunal de Justiça dos Estados de Minas Gerais e do Distrito Federal e dos Territórios demonstram que as citações e intimações têm ocorrido mediante o consentimento da pessoa a ser citada ou intimada. Caso não houvesse esta concordância, talvez poder-se-ia falar em prejuízo para a parte.
A utilização de aplicativos como o WhatsApp para a comunicação dos atos processuais pode ser encarada como uma verdadeira inovação ao sistema de justiça. Entretanto, é necessário que haja um olhar cuidadoso para o grupo de vulneráveis digitais e a devida regulamentação para a sua utilização, com o intuito de se desenvolverem políticas de privacidade adequadas a esta modalidade, a fim de se evitarem danos aos titulares dos dados que estão sendo compartilhados.
Notas e Referências
[1] Além do que o despacho que a determina, interrompe a prescrição.
[2] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 21. ed. Salvador: Jus Podivm, 2019. 1 v., p. 707.
[3] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 297.
[4] As microempresas e as empresas de pequeno porte também não estão obrigadas a se cadastrarem.
8 Acórdão em sede de Procedimento de Controle Administrativo – 0003251-94.2016.2.00.0000. In: Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 278, n. 1, p. 337-344, jan./abr. 2019.
[9] A vulnerabilidade digital dos indígenas da Laranjeira Ñanderu, em sede de ação possessória, esse grupo de indígenas alegaram não compreenderem e nem conseguir acompanhar a realização de julgamento virtual, requereram o direito de verem reunidos presencialmente com os Desembargadores em Plenário. (2ª Turma. Relator Des. Fed. Cotrim Guimarães. TRF3ª Região AGI.n. 5029327-50.2018.4.03.0000, DJe 07.05.2020).
[10] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros , 2001, p. 272.
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A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, implementou no Brasil a ideologia de valorização das entidades familiares, ampliando seu antigo conceito, que se restringia à família nuclear patriarcal, para contemplar novas conjecturas inclusivas, tais como: i) a família monoparental, formada por apenas um dos progenitores e o(s) respectivo(s) filho(s); ii) o expurgo do termo diferenciador de filho ilegítimo, para aquele tido fora do casamento; iii) e o reconhecimento da união estável enquanto entidade familiar.
Mesmo assim, diante de um sistema arcaico tradicional que vigorou por séculos, os tribunais custaram a aceitar a união estável como entidade familiar, principalmente no tocante aos fins sucessórios.
A Lei 9.298/96, que regulamentou a união estável, equiparou os direitos do companheiro supérstite aos do viúvo. Caberia então, ao Código Civil de 2002 adequar a realidade brasileira à CF/88 e à lei específica em vigor desde 1996, mas, nesse assunto, deixou a desejar, inferiorizando a união estável em relação ao casamento.
É sobre isso, especificamente, que passaremos a tratar, sobre o que Maria Berenice Dias[1] nomeia como distinção inconstitucional. Segundo a autora[2], apesar do reconhecimento constitucional da união estável e da posterior edição das Leis 8.971/94 e 9.278/96, o CC/02 em matéria de sucessões inferiorizou o companheiro sobrevivente em relação ao viúvo pelo menos em cinco pontos: i) não o reconhece como herdeiro necessário; ii) não lhe garante cota mínima; iii) situa o companheiro em quarto lugar na ordem de vocação hereditária; iv) limita o direito concorrente aos bens adquiridos de forma onerosa durante a união sem garantia do direito real de habitação; v) define que só há percepção da totalidade da herança se não houver nenhum outro herdeiro.
Diante disso e constatando que o companheiro só consta no CC/02 no art. 1.790 (que trata da sucessão em geral) e não no que traz a ordem de vocação hereditária (art. 1.829), conclui Maria Berenice Dias[3] que “esse tratamento diferenciado não é somente perverso. É flagrantemente inconstitucional, por afrontar o princípio da igualdade”.
Esse tema (a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02) foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal. O leading case foi o RE 646721, oriundo do TJRS, sob a relatoria do Min. Marco Aurélio originalmente. O voto condutor do acórdão, porém, foi do Min. Luiz Roberto Barroso. O referido RE teve sua repercussão geral reconhecida em 11/11/2011; o mérito do recurso foi julgado em 10/05/2017 e o acórdão foi publicado no dia 11/09/2017; a decisão transitou em julgado em 28/03/2019[4].
Assim é que o STF, por meio do sobredito RE, declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02 e fixou a seguinte tese vinculante em sede de repercussão geral (tema 498)[5]: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, prevista no art. 1790 do CC/02, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1829 do CC/02”.
Tratando-se de tese vinculante, a partir da decisão do STF sob comento, passaram os tribunais brasileiros a aplicar à união estável, em matéria sucessória, o art. 1.829 do CC/2002, que trata da sucessão legítima (ordem de vocação hereditária) e que contempla em seu texto apenas o cônjuge sobrevivente.
Na decisão que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02, o STF usou os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e vedação do retrocesso, sendo esse último próprio do direito das famílias, ao protegê-las da cessação de direitos sociais já adquiridos.
Importante destacar que a equiparação da união estável ao casamento, para fins sucessórios, teve como mote uma judicialização anterior que o mesmo STF já tinha feito sobre outra equivalência, a da família homoafetiva à heteroafetiva quanto à capacidade de se constituir família por união estável.
No tocante ao reconhecimento da entidade familiar formada por casais homoafetivos, por meio da ADI 4.277 e da ADPF 132, em 2011, sob a relatoria do min. Ayres Britto – que proferiu um voto épico e foi seguido por seus pares à unanimidade – o Supremo reconheceu a possibilidade de sua existência através da aplicação das regras referentes à união estável[6].
Nesse julgamento, porém, o STF não enfrentou o ponto nevrálgico da questão: a possibilidade de casamento de pares homoafetivos ou de conversão da união estável em casamento.
Posteriormente, a questão – que deveria ter sido institucionalmente solucionada pelo Poder Legislativo – foi resolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução nº 175/2013, que vedou às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
A partir de então, passaram a ser permitidas tanto a conversão da união estável homoafetiva em casamento como a habilitação de casamento de pessoas do mesmo sexo em todos os cartórios do Brasil, independentemente de autorização/determinação judicial.
Quanto à interpretação do art. 1.790 do CC/02 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2011, no AI no REsp 1291636, oriundo do TJDF, de relatoria do Min. Luiz Felipe Salomão, a referida Corte considerou cabível o incidente de inconstitucionalidade do referido dispositivo e, à unanimidade, a 4ª Turma suscitou Arguição de Inconstitucionalidade à Corte Especial[7].
Após a definição da questão pelo STF em sede de repercussão geral, no entanto, o STJ passou a aplicar a tese vinculante respectiva em diversos julgados[8], equiparando, para fins sucessórios, o companheiro na união estável ao cônjuge no casamento, nos termos do art. 1.829 do CC/02.
Apesar de louvável, tal judicialização inclusivista do STF, que repercutiu no STJ, não ensejou o afastamento por completo das aflições decorrentes da imprecisão e do tratamento legislativo diferenciado do instituto da união estável em relação ao casamento.
Sobre o tema, Flávio Tartuce entende que a decisão do STF se limita ao plano da equiparação sucessória entre o casamento e a união estável, não se aplicando a outras questões relativas ao direito de família[9].
Embora a decisão do STF não possa significar, de per si, a equiparação da união estável ao casamento para todos os fins, dados os seus fundamentos determinantes, é perceptível que vem sendo traçado um caminho legislativo e jurisprudencial nesse sentido.
O próprio Flávio Tartuce, ao analisar as disposições do CPC/2015, destaca que, em seu texto, houve uma expressa equalização entre a união estável e o casamento, o que, em seu entender, “trará consequências para o modo como a comparação dessas entidades familiares é feita no âmbito do direito material” [10].
São diversos os dispositivos do CPC que, ao mencionarem o cônjuge, incluíram também o companheiro, podendo-se mencionar, exemplificativamente: a) o art. 244, inciso II, que impede a citação dos parentes do morto, no dia do falecimento e nos sete dias seguintes; b) o art. 388, inciso III, segundo o qual o companheiro não é obrigado a depor sobre fatos que gerem a desonra de seu consorte; c) o art. 73, que trata do consentimento do cônjuge para propor ação que verse sobre direito real imobiliário, que se aplica à união estável comprovada nos autos; d) arts. 616 e 617, que reconhecem a legitimidade do companheiro para a abertura do inventário e para ser nomeado como inventariante; d) o art. 674, que garante ao companheiro o direito de propor embargos de terceiro para proteger a sua meação etc.
Acerca da repercussão dessas disposições no tocante ao direito material, Flávio Tartuce trata do art. 73 do CPC em confronto com o art. 1.647 do CC/02, especialmente no que diz respeito aos incisos que tratam de atos puramente materiais, como a venda e outras alienações de imóvel. Seria necessária a outorga convivencial nesses casos? Para o autor, a resposta é negativa: “a outorga só pode ser exigida dos cônjuges, e não dos companheiros, pelo fato de ser o art. 1.647 do CC uma norma restritiva de direitos que não comporta interpretação extensiva ou analogia” [11].
Já para Maria Berenice Dias[12], “Em face da omissão do legislador, não se pode exigir o consentimento do companheiro para a concessão de fiança ou aval e a realização de doações. Todavia, como a limitação é imposta pela lei a todo e qualquer regime de bens (exceto ao regime da separação absoluta), não há como afastar a mesma exigência em sede de união estável em que vigora o regime da comunhão parcial. Reconhecida a união estável como entidade familiar, é necessário impor as mesmas limitações, para salvaguardar o patrimônio do casal e proteger terceiros de boa-fé”.
Pensamos que assiste razão à autora, pelas razões por ela apontadas relativas ao regime de bens vigorante na união estável. Se o regime definido pela própria lei é o da comunhão parcial de bens, as imposições que lhe sejam decorrentes devem ser aplicadas à união estável, a exemplo daquelas constantes do art. 1.647 do CC/02.
O STJ já se pronunciou nesse sentido, decidindo que “a necessidade de autorização de ambos os companheiros para a validade da alienação de bens imóveis adquiridos no curso da união estável é consectário do regime da comunhão parcial de bens, estendido à união estável pelo art. 1.725 do CCB, além do reconhecimento da existência de condomínio natural entre os conviventes sobre os bens adquiridos na constância da união, na forma do art. 5º da Lei 9.278/96” [13].
Importante destacar que, na jurisprudência do STJ, há uma forte tendência de equiparação da união estável ao casamento para todos os fins, seja no tocante à extensão de direitos, seja no que diz respeito à imposição de deveres.
No AREsp 249923/SC, de Relatoria do Min. Gurgel de Faria, a 1ª Turma do STJ decidiu que “A dinâmica da realidade social exige do intérprete da norma a constante adequação entre o texto da lei e a realidade dos fatos para garantir que as relações jurídicas originadas ou decorrentes da união estável produzam resultados iguais ou semelhantes às situações análogas derivadas do casamento. Não se pode, por outro lado, vislumbrar a equiparação entre cônjuge e companheiro apenas na seara dos direitos, mas também na dos deveres, sob pena de ganhar força a tese de que ao primeiro (o cônjuge) restrições são impostas e ao segundo (o companheiro) isso não acontece, quando deveria ocorrer (se ele é equiparado àquele no tocante aos direitos)” [14].
Já no RMS 59709/RS, de Relatoria do Min. Herman Benjamin, decidiu-se que “não obstante o art. 5º da Lei 3.373/1958 não estipular a união estável como condição para a perda da pensão temporária pela filha maior de 21 anos, até porque à época da citada norma o referido instituto não era reconhecido, sua equiparação ao casamento feita pelo art. 226, § 3º, da Constituição Federal não deixa dúvidas de que a constituição de tal entidade familiar altera o estado civil da beneficiária, fazendo com que ela perca o direito ao benefício”. Restou expressamente referido na ementa que “Estando os companheiros e os cônjuges em igualdade de condições, não se pode conceder mais direitos ao primeiro do que ao último. Não há como conceber que as pessoas em união estável utilizem a legislação somente em benefício próprio, apenas nos aspectos em que a situação de convivência gere direitos e furtando-se aos seus efeitos quando os exclua” (grifos nossos)[15].
Entre as teses sobre a união estável fixadas e divulgadas pelo STJ[16], algumas delas aplicam ao companheiro regras relativas ao cônjuge, podendo-se mencionar as seguintes:
Na união estável de pessoa maior de setenta anos (art. 1.641, II, do CC/02 – regra aplicável ao casamento), impõe-se o regime da separação obrigatória, sendo possível a partilha de bens adquiridos na constância da relação, desde que comprovado o esforço comum;
O companheiro sobrevivente tem direito real de habitação sobre o imóvel no qual convivia com o falecido, ainda que silente o art. 1.831 do atual Código Civil.
Por fim, cabe mencionar interessante julgado do STJ relativo à presunção de paternidade prevista no art. 1.597 do CC/02, aplicável, de acordo com o texto expresso da lei, apenas ao casamento. Trata-se do REsp 1194059/SP[17].
Consta do voto do Relator, o Min. Massami Uyeda, que um homem e uma mulher viveram em união estável, que estava registrada em cartório. Da união, nasceram duas crianças, sendo que, antes do nascimento da segunda, o companheiro faleceu. Foi celebrado acordo extrajudicial de reconhecimento de paternidade entre a genitora, a avó paterna da criança e o irmão do falecido, com o objetivo de ver atribuída a paternidade da segunda menor ao companheiro falecido. Embora personalíssimo o direito de reconhecimento da prole, o feito foi analisado à luz do art. 1.597 do CC, que trata das presunções de paternidade aplicáveis ao casamento. Considerando haver demonstração inequívoca, por meio de certidão de registro civil, ou seja, “documentação hábil e específica da existência de união estável entre os companheiros” a 3ª Turma do STJ decidiu que “(...)se nosso ordenamento jurídico, notadamente o próprio texto constitucional (art. 226, §3º), admite a união estável e reconhece nela a existência de entidade familiar, nada mais razoável de se conferir interpretação sistemática ao art. 1.597, II, do Código Civil, para que passe a contemplar, também, a presunção de concepção dos filhos na constância de união estável” (grifos nossos).
Faz todo o sentido a aplicação das presunções de paternidade decorrentes do casamento à união estável, que também é entidade familiar. Mas há questões que devem ser analisadas quando se permite tal incidência, especialmente em razão da forma de comprovação da união estável para esse, bem como para outros fins: i) sendo a união estável uma entidade familiar informal, deverá ser exigida, para fins de sua comprovação, a escritura pública ou a sentença judicial que tenha reconhecido a sua existência[18]? ii) é razoável exigir a formalização de um instituto que é informal por natureza? iii) é indispensável o registro da união estável no Livro E do registro civil das pessoas naturais, que, pelo Provimento 37/2014 do CNJ, é facultativo? iv) poderiam ser admitidos como meios de prova da união estável o instrumento particular ou a mera declaração dos companheiros? v) nesse último caso, como garantir a segurança jurídica?
Ao que tudo indica, a equiparação da união estável ao casamento revela uma tendência, um caminho sem volta. Porém, quando se analisam a jurisprudência e os atos normativos que estendem à união estável regras aplicáveis ao casamento, constata-se que há necessidade de sua comprovação formal, em regra, através de decisão judicial ou de escritura pública[19].
Se, para que os companheiros possam usufruir dos mesmos direitos conferidos por lei aos cônjuges, faz-se necessária a formalização da união estável, não se admitindo a sua comprovação baseada na informalidade que é da sua essência, o casamento se revela indiscutivelmente mais vantajoso. Diante de tal realidade, pode-se cogitar o esvaziamento do instituto da união estável, a ponto de tal espécie de entidade familiar cada vez mais cair em desuso?
Importante é não se perder de vista que, enquanto reconhecida como instituto passível de constituição de entidade familiar, a união estável não pode sofrer qualquer tratamento diferenciado em relação ao casamento. Urge, pois, uma tomada de posição para a adequada ordenação do instituto no Brasil, com a devida atualização legislativa do tema, já que o CC/02 se apresenta obsoleto, especialmente depois das equiparações levadas a efeito pelos tribunais superiores e pelo CPC/2015.
Notas e Referências
[1] DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 6 ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019. P. 99 e ss.
[4] “Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Aplicação do artigo 1.790 do Código Civil à sucessão em união estável homoafetiva. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. RE 646721, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-09-2017.
[5] Na mesma ocasião foi julgado também o RE 878.694/MG (Tema 809), que fixou a mesma tese.
[6] Seguem alguns trechos da ementa: “(...) O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. (...) O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. (...) Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (ADI 4277, Relator(a): AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341 RTJ VOL-00219-01 PP-00212).
[7] AI no REsp 1291636/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 11/06/2013, DJe 21/11/2013.
[8] AgInt nos EDcl nos EDcl nos EDcl no REsp 1318249/GO, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/09/2019, DJe 30/09/2019
[12] Manual de Direito das Famílias (livro eletrônico). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 425/426.
[13] REsp 1424275/MT, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/12/2014, DJe 16/12/2014
[14] AREsp 249.923/SC, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09/06/2020, DJe 29/06/2020. Nesse julgado, interpretou-se que o art. 64, §1º, da Lei 9.532/1997 se aplica também ao companheiro: “Art. 64. A autoridade fiscal competente procederá ao arrolamento de bens e direitos do sujeito passivo sempre que o valor dos créditos tributários de sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio conhecido. §1º. Se o crédito tributário for formalizado contra pessoa física, no arrolamento devem ser identificados, inclusive, os bens e direitos em nome do cônjuge, não gravados com a cláusula de incomunicabilidade”.
[15] RMS 59.709/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/05/2020, DJe 25/06/2020
[17] REsp 1194059/SP, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/11/2012, DJe 14/11/2012
[18] Exemplificativamente, pode-se mencionar o Provimento 63/2017 do CNJ, o qual, ao tratar do registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida, admite que, no caso de pais que convivem em união estável, somente um deles compareça ao ato de registro, desde que apresente os documentos exigidos, dentre os quais a escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal.
[19] Um outro exemplo é o registro (facultativo) da união estável no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, previsto no Provimento 37/2014 do CNJ. Só se admite tal registro se a união estável estiver comprovada por escritura pública ou por sentença judicial declaratória de reconhecimento.
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A interpretação dos dispositivos relativos aos honorários de sucumbência na ação civil pública é tormentosa desde o início da legislação específica.
O art. 17 da Lei n. 7.347/1985 determina que, em caso de litigância de má-fé, a associação autora e os diretores responsáveis pela propositura da ação serão solidariamente responsáveis pelos honorários de sucumbência e ao décuplo das custas. Já o art. 18 reforça a ideia de que a condenação nas verbas da sucumbência, incluídos os honorários, apenas ocorrerá em caso de comprovada má-fé. Na mesma linha, o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), que tratou do tema em seu art. 87.
Na prática, alguns questionamentos surgiram com relação à sucumbência: essa isenção da condenação, em honorários de sucumbência, salvo má-fé, aplica-se apenas ao autor, quando esse for uma associação, ou estende-se a outros autores? A interpretação desses dispositivos poderia ser mais extensiva para abarcar a isenção dos honorários de sucumbência para a parte requerida?
Para refletir sobre o tema, necessário se faz verificar qual o objetivo do legislador ao prever a isenção de sucumbência apenas para as associações, quando prevê diversos legitimados. É evidente que o legislador, como forma de promover a segunda onda de acesso à justiça,[ii] fez previsão para proteger aquele que pretende defender o interesse da coletividade. O autor, apenas arca com honorários de sucumbência em caso de comprovada má-fé, sendo necessário, portanto, o dolo.
Veja-se que a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LXXIII, disciplina que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou a entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. Apesar do dispositivo referir-se apenas à ação popular, demonstra essa preocupação com a isenção da sucumbência daquele que defende os interesses coletivos, salvo se estiver de má-fé.
Nesse sentido, Daniel Amorim Assumpção Neves defende a interpretação extensiva para abarcar todos os legitimados ativos[iii].
Pelo princípio da simetria poder-se-ia concluir que a condenação do Ministério Público ao pagamento de honorários advocatícios somente é cabível na hipótese de comprovada e inequívoca má-fé[iv]. Na hipótese de má-fé do Ministério Público, inclusive, o entendimento, pela teoria organicista do Estado, é no sentido de que quem responderá será a Fazenda Pública a que o parquet esteja vinculado, ou seja, a Fazenda Pública Federal ou Estadual.[v]
Agora as flores começam a ser pisadas, como retrata o poema referenciado no início, quando se discute a interpretação extensiva para abarcar, na isenção da sucumbência, a parte requerida. O STJ também nominou essa interpretação de princípio da simetria.[vi]
Fredie Didier Jr, Hermes Zaneti[vii] e Daniel Amorim Assumpção Neves[viii] entendem que a isenção deve apenas dirigir-se ao autor.
Veja-se que a legislação trata expressamente da isenção para a associação autora e a interpretação jurisprudencial já havia sido ampliada para abarcar os demais legitimados ativos, o que pode ser justificado quando se pensa em acesso à justiça no aspecto coletivo.
Todavia, a legislação nada fala com relação aos legitimados passivos. Ao se deparar com a previsão do art. 19 da Lei 7.347/85 percebe-se que a melhor aplicação prática do instituto se daria com a utilização das normas do Código de Processo Civil relativas à sucumbência da parte requerida. Dessa forma, tem-se uma dupla regulação dos honorários de sucumbência nas Ações Civis Públicas: i) vencido o autor, aplica-se o art. 18 da LACP ou o art. 87 do CDC; e, ii) vencidos os réus, aplica-se a previsão do CPC.
José Santos do Carvalho Filho, na vigência do CPC de 1973, filiava-se à teoria da dupla regulação do tema:
[...] Em relação ao réu, faz-se aplicável a regra do art. 20 do CP Civil, uma vez que inexiste regra específica na Lei nº 7.347/85, e ainda em razão da incidência do diploma processual geral, quando não contraria suas disposições (art. 19). Sendo procedente a ação, deve o réu, vencido na demanda, arcar com os ônus da sucumbência, cabendo-lhe, em consequência, pagar ao vencedor as despesas processuais e os honorários advocatícios. Como o vencedor não terá antecipado o valor das despesas processuais, o ônus se limitará ao pagamento da verba honorária.[ix]
Essa conclusão privilegia o princípio da especialidade. Na hipótese de ausência de previsão em lei específica, aplica-se a lei geral, ou seja, o Código de Processo Civil.
Ainda, na vigência do Código de 1973, o duplo sistema de sucumbência foi reconhecido pelo STJ, no Recurso Especial n.845339, tendo como relator o Ministro Luiz Fux:
O ônus da sucumbência na Ação Civil Pública subordina-se a um duplo regime, a saber: (a) Vencida a parte autora, aplica-se a Lex specialis (Lei nº 7.347/85), especificamente os arts. 17 e 18, cuja ratio essendi é evitar a inibição dos legitimados ativos na defesa dos interesses transindividuais e (b) Vencida a parte ré, aplica-se in totum o art. 20 do CPC, na medida em que, à míngua de regra especial, emprega-se a lex generalis, in casu, o Código de Processo Civil.[x]
Todavia, nos últimos anos, surgiu uma nova tese no STJ, interpretando de forma extensiva o art. 18, da Lei da ACP, para deixar de condenar a parte requerida em honorários de sucumbência, sob o fundamento de aplicação do princípio da simetria. Diversos são os arestos nesse sentido[xi]. E tais decisões continuam ocorrendo com frequência[xii].
Tal interpretação extensiva faz com que a previsão legal original fique esvaída de sentido. Na tutela coletiva, não se tem igualdade de partes no processo, uma vez que, de um lado está o réu, suposto causador de danos a direitos transindividuais e de outro, o autor ideológico, que representa a coletividade e a defesa da sociedade.
É de se destacar, ainda, que quando o autor intelectual é uma associação, muitas vezes ela não possui fins lucrativos, atuando o advogado de forma pro bono, tendo como única forma de remuneração pelo seu trabalho os honorários de sucumbência.
Tais associações, não fosse a isenção e proteção legal, deixariam de atuar com medo de arcarem com a sucumbência, esgotando os seus parcos recursos financeiros. A intenção do legislador foi a de incentivar a utilização do mecanismo do processo coletivo por quem detém o conhecimento detalhado das necessidades dos seus associados.
Com relação ao réu sucumbente, na ação civil pública, o legislador é silente. Sendo assim, omissa a norma especial, deve-se aplicar a regra geral prevista no art. 85 do Código de Processo Civil, que reconhece o direito do advogado vencedor em receber honorários de sucumbência e prevê o caráter alimentar dessa verba, além de fazer uma previsão minuciosa da fixação desses honorários no caso concreto.
Destaque-se que não se trata de um privilégio à parte autora e, sim, uma forma de equilibrar a parte vulnerável, já que a associação que defenderá direito da coletividade deve ter segurança de que sua atuação não irá, em caso de improcedência, prejudicar a continuidade de suas atividades em razão da condenação em honorários de sucumbência. As associações, via de regra, defendem interesses de pessoas vulneráveis e hipossuficientes.
A interpretação ampliativa dos dispositivos da legislação vigente, para estender a isenção dos honorários de sucumbência inclusive aos requeridos, traz prejuízos aos advogados que atuam nesses processos.
Ressaltando que o advogado é indispensável à administração da justiça (art. 133 da Constituição Federal); que a parte será representada em juízo por advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (art. 103, do CPC/2015); e que a parte vencida deve pagar honorários do advogado da parte vencedora e que essa verba tem natureza alimentar (art. 85 e seu §14), é de se entender que não cabe interpretação que cause a limitação do recebimento dos honorários de sucumbência, exceto mediante expressa previsão legal, sob pena de ofender-se a Constituição Federal.
O que não é correto é impor aos advogados a responsabilidade de conduzir demandas de expressão econômica significativa, que, na hipótese de falha do advogado na sua obrigação de meio, podem gerar a responsabilidade civil proporcional ao montante econômico envolvido na demanda, e não remunerá-lo com base no mesmo critério. Isto, sim, poderia ser um fator de desestimulo à carreira.[xiii]
A continuidade da interpretação do STJ na disciplina dos honorários de sucumbência nas Ações Civis Públicas, da forma como tem ocorrido nos últimos anos, tirará a voz do advogado, que não terá mais a justa contraprestação por atuar na defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. O advogado assume mais riscos, mas não tem a oportunidade de obter honorários de sucumbência como justa remuneração pela sua atuação.
Além disso, a sucumbência funciona também como um fator de ônus financeiro ao perdedor, que, nos casos de ação civil pública, atuou como descumpridor de direitos que afetam toda a coletividade ou grande parcela dela. Interpretando de forma extensiva a norma, condenando-se a parte requerida apenas em caso de má-fé, estar-se-ia causando um benefício aos requeridos das ações coletivas. Benefício esse que não ocorreria numa ação individual. Ou seja, tratar-se-ia questões individuais de forma mais gravosa que as coletivas, o que não parece coadunar com a intenção do legislador na proteção aos direitos coletivos.
Ainda no tocante ao tema de honorários de sucumbência na ação civil pública, discute-se se caberia condenação em honorários de sucumbência em favor do representante do Ministério Público.
O principal argumento contrário ao pagamento de honorários advocatícios ao Ministério Público é a vedação pelo artigo 128, § 5º, II, "a" da Constituição Federal. Deve-se destacar, ainda, que os honorários de sucumbência são privativos aos inscritos na OAB, conforme previsão do art. 22 da Lei 8.906/94.[xiv]
Ainda defendendo o não recebimento de honorários pelo Ministério Público, o STJ entende, que pelo princípio da simetria, se o Ministério Público não pode ser condenado aos honorários de sucumbência enquanto vencido, não poderia beneficiar-se dos honorários quando for vencedor.[xv]
A favor da condenação beneficiando o Ministério Público há argumento doutrinário favorável, sugerindo que tais valores sejam revertidos em favor dos Fundo de Reconstituição de Bens Lesados de que trata o art. 13 da Lei n. 7.347/85. Nesse sentido é o entendimento de Daniel Amorim Assumpção Neves[xvi].
Há Estados que já regulamentaram tal tema e o STJ já reconheceu essa possibilidade em algumas decisões[xvii]. Todavia, nos últimos anos, o posicionamento do STJ é no sentido de não reconhecimento de honorários de sucumbência em favor do Ministério Público.[xviii]
Com relação à fixação em favor da Defensoria Pública, há decisões favoráveis, como o julgamento no AgRg no Resp 1475239/AL, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJE 15/10/2014, que entende que a vedação de recebimento de honorários por membro da Defensoria Pública não impede que as verbas sucumbenciais sejam destinadas à Instituição.
Como se vê, o tema da concessão de honorários de sucumbência nas ações coletivas é ainda extremamente polêmico, tendo a jurisprudência atual, de forma, geral, aplicado interpretação extensiva aos art. 18 da LACP e art. 87 do CDC para entender i) que a isenção se aplica não só quando for a associação a autora da ação, mas para qualquer autor e ii) que não há condenação de honorários de sucumbência em desfavor dos requeridos, por aplicação do princípio da simetria. Em resumo, no entendimento atual do STJ, não cabe condenação em honorários de sucumbência, salvo em casos de má-fé.
Não se vislumbra, no cenário atual, a possibilidade de resolução dessa celeuma de forma breve, já que o entendimento do STJ tem se mostrado unânime nos últimos anos.
Sendo assim, restaria a discussão constitucional no STF, o que ainda não ocorreu. Vislumbra-se que um possível caminho seja a reforma da legislação dos processos coletivos, para constar expressamente o tratamento do tema, de forma clara e sem margens para interpretações equivocadas, prestigiando o trabalho dos advogados. [xix]
É preciso uma forte articulação dos advogados para evitar que a voz da garganta lhes seja arrancada na defesa dos interesses coletivos.
[i] Referência ao poema de Eduardo Alves da Costa, de 1968:
“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
Notas e Referências
[ii] Conforme a clássica obra de CAPPELLETTI, Mauro; Garth, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.
[iii] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de processo coletivo. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 473.
[iv] STJ. Primeira Seção. EREsp 895530 / PR. DJe 18/12/2009; Segunda Turma. AgRg no REsp 1386342/ PR. DJe 02/04/2014; REsp 1422427/RJ, Segunda Turma, DJE 18/12/2013.
[v][v] STJ AgREsp no Aresp 600484 (2015). AgRg nos Edl do Aresp 481585 (2014).
[xi] STJ - AgInt no REsp 1531504-CE, AgInt no AREsp 432956-RJ, AgInt no AREsp 996192-SP, AgInt no REsp 1127319-SC, AgInt no REsp 1531578-CE, STJ - AgInt no REsp 1600165-SP, REsp 1438815-RN, REsp 1362084-RJ.
[xii] No julgamento do AgInt no REsp 1762012 / RJ AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL 2018/0217646-6, julgado em 08/09/2020, o STJ decidiu que: [...] A Corte Especial reiterou o entendimento dos órgãos fracionários do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, em razão da simetria, descabe a condenação em honorários advocatícios da parte requerida em ação civil pública, quando inexistente má-fé, de igual sorte como ocorre com a parte autora, por força da aplicação do art. 18 da Lei n. 7.347/1985 (EAREsp 962.250/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, Corte Especial, julgado em 15/08/2018, DJe 21/08/2018).
[xiii] CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. Não cabimento de honorários advocatícios em mandado desegurança: o entendimento equivocado que virou lei. Revista de Processo, v. 181, p. 189-230, mar. 2010.
[xiv] Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.
[xv] STJ; Primeira Seção, EREsp 895.530/PR, Rel.ª Ministra Eliana Calmon, julg. 26/08/2009
[xvi] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de processo coletivo. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 473.
[xvii] REsp 193.815/SP, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJ 19.9.2005; e REsp 551.418/PR, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ 22.3.2004.
[xviii] PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS E CUSTAS 1. As verbas sucumbenciais somente são cabíveis, em ação civil pública, quando comprovada má-fé. 2. Descabe a condenação em honorários advocatícios, mesmo quando a ação civil pública proposta pelo Ministério Público for julgada procedente. 3. Recurso especial improvido. RECURSO ESPECIAL Nº 785.489-DF - Relator: Ministro CASTRO MEIRA. O assunto ainda pode ser encontrado na Edição 25 do Jurisprudência em Teses do STJ, tese 1) Por critério de simetria, não é cabível a condenação da parte vencida ao pagamento de honorários advocatícios em favor do Ministério Público nos autos de ação civil pública, salvo comprovada má-fé. Acórdãos AgRg no REsp 1386342/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/03/2014, DJe 02/04/2014; REsp 1422427/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/12/2013, DJe 18/12/2013; AgRg no AREsp 021466/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/08/2013, DJe 22/08/2013; AgRg no AREsp 221459/RJ, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/04/2013, DJe 23/04/2013; AgRg no REsp 1320333/RJ, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/12/2012, DJe 04/02/2013; REsp 1264364/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/03/2012, DJe 14/03/2012
[xix] Na Câmara há projetos de lei em trâmite visando alterar ou revogar a Lei de ação pública: o Projeto de Lei 4778/20, que remete às regras de sucumbência do CPC, mas não regulamenta a questão do autor das ações coletivas; o Projeto de Lei 4441/20 que não regulamenta o tema de sucumbência; o Projeto 2943/2019, que apenas dispõe sobre ampliação de legitimidade.
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A utilização dos meios de comunicação na via digital traz certamente uma considerável melhoria na eficiência, celeridade e ampliação do acesso à justiça.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, em 2018, a cada dez domicílios no Brasil, oito possuíam acesso à internet. E este número está em uma curva crescente. A maior parte da população faz este acesso por intermédio de celulares. Registros do IBGE indicam uma sensível redução no número de computadores, televisores e telefones fixos nas casas dos brasileiros [1].
Isto demonstra que o Whatsapp, um dos principais aplicativos de comunicação por imagem, voz e mensagens de texto, tem sido um forte aliado para o desenvolvimento de métodos ágeis aplicáveis a diversas rotinas de trabalho, com alto impacto em setores produtivos e prestadores de serviços essenciais no Brasil.
Recentemente, com a adoção em larga escala do chatbot inteligente [2], o Whatsapp passou a ser adotado também por alguns órgãos públicos, servindo como um novo canal de acesso aos seus serviços, para a divulgação de informações úteis ou o esclarecimento de dúvidas frequentes.
Diante desta nova era, chamada por Klaus Schwab em 2016 como “Quarta Revolução Industrial” [3], a comunicação dos atos processuais passou a ser repensada com o uso de novas ferramentas, destacando-se o uso do correio eletrônico (e-mail) e do Whatsapp.
Em junho de 2017, o Conselho Nacional de Justiça, no âmbito do Procedimento nº 0003251-94.2016.2.00.0000, trouxe à tona uma discussão sobre a validade das intimações judiciais em sede de juizados especiais cível e criminal por meio do Whatsapp, considerando a regra do art. 2º da Lei nº 9.099/95, que estabelece como critérios interpretativos os da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e da celeridade, e do art. 19, que expressamente enuncia ser admissível a realização de intimações por qualquer outro “meio idôneo de comunicação”.
Mas o que poderia ser considerado como meio idôneo para a comunicação dos atos praticados por um órgão público?
De acordo com a decisão do CNJ, de relatoria da Conselheira Daldice Santana, a utilização das intimações por meios tecnológicos idôneos vem amparada desde a Lei nº 11.419/2006, regulamentada pela Resolução do CNJ nº 185/2013, se apresentando como uma alternativa ao método tradicional de comunicação, e não como uma imposição às partes [4].
Considerando que a inclusão digital ainda está em processo de crescimento no Brasil [5], revela-se salutar admitir o emprego dos novos meios tecnológicos de intimação como uma faculdade das partes.
Tal premissa, traçada na decisão do CNJ, é de extrema importância, e traz uma resposta imediata para qualquer questionamento em torno de uma possível violação à privacidade das partes.
Se houver algum receio quanto ao uso do Whatsapp, a parte poderá exigir que a intimação seja feita pelo modo tradicional. Aliás, a dialética deve estar sempre presente em qualquer ato ou determinação que consolide alguma flexibilização procedimental.
Em sede de Juizados Especiais, demonstra-se interessante a prática de se colocar um quesito sobre o uso do Whatsapp nas petições disponibilizadas pelos cartórios às partes que ingressem em juízo desassistidas por um advogado, no exercício do jus postulandi.
O termo “idôneo”, portanto, deve ser pensado de duas formas: no sentido de o instrumento ser tecnicamente eficiente para que se promova a comunicação, ou seja, que permita a transmissão dos dados de maneira rápida, sem ruídos, de maneira clara e fidedigna (aspecto objetivo), e também também no sentido de ser plenamente acessível ao usuário, considerando suas características e circunstâncias pessoais (aspecto subjetivo).
Assim, o Whatsapp pode se revelar como uma excelente ferramenta de comunicação em áreas urbanas, com boa cobertura de internet, mas pode ser inapropriado em áreas sem uma infraestrutura mínima adequada; pode ser muito bom para quem trabalhe diariamente com tecnologia, e ser inoportuno para alguém sem o aparelho celular, ou que tenha dificuldades para operá-lo e não tenha ninguém próximo para ajudar.
Há quem questione a idoneidade do Whatsapp para a comunicação de atos processuais pelo fato de não apresentar uma forma precisa de confirmação para o seu recebimento. Se o teor da mensagem for um ato processual “indesejado pelo seu destinatário”, como é o caso de uma decisão impondo-lhe uma sanção ou uma obrigação, bastaria que ele desativasse a notificação de leitura e fingisse que nada viu.
Quanto a isto, tem-se novamente uma solução pautada na premissa estabelecida pelo CNJ, no sentido da intimação por este meio ser facultativa. Sendo assim, se traduzirá em opção de comodidade ao usuário, que, se imiscuindo de dar a devida confirmação, (em eventual quebra da boa-fé processual) será passível de uma nova intimação pelos meios habituais.
Outro questionamento no caso em análise, pautou-se em suposto descumprimento pela empresa Facebook, responsável pelo aplicativo Whatsapp, de determinações judiciais no sentido de se preservar o sigilo das mensagens, em ofensa à Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet.
Ao lado disto, alegou-se ausência de regulamentação legal para que um aplicativo controlado por empresa estrangeira fosse utilizado como meio oficial para a realização de intimações judiciais. Este, inclusive, é um dos questionamentos mais comuns diante do atual contexto da LGPD e da mudança de política de privacidade do Whatsapp.
Destarte, temos de um lado, argumentos favoráveis ao uso da comunicação por Whatsapp em torno de critérios de eficiência e economicidade, e, de outro, argumentos contrários que se relacionam com questões de proteção aos dados e a preservação da privacidade.
É o antagonismo clássico que se repete em tantos outros casos envolvendo tecnologia e o direito à informação.
No que tange ao fato de o aplicativo ser mantido por uma instituição privada internacional, há uma discussão relevante em torno da possibilidade de se promover a transmissão de dados e informações oficiais do Poder Público em plataformas que não sejam desenvolvidas e mantidas pelos seus próprios órgãos.
Ora, o dinamismo e a velocidade de inserção das novas tecnologias tornam praticamente impossível ao Estado gerenciar e manter todos estes serviços por conta própria.
Sem o auxílio de empresas privadas e estrangeiras, vários avanços não seriam conquistados e implementados no Brasil, pois diversas áreas, desde aquelas responsáveis pelo desenvolvimento e fabricação de vacinas até softwares, envolveram algum tipo de importação da tecnologia de outros países.
Preconiza-se que, em linhas gerais, o processo de internalização de inovações pode ocorrer de três formas: pela importação de bens e serviços, pela importação explícita da tecnologia, ou pelo desenvolvimento autônomo, que por sua vez, é bem mais difícil de ser alcançado em países subdesenvolvidos e com pouco investimento na área de pesquisa e de educação [6].
Destarte, no atual cenário, o regime colaborativo para a inserção de novas tecnologias é única saída para necessidades mais urgentes, o que se intensificou com a pandemia.
A regulação das novas tecnologias tende a seguir a mesma direção, mantendo-se um alto grau de dinamicidade que propicie a absorção de mecanismos e tendências positivas em destaque no cenário internacional. Daí exsurge o protagonismo do Sandbox Regulatório.
Merece registro, neste ponto, o movimento do Open Justice [7], que em tradução literal anuncia uma verdadeira abertura da Justiça, por intermédio de um conjunto de estratégias que sejam aptas ao incentivo para a “entrada de empresas que operam nos setores”, conhecidas pelo termo “lawtechs” voltadas para o desenvolvimento de atividades relevantes para a modernização do Poder Judiciário [8].
Importa salientar que, além dos normativos mencionados na decisão do CNJ, os arts. 236, 246, V, 254, 270 e 272, do CPC tornam clara a permissão para que se utilize o meio eletrônico como forma de comunicação judicial, tendo-se a opção tradicional sempre disponível caso não se consiga localizar ou confirmar o seu recebimento.
Não há norma que restrinja expressamente o uso do Whatsapp. O parâmetro de admissibilidade, portanto, reside na verificação do meio como “idôneo”, qualidade que se conecta com a expressão empregada no art. 270 do CPC, “sempre que possível”.
Ademais, diante do art. 190 do CPC, há uma margem de flexibilização processual que permite ajustes desta natureza, pois as circunstâncias podem mudar ao longo da tramitação processual, tornando as formas de comunicação alternativas até então declinadas pelas partes, como perfeitamente viáveis e adequadas ao novo contexto.
Veja-se como exemplo, que, na pandemia, a adesão a estas formas de comunicação via Whatsapp ou por e-mail aumentaram significativamente.
No mês de janeiro de 2021, circularam entre as redes sociais e meios de comunicação em massa, notícias no sentido de que o Whatsapp traria mudanças na sua política de privacidade que tornariam a troca de dados por meio do aplicativo muito mais vulneráveis aos ataques cibernéticos. Em seus novos termos de uso, o usuário teria que concordar com o compartilhamento dos dados veiculados no Whatsapp com o Facebook, sendo este último na qualidade de seu “dono” e controlador.
Isto gerou um movimento considerável de pessoas dizendo que não utilizariam mais o Whatsapp e que passariam a migrar para outros aplicativos com funções semelhantes, e políticas de privacidade mais rigorosas. Em razão disto, o Whatsapp divulgou no dia 15 de janeiro de 2021, em seu blog oficial, que a entrada em vigor desta nova política seria adiada em três meses [9].
O celeuma é plenamente justificável, pois trata-se de aplicativos com finalidades completamente distintas. No Facebook, o usuário busca uma interação social em um ambiente público, tornando tudo o que veicula visível aos seus amigos e familiares. Já no Whatsapp, mesmo que haja a possibilidade de se formarem grupos temáticos, a intenção é trocar dados dentro de um ambiente mais restrito e seguro. Migrar os dados de uma plataforma mais reservada para outra bem mais aberta, é algo que causa grande insegurança em termos de privacidade, ainda mais quando se sabe que os dados poderão ser utilizados para finalidades desconhecidas que podem impactar severamente a vida do titular dos dados.
Neste ponto, a LGPD é bastante clara ao estabelecer, em seu art. 7º, § 3º, que “o tratamento de dados cujo acesso é público deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua disponibilização.
Por este motivo, o consentimento do usuário deve se pautar em informação clara e precisa, que recaia não apenas sobre o fato de que seus dados serão compartilhados, mas também para qual finalidade poderão ser destinados. Em função disso, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) solicitou ao Whatsapp e Facebook esclarecimentos sobre estas alterações na política de privacidade [10].
No momento em que o Poder Judiciário está processando os dados pessoais dos jurisdicionados, ele se torna responsável pelo seu tratamento, na forma dos arts. 23 a 30 da LGPD. Ao se utilizar do Whatsapp para veicular a comunicação dos atos processuais, deve ter a cautela de verificar se a política de privacidade do aplicativo está em conformidade com os seus deveres, tal como estatuídos na LGPD, assim como em todo o microssistema de proteção de dados e informações, com destaques para a Lei nº 12.527/2011 – Lei de Acesso à Informação (LAI), e a já mencionada Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet).
Pelo exposto, pode-se concluir que o Whatsapp é uma ferramenta de comunicação auxiliar, sem qualquer carga de obrigatoriedade e muito menos um instrumento oficial adotado pelo Poder Público.
Isto faz com que se preservem os limites do desenvolvedor para o estabelecimento de sua própria política de privacidade, e, ao mesmo tempo, se exija dos Tribunais que regulamentem o seu uso para a comunicação de atos processuais, a observância de todo o microssistema de proteção de dados.
Por fim, a ideia do Whatsapp é sem dúvidas uma inovação que não deve ser descartada, pois, em condições ideais, permite uma comunicação rápida e eficiente, servindo como um mecanismo de filtragem das comunicações que deverão ser veiculadas na forma tradicional. A sua existência reforça os pilares da cooperação e da boa-fé processual, e serve como um verdadeiro “nudge” para o movimento gradual de transformação digital tão em voga na atualidade.
[2] O Chatbot inteligente é um mecanismo de resposta automática que viabiliza a filtragem de demandas em canais de atendimento ao público, que confere ao usuário algumas opções numéricas, que o colocam em uma trilha de acontecimentos subsequentes, até que seja alcançada uma solução ou algum tipo de atendimento individualizado.
[3] SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial [livro eletrônico] / tradução Daniel Moreira Miranda. – São Paulo: Edipro, 2019.
[4] SANTANA, Daldice. Acórdão em sede de Procedimento de Controle Administrativo – 0003251-94.2016.2.00.0000. In: Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 278, n. 1, p. 337-344, jan./abr. 2019.
[5] INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA (IBICT). Mapa da Inclusão Digital no Brasil. Disponível em: https://mid.ibict.br. Acesso em: 08 fev. 2021.
[6] AUREA, Adriana Pacheco; GALVÃO, Antonio Carlos F. Importação de Tecnologia, Acesso às Inovações e Desenvolvimento Regional: O Quadro Recente no Brasil. In: Repositório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2754/1/td_0616.pdf. Acesso em: 28 out. 2020.
[8] Podem ser destacadas, como exemplos: jurimetria, analytics, formação de bancos de dados integrados e validados com o uso da blockchain e plataformas de ODRs. Especificamente a respeito do uso da blockchain no Brasil, vale a pena conferir a redação do Projeto de Lei nº 2.876/2020 que tem por objetivo a formação de um Sistema Eletrônico de Blockchain Nacional de Registro de Títulos e de Documentos, e de Registro de Imóveis. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8114989&ts=1591219716314&disposition=inline. Acesso em 03 fev. 2021.
A primeira leitura de rizoma[i] (DELEUZE e GUATTARI, 1995) despertou de imediato ao nosso olhar uma identificação de seus contornos com a mediação. Na tentativa de promover uma maneira alternativa de produção de conhecimento, Deleuze e Guattari apresentam o método que chamam de agenciamento, que corresponde a uma outra forma de leitura das coisas, de compreensão destas, pretendendo produzir a superação de uma dualidade considerada pelos autores dominante como método de produção científica, substituindo-a por uma noção de multiplicidade.
Partindo dessa lógica de pensamento, visualizamos uma identificação dessa teoria com o conceito de mediação proposto por Warat (2004)[ii]. Foi quando encontramos a proposição de Lins (2005) para o desenvolvimento de uma pedagogia rizomática, que consistia no que chamou de “Mangue’s School”, representando a construção de uma forma de ensinar artística e criadora. Sugestionadas por essa tese, tivemos a ideia de aplicar a mesma maneira de pensar à mediação, método de resolução conflitual acolhido e fomentado no sistema processual civil pátrio como forma de promoção do acesso à justiça, sendo esse o objetivo do presente artigo.
Pretendemos, pois, a partir de uma análise crítica dos conceitos encontrados em Deleuze e Warat visualizar a mediação como corpo sem órgãos, a fim de colocar em evidência sua principal característica, a interdisciplinaridade. O transformar de saberes em sabores de Lins (2005) parece-nos fazer todo o sentido quando transportado da pedagogia para a mediação, sendo possível, inclusive, que uns se misturem com outros (saberes, sabores, pedagogia, mediação) nas cadeias rizomáticas de Deleuze e Guattari. Nada de raízes que apreendem, e sim, a fluidez que dá movimento.
Considerando essa condição, o presente texto propõe-se a transitar entre as formas de pensar confrontadas por Deleuze e Guattari, a fim de enquadrar o estudo da mediação como mais adequado se feito sob o método rizomático. Isso devido ao seu caráter transformador, que demanda a superação da ideia de imposição de regras fixas, de amarras que engessam sua realização a ponto de desnaturar sua finalidade, a de solucionar o conflito em sua origem, e não, apenas, superficialmente.
POR QUE UMA MEDIAÇÃO RIZOMÁTICA?
Na concepção de Warat, mediação é arte. É a arte de relacionar-se, é a arte de resolver conflitos tendo em vista a concepção do outro, é a arte de colocar o amor sobre todas as coisas diante de uma situação conflituosa. Nas palavras dele, mediação é:
A inscrição do amor no conflito/
Uma forma de realização da autonomia/
Uma possibilidade de crescimento interior através dos conflitos/
Um modo de transformação dos conflitos a partir das próprias identidades/
Uma prática dos conflitos sustentada pela compaixão e pela sensibilidade/
Um paradigma cultural e um paradigma específico do direito/
Um Direito da outridade/
Uma concepção ecológica do Direito/
Um modo particular de terapia/
Uma nova visão da cidadania, dos direitos humanos e da democracia.
(2004, pp. 67-68)
A confluência de tantas vertentes não poderia jamais ser tratada sob a ótica binária, do confronto de dicotomias do qual se vale a ciência e suas bases estruturais. Foi a partir dessa visão que identificamos no rizoma um aliado na busca por uma definição de mediação que pudesse exprimir todos os conceitos que ela é capaz de abraçar.
A forma de pensar arbórea reflete uma visão limitada das coisas, interioriza, e, paradoxalmente, afasta-nos da própria natureza[iii]. É a esse método que se opõe a ideia de Deleuze e Guattari, que nos apresentam o rizoma como um sistema em que as heterogeneidades encontram conexões entre si, que se constrói a medida que vai se realizando, e não, que se desenvolve em cima de estruturas pré-estabelecidas (1995).
Platôs e agenciamento: o corpo sem órgãos
Na proposta rizomática, aparece a figura do platô, que corresponde a “toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma” (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 15). A leitura do conceito encontrado em Warat, acima transcrito, denuncia como são diversos os conceitos que ele põe em um mesmo platô como forma de definir a mediação: amor, arte, democracia, Direito.
Para Warat, são características gerais da mediação a sensibilidade, a compaixão, a alteridade, o contágio e o diálogo (REBOUÇAS, 2010, pp. 188-189). Nesse caminho, em sendo um mecanismo utilizado para solucionar conflitos, devemos ressaltar que esses conflitos, segundo a teoria em exame, não devem ser vistos sob uma ótica negativa, como poderíamos nos ver tentados a fazer.
Enxergar o conflito como uma chaga que reclama a cura aparece para nós como uma atitude capaz de limitar as potencialidades da mediação. Em verdade, a mediação reconhecida por Warat, apresenta foco na aprendizagem e na subjetividade dos envolvidos (REBOUÇAS, 2010, p. 188). Trata-se, como podemos concluir, de uma visão que transcende ao óbvio, ao comum, ao simples desejo de pôr fim a uma querela entre as partes, trata-se de um projeto que possui referencial coletivo (idem) e visa a produzir efeitos perante toda a sociedade.
Podemos ir mais além, inclusive. O diálogo, por exemplo, é incompatível com uma cultura de competitividade que se revela através de posturas defensivas comuns na comunicação entre pessoas ou grupos (MUSZKAT, 2008, p.63) que são fomentadas pela maneira de pensar hieraquizada em uma estrutura ramificada e sólida. Cientes dessas circunstâncias, observamos que, ainda que se tente introduzir a multiplicidade no sistema arbóreo, a fim de mitigar a forma dicotômica de pensar, essa inserção vai se constituir em um “aborto na raiz principal” (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 3). “Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação” (idem, p. 11), de modo que não é possível, nele, fugir-se a uma ideia de centro de controle das ações que dele emanarem.
No rizoma, por outro lado, não temos ramificações dependentes de um ponto (raiz), mas ligações interdependentes entre si e independentes ao mesmo tempo. Temos as chamadas linhas de fuga, que garantem movimentos de territorialização e desterritorialização, que colocam os chamados agenciamentos – conjuntos de linhas que se interligam em velocidades diversas (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 2) – em conexão uns com os outros.
Considerada como agenciamento, a mediação está interligada a outros agenciamentos. Os planos em que ocorrem esses agenciamentos são nomeados pela dupla pensadora do rizoma de corpos sem órgãos, nos quais se manifestam as singularidades a serem observadas (ROLNIK, 2000, p. 453).
Qual seria o corpo sem órgãos da mediação? “Há vários, segundo a natureza das linhas consideradas, segundo seu teor ou sua densidade própria, segundo sua possibilidade de convergência sobre um ‘plano de consistência’ que lhe assegura a seleção.” (1995, p. 2) E, da mesma forma, a mediação está em relação com outros corpos sem órgãos. Ela mesma pode ser vista como uma linha de fuga do platô que podemos denominar acesso à Justiça, se considerada como alternativa à via judicial propriamente dita.
As pessoas levam seus desejos a um sistema judicial que se apresenta como multiportas. Este, como sugerido por Frank Sander, em 1976, corresponde a uma organização em que o jurisdicionado teria a sua disposição, para solução de conflitos que trouxesse ao conhecimento do Estado, não apenas a via judicial, mas também outros mecanismos disponíveis, a exemplo da conciliação e da mediação (CABRAL, HALE e PINHO, 2016, p. 42).
Sobre esse corpo os agenciamentos se fazem e se desfazem (DELEUZE, 1996). O órgão judicial constitui um platô, a mediação outro platô, assim como a conciliação, ou qualquer outra forma de resolução conflitual, que se intercomunicam e intracomunicam através de agenciamentos, linhas de fuga, que territorializam e desterritorializam.
Para Warat, como a mediação, mais do que um método de solução conflitual, é um instrumento para a transformação do indivíduo, e quiçá, de toda uma coletividade (2004, p. 62). Nesses devires para entender o outro, a nós mesmos, a mediação reclama uma interpretação rizomática.
Os devires da mediação
Uma característica define o rizoma: “Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a outro e deve sê-lo” (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 5). Se pensarmos que a mediação demanda ligações e vínculos, não conseguimos nos afastar de uma visualização rizomática de seus conteúdos. A palavra vínculo, inclusive, é tratada como indicativo da aplicação da mediação pelo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015).
Quanto à forma de se fazer mediação, não podemos apontar uma maneira ideal para a prática. O que existem são técnicas que se misturam e se combinam, e que são usadas entre as próprias partes com a ajuda de um facilitador que não interfere no resultado.
Seguindo nesses caminhos, a mediação é interdisciplinar por excelência, uma vez que seu viés transformativo não comporta uma visão compartimentada dos desejos confrontantes. O tratamento do conflito, cujo conceito carrega, em si, a complexidade como núcleo fundamental, demanda uma atitude que vai além da mera mistura indiscriminada de conhecimentos.
Além disso, “Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer que ele retomará seguindo uma ou outra de suas linhas” (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 6), essas chamadas linhas de fuga fazem parte do rizoma, “não há imitação nem semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante.” (Idem, p. 7)
Por fim, “o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificação, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga” (Ibidem, p. 15). A mediação também é tudo isso, deve ser fluida, deve promover o empoderamento das partes para que estas mesmas encontrem a solução adequada para seus desejos.
A mediação nunca será uma cópia, extraída de um modelo. Ao contrário, trata-se de um instituto que busca seus próprios caminhos, em que se dá espaço para a criação, para a desconstrução e para a reconstrução, de relações, de conceitos, das suas próprias estruturas.
Como consequência, temos que na forma proposta por Warat, a mediação é aliança, ao tempo em que o rizoma de Deleuze e Guattari, é intermezzo, ou seja, intermeio, inter-mediação. Intermediar desejos, encaminhando-os no sentido de solucionar conflitos de maneira a promover a transformação do indivíduo: perfeita combinação, adequação cabível e pertinente.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todas as linhas lidas nos principais textos em análise – Deleuze e Guattari e Warat – víamos devires que transitavam perfeitamente entre os conceitos em debate – mediação e rizoma. A proposta de uma mediação como um método interdisciplinar que procura conferir empoderamento às partes para torná-las aptas a resolverem seus próprios conflitos, e, mais do que isso, a visão de uma mediação capaz de promover a transformação, não só dos conflitos, mas das próprias pessoas, ao que nos parece, não comporta uma análise dicotômica, enraizada, presa a uma estrutura central que não facilitasse a fluidez que o contexto reclama.
Visualizada a convergência entre os elementos de uma e outra teoria, procuramos demonstrar a adequação da forma de pensar apresentada por Deleuze e Guattari ao estudo do referido meio de solução conflitual. Os princípios por eles proclamados como determinantes para a configuração de um rizoma apresentam uma coerência inafastável frente às condições em que a prática da mediação transformadora de Warat atinge seu ápice de funcionamento.
Foi o que se procurou demonstrar ao longo deste artigo. Ao seu final, resta-nos, então, concluir que, diante da complexidade conceitual que carrega esse instrumento de resolução não adversarial de conflitos, uma estrutura de pensar que não respeite sua multiplicidade, seu caráter de mutação constante, não se adequa a suas finalidades e o engessa desnecessariamente.
CABRAL, Trícia Navarro Xavier; HALE, Durval e PINHO, Humberto Dalla Bernardino. O marco legal da mediação no Brasil: comentários à lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. São Paulo: Atlas, 2016.
DELEUZE, Gilles. Desejo e prazer. Cadernos de subjetividade, p. 13-25, 1996.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. Trad.: Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Mil platôs, v. 1, p. 11-38, 1995.
LINS, Daniel. MANGUE´S SCHOOL OU POR UMA PEDAGOGIA RIZOMÁTICA. Educação & Sociedade, v. 26, n. 93, 2005.
MUSZKAT, Malvina. Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações. 2ª ed. rev. São Paulo: Grupo Editorial Summus, 2008.
REBOUÇAS, Gabriela Maia. Tramas entre subjetividades e direito: a constituição do sujeito em Michel Foucault e os sistemas de resolução de conflitos. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. 2010.
ROLNIK, Suely. Esquizoanálise e antropofagia. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora, v. 34, p. 451-462, 2000.
WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004
[i] O presente estudo encontra-se fundamentado na introdução da obra Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, intitulada Rizoma. Em sendo assim, para fins de tornar a leitura do texto menos recortada, por vezes, abster-nos-emos de registrar citações ao longo do trabalho, deixando claro, desde já, que a versão estudada corresponde ao texto de 1995, traduzido por Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa, conforme referenciado ao final deste artigo.
[ii] A mesma observação pertinente à obra de Deleuze e Guattari é aplicável ao texto de Warat que serviu como base para o estudo.
[iii]“A natureza não age assim: as próprias raízes são pivotantes com ramificação mais numerosa, lateral e circular, não dicotômica. (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 3)
Imagem Ilustrativa do Post: Metas nacionais do Poder Judiciário // Foto de: Divulgação/TJGO // Sem alterações
O processo tem como escopo a pacificação social e se presta a possibilitar o serviço jurisdicional, que não pode ser negado pelo Estado ao cidadão.[i] Considerando-se a definição da Organização Mundial de Saúde[ii] de que “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” (g. n.), constatamos a importância do processo como instrumento de concretização do direito fundamental à saúde em sua plenitude. Entretanto, nesse texto, não nos dedicaremos à judicialização da saúde para concessão de medicamentos ou tratamentos médicos, por exemplo, mas trataremos da ação própria para a concessão de curatela, que se fundamenta na transferência da capacidade civil a outrem, tendo como sujeito caricato a pessoa com deficiência mental.
Por isso, a pertinência dessa discussão durante o mês de janeiro, que traz com a cor branca a campanha idealizada pelo psicólogo Leonardo Abrahão[iii] em Uberlândia (MG), em 2013, para a atenção dos cuidados com a saúde mental, seguindo a tendência de movimentos mensais temáticos, como o outubro rosa (câncer de mama) e o novembro azul (câncer de próstata). Essa temática da saúde mental vem levantada em janeiro “porque, no primeiro mês do ano, em termos simbólicos e culturais, as pessoas estão mais propensas a pensarem em suas vidas, em suas relações sociais, em suas condições de existência, em suas emoções e em seus sentidos existenciais.[iv]
As grandes polêmicas jurídico-processuais sobre o tema surgiram entre 2015 e 2016, pela promulgação e entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPCD) e o atual Código de Processo Civil (CPC/15), mas o contexto da pandemia parece ter aumentado o fluxo de incidência de manifestações de doenças mentais e a perspectiva de causas que tutelem esse objeto aumenta. Por isso a conveniência de trazermos essa temática na atualidade.
Abordaremos a mudança de paradigma das incapacidades no Brasil, confrontaremos o abalroamento entre as legislações que tratam do tema e seu impacto no processo, mapearemos o procedimento e apresentaremos opções cabíveis diante das polêmicas oriundas aos institutos na nova sistemática.
NOVO PARADIGMA NO TRATO DAS INCAPACIDADES NO BRASIL COMO REFLEXO DE POLÍTICA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS
A Convenção de Nova Iorque, que trata dos Direitos das Pessoas com Deficiência, teve seu protocolo firmado pelo Brasil em 2007 e, por ser um Tratado Internacional que versa sobre Direitos Humanos, entrou em vigor no país com status de Emenda Constitucional, pela promulgação do Decreto nº 6949/2009. Foi essa norma que trouxe os critérios inclusivos de trato internacional da pessoa com deficiência, tirando o foco dela e remetendo à sociedade. Assim, as diferenças não são negadas, mas consideradas e respeitadas, exaltando a dignidade da pessoa humana incondicionalmente.
Assim, coube ao Brasil promulgar uma lei própria que recepcionasse esses preceitos internacionais, customizando-os ao contexto nacional. Foi assim que surgiu a Lei 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, trazendo em si o impacto de, ao aderir à política internacional de Direitos Humanos, alterar o paradigma historicamente reinante no país para a determinação das incapacidades ligadas à deficiência.
Flávio Tartuce[v] observa que: “Constata-se, portanto, que houve uma verdadeira revolução na teoria das incapacidades, o que repercute diretamente nos institutos de direito assistencial, em especial para a curatela.” Isso porque, o EPCD revoga artigos do vigente Código Civil (CC/02) e reduz a incapacidade absoluta aos menores de 16 anos, havendo quem afirme que reduziu o instituto da curatela aos capazes[vi]. Com isso, o Brasil migra do sistema Dignidade X Vulnerabilidade para o Dignidade X Liberdade.
Bem constata Sabrina Dourado[vii] que: “Nessa toada, a regra passa a ser a garantia do exercício da capacidade legal por parte do portador de transtorno mental, em igualdade de condições com os demais sujeitos (artigo 84, Estatuto da Pessoa com Deficiência).”
A novel legislação (EPCD) fixa como critério da definição de pessoa com deficiência o “impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 2º). Com isso, modifica principalmente os artigos 3º e 4º do CC/02, ao excluir do rol de incapazes as pessoas com deficiência, afastando a presunção de incapacidade e consequentemente excepcionalizando o instituto da curatela, que legalmente passa a ter substitutos graduais, em conformidade com a casuística. É assim que temos em Noronha e Santos que[viii]:
Em verdade, o que o Estatuto pretendeu foi fazer com que a pessoa com deficiência deixasse de ser “rotulada" como incapaz, para ser considerada - em uma perspectiva constitucional isonômica - dotada de plena capacidade legal, ainda que haja a necessidade de utilização de institutos assistenciais específicos para a prática de atos na vida civil, tais como a tomada de decisão apoiada e, extraordinariamente, a curatela, a qual encontra-se restrita, a partir de então, a atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. Temos, portanto, um novo paradigma da capacidade ao conferir capacidade a todas as pessoas portadoras de deficiência, inclusive àquelas que, para atuarem, se valham de um instituto assistencial ou protetivo.
A pessoa com deficiência mental, dependendo da gradação da doença, não haverá de perder sua capacidade civil em desfavor de um curador necessariamente, mas terá opção protetiva da tomada de decisão apoiada, instituto advindo do direito italiano (Amministrazione di Sostegno), que resguarda a autonomia e empodera o sujeito. O próprio STJ[ix] já se pronunciou no sentido de sua prioridade em relação à curatela por interdição.
Ainda que haja a necessidade de uma curatela, advinda por uma ação do rito especial de interdição[x] o impacto da respectiva sentença reduz-se ao campo patrimonial, posto que permanecerá no curatelado a autonomia de decisão sobre os demais campos da vida civil, como casamento, união estável, paternidade etc. Vale ser citado o art. 85 do EPCD, segundo o qual “A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. § 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.” Vale citar também o ENUNCIADO 639 das Jornadas e Direito Civil, do CJF:
A opção pela tomada de decisão apoiada é de legitimidade exclusiva da pessoa com deficiência. A pessoa que requer o apoio pode manifestar, antecipadamente, sua vontade de que um ou ambos os apoiadores se tornem, em caso de curatela, seus curadores.
Mostra-se com isso que, de fato, o Brasil entrou num novo universo no trato das incapacidades e, no caso da pessoa com deficiência mental, os preceitos inclusivistas associam a dignidade da pessoa humana à autonomia da liberdade.
Mas, dada a instrumentalidade do processo, cabe abordarmos agora o rito processual responsável pelo perfazimento das pretensões ligadas a esse objeto, o que trará polêmicas por falta de harmonia legislativa, como veremos a seguir.
INCONGRUÊNCIAS NA TUTELA JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA MENTAL
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) apreciou como de repercussão geral o pagamento dos proventos exclusivamente ao curador do funcionário público aposentado por doença mental. Depreende-se do julgamento do RE 918315[xi], com relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski o seguinte trecho:
Doenças mentais são entendidas por condições de anormalidade ou comprometimento de ordem psicológica, mental ou cognitiva. Há diversos fatores que explicam os transtornos psiquiátricos, como genética, problemas bioquímicos, como hormônios ou substâncias tóxicas, e até mesmo o estilo de vida. Os sintomas podem ser observados no dia a dia (uniica.com.br).
Partindo dessa definição, temos que a doença mental tem que ser medida casuisticamente, por isso, a sentença que institui a curatela tem que precisar seus limites e período, com base nas provas produzidas no processo, mormente a prova técnica através de laudo profissional, que já deve ser juntado na petição inicial, ou justificada sua ausência.
O processo para se obter a curatela é afeto a rito especial, constante no próprio CPC/15, nos artigos 747 a 758. É nesse ponto que surgem as polêmicas advindas do choque entre o EPCD e o CPC/15, já pela nomenclatura da ação! Isso porque o diploma processual civil nomina a ação como interdição, mas como já vimos o Estatuto abole a incapacidade da pessoa com deficiência mental, expurgando a ideia do instituto!
Nas palavras de Flávio Tartuce[xii]: “Curioso perceber que a Lei 13.146/2015 traz uma ideia não de interdição, mas de uma ação judicial em que haverá a nomeação de um curador. Por outra via, o Novo CPC está todo baseado no processo de interdição.”
Injustificável tal desmando legislativo, principalmente porque as duas legislações trouxeram em si grandes expetativas e adequação do sistema à realidade constitucional e foram elaboradas concomitantemente, entrando em vigência com poucos dias de diferença. Fredie Didier destaca que o CPC/15 chegou a ser influenciado por discussões advindas do projeto do EPCD, inclusive a “humanização do processo de interdição (arts. 751, §3º, 755, II); tramitação prioritária de processos de pessoas idosas ou portadoras de doenças graves (art. 1.048, CPC).”[xiii]
Apesar disso, restou o descompasso já alertado por Paulo Lôbo[xiv], causando expectativas na doutrina sobre uma possível adequação legislativa que harmonizasse a ideologia do EPCD e o rito do CPC/20, o que não aconteceu ainda, cabendo ao magistrado a adequação ou flexibilização do rito ao feeling da política internacional de inclusão da pessoa com deficiência, insculpida no referido estatuto, o que leva Gediel Claudino[xv] a afirmar que “Com a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência o objetivo da ‘ação de interdição’ passou a ser mais restrito e ter natureza reconhecidamente protetiva; seu obtivo agora é colocar ‘sob curatela’ pessoa que, por causa transitória ou permanente, não possa exprimir sua vontade”.
O importante é interpretar-se a ação de interdição, que tem como pretensão a instituição da curatela, sob a ótica da autonomia do curatelando, tendo como fundamento o seu melhor interesse. É, a despeito das inúmeras discussões sobre o tema, um procedimento de jurisdição voluntaria, como ressaltado por Humberto Theodoro Jr[xvi]. A competência segue os critérios gerais do art. 46 do CPC/15, já tendo se pronunciado, porém, o STJ[xvii] no sentido de que essa definição deve ter como critério a conveniência do interditando.
PECULIARIDADES PROCEDIMENTAIS DA INTERDIÇÃO[xviii]
Partimos da definição já dada pelo STJ[xix], de que: “A ação de interdição é o meio através do qual é declarada a incapacidade civil de uma pessoa e nomeado o curador, desde que fique demonstrada a incapacidade para praticar os atos da vida civil do interditando.” O procedimento da ação de interdição está contido no CPC/15 entre os artigos 747 a 758, além de dispositivos pontuais do EPCD e CC/02, como veremos a seguir.
A pretensão desse tipo ação é a concessão da curatela, com a nomeação do curador e a decretação de seus impactos específicos a cada caso e dentro de um espaço de tempo definido. Destacaremos na sequência as principais peculiaridades que tornam especial o rito desse tipo de ação.
Sobre a legitimidade, consta no art. 747 CPC/15, mas vale trazermos à baila a possibilidade, não contemplada nesse diploma, de autointerdição, constante no art. 1.768 do CC/02, introduzido pelo EPCD. Sobre isso, destaca Fredie Didier[xx] a importância dessa faculdade, que privilegia o interditando que não pode contar com a própria família ao passo em que desafoga o Ministério Público. Configura claramente a ideia da autonomia e empoderamento da pessoa com deficiência.
Merece ainda destaque a necessidade de juntada do laudo médico que atesta a doença mental e suas circunstâncias já na petição inicial, ou justificada sua ausência em caso de urgência.
Citado pessoalmente, o interditando deverá comparecer em juízo para ser entrevistado pelo juiz, com a participação de equipe multidisciplinar, se o caso exigir. Esse ato, que não é interrogatório e pode se realizar na própria residência, não se restringe à pessoa do interditando, podendo incluir parentes ou pessoas que possam ajudar na formação do livre convencimento do juiz, sendo tudo reduzido a termo. A partir daí, abre-se o prazo de 15 dias para impugnação do pedido de interdição, que poderá ser feita pelo próprio interditando, inclusive.
Findo o prazo, com ou sem impugnação, segue-se a realização da perícia médico-psiquiátrica do interditando, conditio sine qua non para a constituição da curatela, sob pena de nulidade. Inclusive, a jurisprudência tem se pronunciado no sentido de que apenas a juntada de laudo médico, que já é exigido na petição inicial, não substitui a necessidade de realização da perícia médico-psiquiátrica pelo perito judicial[xxi]. Produzidas as demais provas, como depoimentos, caso o juiz ache necessário, pode requisitar ainda perícia complementar.
Finda a instrução, segue para a sentença, na qual se devem considerar também os artigos 84 e 85, do EPCD. Assim, além de fundamentar seu convencimento no melhor interesse do interditando[xxii], o juiz, se entender pela interdição, deverá precisar seus limites de conteúdo e tempo, além de nomear o curador[xxiii]. A sentença terá aplicabilidade imediata e não caberá efeito suspensivo em caso de recurso. Além de natureza declaratória, é também constitutiva e deve ser inscrita no registro civil e ser amplamente publicada.
Outra peculiaridade do rito é o não cabimento de ação rescisória, uma vez que há a possibilidade do levantamento da interdição, para casos de reversão. Em sendo de jurisdição voluntária, não faz coisa julgada material. Assim como pode-se promover em procedimento próprio, a remoção do curador, com o devido contraditório.
Ressalte-se que uma medida mais amena e mais aconselhada dentro da ideologia internacional inclusivista do trato da pessoa com deficiência mental é a já vista tomada de decisão apoiada. Ressaltamos apenas que não segue o mesmo procedimento da ação de interdição, até porque não está regulada no CPC/20, mas entrou pelo EPCD no CC/02, devendo ser guiada pelo seu artigo 1.783-A.
À GUISA DE UMA CONCLUSÃO
No mês dedicado à campanha do Janeiro Branco, de cuidados com a saúde mental, durante uma pandemia que exige isolamento social e gera insegurança mundial e exige adaptações de condutas e percepções, é importante que discutamos os instrumentos processuais protetivos da pessoa com deficiência mental, para que o processo atinja seu fim de pacificação social e promoção do bem estar do jurisdicionado.
A política internacional de Direitos Humanos, a que o Brasil foi signatário pela Convenção de Nova Iorque, que entrou no sistema nacional com status de Emenda Constitucional, fundamentou a edição da lei 13146/2015 (EPCD), que apesar de ter sido concomitante e ter influenciado a lei 13105/2015 (CPC/15), não guardou com ele a harmonia de trato sobre a instrumentalização do rito respectivo à concessão de curatela, que retrogradamente ainda se nomina Ação de Interdição.
A migração para o paradigma da Dignidade X Liberdade exige que o profissional do Direito use da hermenêutica inclusivista, que considera as diferenças e respeita cada peculiaridade da pessoa com deficiência como elemento determinante de sua dignidade.
Logo, o critério a ser considerado é o da autonomia e melhor bem estar da pessoa com doença mental. Excepcionalmente, caberá a curatela, através do rito especial do CPC/15 da ação de interdição, mas há de privilegiar-se o procedimento especial de tomada de decisão apoiada, regulado pelo CC/02 e EPCD, resguardando-se, entretanto, o ENUNCIADO 640 das Jornadas de Direito Civil, do CJF: “A tomada de decisão apoiada não é cabível, se a condição da pessoa exigir aplicação da curatela.”
Notas e Referências
[i] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Volume 2. 8 Ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
[v] TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016. P. 467.
[vi] Não é objeto do presente estudo a análise dessa polêmica, mas vale registrar que doutrinadores que defendem essa corrente alegam que ao absolutamente incapaz o instituto da tutela supre a representatividade civil. Em contraponto, há quem defenda o cabimento excepcional da curatela em menores, dada a especificidade do instituto, mas apenas por ação judicial própria.
[viii] NORONHA, Carlos Silveira; SANTOS, Charlene Côrtes. Reflexões sobre a conformação do instituto da curatela frente ao novo Código de Processo Civil e ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 38, p. 35-61, ago. 2018. file:///C:/Users/emili/Downloads/83692-354741-2-PB.pdf. Acesso em 18/01/21
[ix] A esse respeito, anote-se que a Lei 13.146/2015 ? Estatuto da Pessoa com Deficiência ? expressamente reconheceu a marca de profunda excepcionalidade que deve nortear o eventual decreto de interdição da pessoa portadora de deficiência, tornando preferível que se adote o procedimento de tomada de decisão apoiada (art. 1783-A do CC/2002), (...). SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. TERCEIRA TURMA. RECURSO ESPECIAL Nº 1.645.612 - SP (2015/0264695-8) RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI. 12/11/2018. https://corpus927.enfam.jus.br/inteiro-teor/pr91rq53jxvx
[x] Debruçaremo-nos sobre a polêmica do uso do termo interdição, para nomear a ação que tem como pretensão a curatela, no próximo item.
[xvi] THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Procedimentos Especiais – vol. II. 51ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017. P. 552.
[xvii] STJ, 2ª Seção. Ag. Rg no CC 100.739/BA, Rel. Min. Sidnei Beneti, ac. 26.08.2009, DJe 05.10.2009. Apud THEODORO JR, Humberto. Op. Cit. p. 553.
[xviii] Assim como grande parte da doutrina processualista, seguiremos a nomenclatura mantida pelo CPC/20 para o rito especial da ação que tem como pretensão a concessão de curatela – Ação de Interdição.
A relação familiar é essencialmente uma relação privada. Todavia, o fato de a sociedade ter como uma de suas bases solidificadoras a própria família faz com que a tutela dessa entidade milenar seja estatalmente garantida. Mas, pensemos, qual família o Estado brasileiro atual tutela?
O fato é que a evolução cultural e social impulsionou mudanças em todos os campos do direito e no direito das famílias, como não poderia deixar de ser, as movimentações foram ainda mais evidentes. Devemos sopesar, sem dúvidas, que essa evolução social – acompanhada, obviamente, por evolução legislativa – tive como marco emblemático, especialmente ao direito das famílias, a Constituição Federal de 1988 que, tal como um divisor de águas, foi capaz de dividir o Direito de Família em antes e depois do advento da Constituição Federal (LIMA; ROSA; FREITAS, 2012, p. 27).
Após o advento da Constituição cidadã, portanto, ao direito privado se passou a incorporar de maneira ainda mais evidentes contornos constitucionais. Podemos dizer, desse modo, que o direito das famílias é direito privado constitucional. E não poderia ser diferente, já que a Constituição de um Estado tem esse sentido de estruturação (TARTUCE, 2017. p. 96).
O fato é que, ao estruturar todo o sistema jurídico, a Constituição acaba também por estruturar o direito privado, já que suas bases principiológicas não poderão, por certo, afrontar as questões constitucionais. Por esta razão, a análise do direito de família sob o viés principiológico mostra-se imprescindível. Desse modo, o presente estudo tem como escopo principal examinar os princípios do direito privado aplicados ao direito das famílias, especialmente analisando o tema sob o viés jurisprudencial. Vejamos, portanto.
Princípios e Direito de Família: um casamento perfeito
A família contemporânea, como dito, não é mais aquela de outrora: institucional, engessada, imutável. É família em constante movimentação, que exige adaptação do sistema jurídico em um nível de mobilidade que, muitas vezes, o processo legislativo não acompanha.
Por essa razão – e por estarmos em um sistema jurídico aberto – é que nos princípios gerais o Direito de Família buscará muito de sua aplicabilidade. De fato, nas palavras de Kohler:
Faz-se necessário, então, buscar nos “Princípios Gerais do Direito” as bases da compreensão e aplicação de um direito mais justo. Se uma lei não estiver em consonância com os princípios gerais do direito, os julgamentos não serão verdadeiramente justos. É que “a significação lógica das leis e sua virtude plasmadora das relações sociais pode ir, e geralmente vai, muito além do que pensaram e previram os que formavam.
É que, com a mudança de enfoque da família instituição para a família eudemonista a dignidade humana passa a ser o foco da ordem jurídica, passa-se a valorizar cada membro da família e não a entidade familiar como instituição. (PEREIRA, 2016, p. 65).
Assim é que, estando diante de dinâmicas familiares novas – onde a tutela jurídica deixa de ser harmonia institucional para ser dos membros individualmente pensados – é que faz cada vez mais sentido enxergarmos a principiologia jurídica como fonte primordial ao Direito de Família.
Com efeito, pensarmos o sistema jurídico fechado como suficiente para atender demandas familiares das mais diversas complexidades parece absolutamente irreal. Não é possível que haja previsão expressa para todas as possibilidades que as relações humanas no núcleo familiar possam gerar. Daí porque especial importância terão os princípios para o direito de família.
Podemos até mesmo afirmar que, diante da complexidade das relações humanas e da complexidade das questões familiares, os princípios, no direito de família, deixam de ser apenas supletivos para integrar de maneira fulcral a discussão. De fato,
A expressão “princípios gerais do direito” é de uso corrente nos ordenamentos jurídicos e está presente na maioria dos códigos civis e de processo civil do mundo ocidental. Com a crescente tendência de constitucionalização do Direito Civil, consequência dos movimentos sociais e políticos de cidadania e inclusão, os princípios gerais têm se reafirmado cada vez mais como uma importante fonte do Direito e têm se mostrado para muito além de uma supletividade. (PEREIRA, 2016, p.42)
Nos parece, portanto, que analisar o direito das famílias sob o viés principiológico garante uma maior amplitude de sua aplicação, uma possibilidade de abrangimento maior das questões que eventualmente novas necessitem de tutela jurisdicional. Significa permitir que a maleabilidade das relações familiares possam ser tuteladas de maneira ampla e significativa.
E a necessidade de um maior abrangimento da tutela ganha maior importância quando se pontua que atualmente as formações das famílias se veem marcadas por estruturas maleáveis e bastante mutáveis.
De fato, os casamentos - outrora realizados para perdurar “até que a morte os separe” - já são menos duradouros e indissolúveis. O último censo realizado no ano de 2010 já apontava que 16,3% das famílias atualmente existentes são resultados de recasamentos (IBGE, Censo 2010). Considerando o número oficial de 69 milhões de núcleos familiares no Brasil (IBGE, Censo 2010), estamos falando de mais de 11 milhões de famílias que se formam contemplando um maior interlaçamento de pessoas e relações.
Mas não é só. O Brasil tem um número extremamente expressivo de famílias constituídas por relações não formalmente regulamentadas (36,4% dos casais - IBGE, Censo 20102), trazendo aspectos que podem, em algum momento, não encontrar na letra da lei solução factível.
Há ainda outras questões ligadas à parentalidade que preocupam. No país, de acordo com o último Censo Escolar realizado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ (2013), há 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. Há, portanto, muitos filhos sem paternidade reconhecida. Além disso, há 2,5 milhões de enteados que moram com seus padrastos e madrastas, constituindo, eventualmente, relações socioafetivas que podem precisar de tutela específica que dependa de interpretação principiológica. Outro dado interessante é que 46,1% dos divórcios no país ocorrem enquanto os casais ainda tem filhos menores de idade, situação que também é fonte quase que inesgotável de conflitos e dilemas.
A importância dos princípios no direito das famílias ganha força quando pensamos que são eles cambiantes e sua plasticidade permite uma aderência maior ou menor em consonância com circunstâncias temporais, fáticas e jurídicas imanentes aos casos concretos (LOBO, 2019, p.34).
São muitos senões. Em um campo tão fértil – e incerto, diga-se – contar que o texto legal, por si só, sejam suficientes, é uma verdadeira utopia. Daí porque cada um dos princípios assume papel crucial (muitas vezes central) no direito posto. Verifiquemos, um a um, os princípios aplicados ao direito de família, com julgados de Tribunais pátrios hábeis a ilustrar a sua aplicabilidade.
2. Princípios um a um: análise de julgados sob o viés do direito das famílias
2.a) Princípio da dignidade da pessoa humana
Se há lugar, tempo e modo para tratarmos de dignidade da pessoa humana, este é a família e o seu campo de direito correlato. E isto porque, como macro-princípio do qual se erradiam os demais (PEREIRA, 2020, p.83), é da dignidade que se partirá para a tutela plena dos demais pontos fulcrais do direito das famílias.
Não há como negar que família é sinônimo de dignidade:
A família, tutelada pela Constituição, está fracionalizada ao desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que a integram. A entidade familiar não é tutelada para si, senão como instrumento de realização existencial de seus membros. (LÔBO, 2020, p.60)
Daí porque, ainda que tutelada a autonomia da vontade e a plena liberdade familiar, o certo que a dignidade é verdadeiro limitador ao tema, como legítima barreira às questões que permitam flexibilizações, liberalidades e liberalidades (art. 226 §7º).
Cumpre salientar que os artigos 227 e 230 da Constituição Federal trazem especial atenção à dignidade aos vulneráveis, cujos interesses são tutelados e salvaguardados de maneira especial.
Os tribunais pátrios inúmeras – para não dizer incontáveis – vezes lançam mão da dignidade da pessoa humana para enfrentar os mais diversos temas de direito das famílias. Exemplos não faltam para tanto: fim da discussão da culpa nas rupturas – já que não há razão para que o Estado interfira na intimidade conjugal para aferição de culpa sem que isso impacte na dignidade do jurisdicionado -, família unipessoal e proteção do bem de família, famílias homoafetivas, parentalidade socioafetiva, dentre inúmeros outros exemplos.
O princípio foi amplamente invocado para a apreciação do RE 898060/SC, com repercussão geral, para apreciação da questão afeta ao conflito entre as paternidades socioafetiva e biológica:
Recurso Extraordinário. Repercussão Geral reconhecida. Direito Civil e Constitucional. Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica. Paradigma do casamento. Superação pela Constituição de 1988. Eixo central do Direito de Família: deslocamento para o plano constitucional. Sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB). Superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias. Direito à busca da felicidade. Princípio constitucional implícito. Indivíduo como centro do ordenamento jurídico-político. Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos. Atipicidade constitucional do conceito de entidades familiares. União estável (art. 226, § 3º, CRFB) e família monoparental (art. 226, § 4º, CRFB). Vedação à discriminação e hierarquização entre espécies de filiação (art. 227, § 6º, CRFB). Parentalidade presuntiva, biológica ou afetiva. Necessidade de tutela jurídica ampla. Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante. Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CRFB). Recurso a que se nega provimento. Fixação de tese para aplicação a casos semelhantes. (...)
A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade. 4. A dignidade humana compreende o ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se em liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de vida tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão (BGE 45, 187). 5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobreprincípio da dignidade humana.
Aqui, como se vê, o Tribunal constitucional invocou a dignidade da pessoa humana como meio de equacionar a inexistência de pacificação e norma específica sobre eventual superioridade do vínculo biológico sobre o socioafetivo. Acertadamente, a nosso ver, o Supremo Tribunal Federal considerou que a dignidade humana se sobrepõe a eventual valoração institucional de um ou outro meio de constituição de parentalidade e filiação, tutelando de maneira plena os filhos, seja qual for a origem do vínculo parental.
Com efeito, vale pontuarmos que a dignidade – entendido aqui como o mínimo existencial para que o ser humano se entenda como tal – é conceito basilar da vida humana. Assim, compreendendo que a família é centro de desenvolvimento pleno do ser como ele é e deve ser, será também a família a base mais plena para que se tutele a dignidade como elemento de desenvolvimento primordial do ente dentro da realidade social.
2.b) Princípio da pluralidade familiar
Previsto nos artigos 226 a 230 da Constituição Federal, este princípio estabelece liberdade de forma para constituição e preservação familiar. Não há restrição, numa primeira análise, nas conformações que possam ser juridicamente reconhecidas como entidades familiares.
Daí que podemos imaginar que cada um dos núcleos familiares podem refletir escolhas individuais indispensáveis à realização da pessoa como ser único. Pode ser família para aquele ser humano o que ele, dentro de seus valores, princípios e conjecturas assim considerar. Mas, afinal, não há nenhum limitador a essa pluralidade? Quais seriam os requisitos para a constituição familiar?
A priori podemos considerar como requisitos básicos a seriedade do vínculo entre os entes, a estabilidade na relação familiar e a existência de verdadeiro propósito de constituição de família (TEPEDINO-TEIXEIRA, 2020, p. 23).
O fato é que a rigidez outrora existente no ordenamento – família matrimonial, heteroafetiva, patriarcal – dá margem a uma flexibilidade maior e que reflete muito mais a realidade familiar da sociedade pós 1988, circunstância que fez com que a jurisprudência levasse em consideração o aludido princípio para contemplar direitos e obrigações a algumas famílias tradicionalmente excluídas de tutela jurisdicional.
Assim é que vimos, na Ação Direta de Inscontitucionalidade ADI 4.277, o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Com efeito, daquele brilhante julgado, pudemos verificar a aplicação do princípio da pluralidade familiar como elemento permitidor para o reconhecimento e tutela das famílias homoafetivas. De fato:
Tratamento Constitucional da Instituição da Família. Reconhecimento de que a Constituição Federal não empresta ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica, A família como categoria sócio-cultural e princípio espiritual. Direito subjetivo de construir família. Interpretação não- reducionista. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nema formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa” (ementa do acórdão)
O princípio da pluralidade familiar – com a vedação de família que não aquelas descritas na letra da lei - foi, justamente, o que propiciou ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de, acolhendo a ação direta de inconstitucionalidade – alçar a família homoafetiva à condição de entidade familiar plena, com direitos e deveres devidamente garantidos. Com efeito, não se pode olvidar que a ausência de texto legislativo seja óbice para o reconhecimento da união estável homoafetiva.
2.c) Princípio da Solidariedade
Dissemos alhures que a família é local de busca da felicidade e realização plena de cada um dos seus membros, afastada a tutela outrora considerada da instituição sobre os membros. É, portanto, local de respeito a individualidade de cada um dos membros que a compões. Há, todavia, um limitador a esse elemento individual tutelado.
Previso no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal, o princípio da solidariedade é verdadeiro limitador ao individualismo, à autonomia e eudemonismo. E isto porque não há como deixarmos de considerar que as opções familiares estão, a princípio, ligadas ao outro e é impossível não haver responsabilização pelos vínculos.
Nas relações familiares, não há como negar, a responsabilização deveria ser regra na vinculação. No sentir de Hans Jonas, a responsabilidade das pessoas é o primeiro objeto de responsabilidade dos outros:
De fato, a reciprocidade está sempre presente, na medida em que, vivendo entre seres humanos, sou responsável por alguém e também sou responsabilidade de outros. Isso decorre da natureza não autárquica dos homens, e, pelo menos no que tange à responsabilidade original dos cuidados parentais, todos nós a experimentamos algum dia. Nesse paradigma arquetípico evidencia-se de forma cristalina a ligação da responsabilidade com o Ser vivo (JONAS, 2006, p. 175)
Infelizmente, contudo, vemos que a vinculação responsável nas relações familiares nem sempre é regra. Não fosse assim, o Brasil não contaria cerca de 6 milhões de crianças sem registro paterno, não teria instalada uma epidemia de violência doméstica, tampouco seria verdadeiro recordista em ações alimentares, o que denota completa irresponsabilidade parental com a prole. Nesse ponto, aliás, importante pontuar que segundo o relatório do Conselho Nacional de Justiça de 2019, o país contava 860.228 demandas alimentares em curso.
Aliás, a temática alimentar é campo fértil para a aplicação do princípio da solidariedade que é invocado, especialmente quando se trata da temática alimentos entre cônjuges/companheiros. Foi, de fato, o que ocorreu com a apreciação, pelo Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial Nº 1.185.337 -RS:
Recurso Especial. Concubinato de longa duração. Condenação a alimentos. Negativa de vigência de Lei Federal. Caso peculiaríssimo. Preservação da família X dignidade e solidariedade humanas. Sustento da alimentanda pelo alimentante por quatro décadas. Manutenção de situação fática preexistente. Inexistência de risco para a família em razão do decurso do tempo. Comprovado risco de deixar desassistida pessoa idosa. Incidência dos Princípios da Dignidade e Solidariedade Humanas. Dissídio Jurisprudencial. Inexistência de similitude fático-jurídica.
A aplicação do princípio, acertadamente, mostra ao ente familiar que sua individualidade tem limitações quando precisa se responsabilizar por aqueles com quem convive ou conviveu. É o reconhecimento de que a moral social precisa, por vezes, se sobrepor à moral individual pois
É no princípio da solidariedade que devermos buscar inspiração para a vocação social do Direito, para a identificação do sentido prático do que seja funcionalização dos direitos e para a compreensão do que pode ser considerado parificação e pacificação social (NERY, 2014, p.554)
De fato, dar à família caráter evidentemente privado transfere para seus próprios membros uma enorme carga de responsabilidade (RODRIGUES, TEIXEIRA, 2010), que certamente é fortificada com a aplicação do princípio da solidariedade no direito das famílias.
2.d) Princípio da Autonomia Privada e as portas de acesso à conciliação e mediação. Meios processuais eficientes e harmônicos com o Direito Constitucional das Famílias durante e após a pandemia do CORONAVÍRUS- COVID 19.
Importante mais uma vez pontuarmos que as normas de direito de família são normas de direito privado. E isso porque os interesses a que destinam tutela e aplicação são particulares e individuais. Evidente, todavia, que há interesse da coletividade nas questões familiares – até mesmo porque, como já dito, a família é a base da sociedade -, mas esse interesse não pode se sobrepor à autonomia de cada membro da entidade familiar.
É assim, portanto, que a tutela aos interesses familiares jamais poderão ser confundidas com poder de intervenção efetiva na realidade familiar. Cada família, de per si, é entidade autônoma privada e deve ter a sua autonomia totalmente garantida. Assim é que o disposto no artigo 1513 do Código Civil garantirá que é defeso a qualquer pessoa de direito público ou de direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família.
Pondere-se, contudo, que a autonomia privada precisa ser encarada em sua mais moderna tradução, que perpasse sempre na sua análise associada também sob o viés da dignidade e responsabilidade já que é somente com essa trilogia que será possível que cada pessoa construa, de fato, autonomia em todas as suas potencialidades (TEIXEIRA, 2019, p. 159).
Foi essa interpretação que o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do recurso especial REsp 1.119.462/MG, concedeu ao princípio da autonomia privada:
o direito de família deve ocupar, no ordenamento jurídico, papel coerente com as possibilidades e limites estruturados pela própria CF, defensora de bens como a intimidade e a vida privada. Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação de liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, no interior de espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de 'asilo inviolável'. Sendo assim, deve-se observar uma principiologia de 'intervenção mínima', não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria CF como invioláveis. Deve-se disciplinar, portanto, tão somente o necessário e o suficiente para a realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família”.
A aplicação prática da autonomia privada nas relações familiares se apresenta das mais diversas maneiras. É verdade, assim, que vemos tal princípio desde a própria constituição da entidade familiar – forma, por exemplo, pela qual a relação afetivo/familiar se desenvolverá – como quanto às escolhas patrimoniais que decorrem da vinculação familiar. A escolha do regime de bens entre cônjuges, por exemplo, é questão clara que perpassa pela autonomia da vontade daqueles que o elegem:
“em razão do princípio da autonomia da vontade, garante-se aos cônjuges a máxima liberdade na escolha do regime que consideram preferível, podendo as partes aceitar um regime típico com a regulamentação legal existente, ou modificá-lo de acordo com as suas conveniências, desde que não violadas as normas imperativas referentes aos fins do casamento e à estrutura da família"(FONSECA, 2018. p.73)
A verdade é que, diante das alterações sociais que trouxeram maleabilidade e novas perspectivas à vida familiar, a autonomia privada é elemento essencial do desenvolvimento humano no seio da família. Não se mostra possível – tampouco inviável – que se permita intervenção estatal em questões que tratem, por exemplo, da intimidade de cada um dos membros da família constitucional. Por outro lado, a autonomia não é plena se não observar, como dito, responsabilidade e dignidade. Conflitos pertinentes a problemas na esfera das famílias- superlativos em tempos de isolamento social e convívio intensificado das famílias, ou mais grave, pelas dificuldades econômicas decorrentes da crise pandêmica, podem demandar portas de acesso à conciliação e mediação durante e após o “novo normal”. A conciliação e a mediação “online” são meios de facilitação do diálogo por uma terceira pessoa, dotada de independência e imparcialidade, que poderá contribuir para a construção de uma solução reciprocamente satisfatória. Esses conflitos, mesmo fora do contexto da pandemia, já evidenciam com clareza a incompletude das soluções processuais impostas pelo Poder Judiciário. A procura por vias que evidenciem o resultado prático do processo e o aprimoramento dos princípios da oralidade e da economia processual, antes até do período de isolamento social e de mutações nas dinâmicas familiares consequentes, ainda que de modo de ato processual “online”, é pedra angular para obstaculizar desdobramentos ainda mais deletérios para as famílias e ao sistema processual brasileiro. Esses ruídos de comunicação na convivência entre pais e filhos, tendem a robustecer com o decurso do tempo e, muito provavelmente, desembocarão no processo judicial. Portanto, é compreensível e até alvissareiro o incremento na busca por solução tecnológica de conflitos sem olvidar dos sentimentos de angústia,pesar e perplexidade que também assombram milhares de almas humanas e também de juristas e pesquisadores familiaristas e processualistas. A legislação processual civil vigente anterior à pandemia,na disciplina do artigo 334, § 7, em 2015, explicitou a escolha do Legislador Processual Civil sob a égide dos Princípios Constitucionais, a viabilidade de audiências de conciliação e de mediação no formato eletrônico. A mediação, de forma mais acurada em seu próprio diploma legal, citou a rede mundial de computadores ou outro veículo de comunicação social que viabilize as interações processuais remotamente, tendo como pré-requisito o acordo entre as partes.
2.e) Princípio do Melhor Interesse da criança e do adolescente
Talvez o mais aclamado princípio dentro do direito das famílias, o melhor interesse da criança e do adolescente é (ou, ao menos, deveria ser) verdadeiro bálsamo para os infantes tristemente envolvidos em demandas familiares. De fato, como ser humano em desenvolvimento, a criança e o adolescente merecem especial atenção e cuidado, o que foi contemplado pelo legislador constituinte na Carta Magna.
A previsão do princípio se encontra no artigo 227, caput, da Constituição Federal. É ainda previsto nos artigos 1583 e 1584 do Código Civil. A indispensabilidade da previsão ligada ao princípio do superior interesse das crianças e adolescentes repousa no fato de esses entes tutelados serem dotados de evidente vulnerabilidade:
Ao contrário do matrimônio, no qual vigoram os princípios da liberdade e da igualdade entre cônjuges, na parentalidade, o filho é sujeito a uma relação entre desiguais, caracterizada, tipicamente, pela vulnerabilidade e pela dependência do segundo em relação aos primeiros, uma vez que se trata de pessoa em formação (LAGE, 2019)
A grande crítica que se pode fazer parte na generalização e ampla utilização do princípio para todas as direções do direito de família. Em outras palavras, facilmente se vê o princípio do superior interesse das crianças e adolescentes ser invocado para, de alguma forma, se afrontar diametralmente a lei.
Exemplo claro disso é a invocação do princípio para afastar a regra legal da guarda compartilhada. Não raras vezes nos deparamos com julgados que, supostamente em nome do superior interesse das crianças e adolescentes, se furta à aplicação do texto legal.
Nessa mesma linha, vemos repetidamente a invocação do princípio também utilizado para justificar patente descumprimento da Convenção de Haia quanto ao sequestro internacional de crianças e adolescentes, tratado internacional do qual o Brasil é signatário desde o ano 2000.
É neste sentido, inclusive, o julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do recurso especial nº 1.788.601 – SP:
Internacional e processual civil. Recursos especiais. Ação de busca, apreensão restituição proposta pela união. Acórdão de origem que denegou a restituição. arts. 12 e 13 da Convenção de Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças. Decreto 3.413/2000. Interesse do menor. Interpretação finalística. Criança maior de dezesseis anos. Inaplicabilidade da convenção. Ruptura do núcleo familiar. Risco de grave perigo de ordem psíquica.
Com efeito, a referida Convenção, que é a mais importante a dispor sobre os direitos das crianças, integrando-se ao contexto da Convenção Interamericana sobre Restituição de Menores, tem como escopo a tutela do princípio do melhor interesse da criança. Esse princípio, segundo o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, teve sua origem na Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela Organização das Nações Unidas - ONU no ano de 1959. O best interest of the child, ou princípio do melhor interesse da criança, deve ser entendido tendo em vista as verdadeiras necessidades da criança envolvida. O bem estar da criança deverá ser garantido, deixando qualquer interesse relativo aos pais para o segundo plano. Ou seja, o interesse da criança deverá se sobrepor ao de seus pais, quando em colidência ou quando inconciliáveis.
III. No caso em tela, parece inquestionável a prática de ato ilícito por parte da requerida, K. C. F., correspondente, especificamente, à retirada das menores da Suécia, país de residência habitual da família, sem o consentimento do pai C. B., diante da violação do direito de guarda que era exercida também por ele. Tal conduta, como comprovam os documentos trazidos nos autos, vem prevista no aludido art. 3°, alíneas"a" e "b", da referida Convenção. Ora, tendo o pai assentido na viagem das menores ao Brasil para aqui ficarem até determinada data, a permanência das crianças para além da data aprazada, por vontade e decisão unilateral da mãe, constitui abuso contra direitos do pai. (...)
Não obstante, ainda que não tenha decorrido o prazo de 1 (um) ano estabelecido, saliente-se que a Convenção de Haia autoriza a manutenção da criança no país em que estiver abrigada se o retomo comprometer o seu bem-estar físico ou psicológico, priorizando, portanto, o seu interesse em detrimento da vontade dos pais. Tal assertiva consta do artigo 13 da Convenção onde se prevê, inclusive, a possibilidade de oitiva da própria criança quando esta já atingiu certo grau de maturidade
A grande crítica que fica é que a aplicação do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, muitas vezes, é invocado sem que se delimite os elementos objetivos que o caracterizem, sem que se especifique quais as razões, dentro do caso concreto, que demonstram que aquela decisão específica tutela o interesse do vulnerável.
2.f.) Princípio da Igualdade entre cônjuges/companheiros
Dos mais importantes avanços que podemos citar é que a constituição cidadã, em seu artigo 5º, inciso I, preconiza a igualdade entre direitos e obrigações de homens e mulheres. Significa dizermos, portanto, que aquela mulher que, durante grande parte do século passado era tida como ser secundário de direitos foi, a partir de 1988, alçada à condição de par do homem, até então mantido em condição de superioridade jurídica positivada.
De fato, com a expressa previsão no artigo 5º, inciso I da Constituição, a mulher passou a usufruir de um status jurídico formal de igualdade com os homens, numa relevante evolução, tendo em vista que até 1962 – ou seja, até o advento da Lei nº 4.121 – o status legal da mulher era de pessoa relativamente incapaz, implicando em limitações para a prática autônoma de diversos atos da vida civil, inclusive uma profissão. (LOIS, CASTRO, 2019, p. 216).
Numa primeira – e superficial – análise, poderíamos imaginar que séculos de desigualdade positivada estariam, em razão do festejado preceito constitucional, superados. Passaríamos, então, com a igualdade jurídica, a imaginar a existência desde logo, de igualdade plena entre homens e mulheres. Como, todavia, lei não altera, ao menos de imediato, realidades sociais, a situação feminina passa a largo dessa igualdade.
Muito embora ainda se tenha uma realidade social de grande desigualdade, muitos temas familiaristas – guarda, convivência de filhos, questões patrimoniais e, principalmente, a fixação de pensão alimentícia para o cônjuge/companheiro (leia-se, na grande maioria das vezes, para as mulheres) – já passaram a ser enfrentados sopesando o princípio da igualdade constitucionalmente previsto.
Esperava-se, todavia, que o movimento de equiparação se desse de maneira mais paulatina e não tão assoberbada. Acontece, contudo, que assim como a legislatura conta com maior superioridade numérica masculina, a interpretação das normas, também pelo maior número de homens na sua aplicação, possui caráter eminentemente sexista:
A interpretação dos direitos fundamentais, quer estejam previstos em constituições nacionais ou em tratados internacionais, também tem sido realizada por homens, os debates em torno de direitos individuais ou de direitos sociais, ficam confinados a debates, interpretações, leis e decisões feitas por homens e nos termos que eles estabelecem (TOMAZONI, BARBOZA, 2019, p. 244).
A realidade da mulher como colaboradora – e não sujeito ativo de direitos – relegava a ela papel secundário na formação familiar. Era o homem – e somente ele – responsável pela administração dos bens da família, pela escolha do local onde todos viveriam, pela representação legal do clã, enfim, era o chefe da sociedade conjugal.
Ainda que discretamente, em meados do século anterior, especialmente com o início do movimento feminista, vê-se a mulher ganhando um pouco mais de autonomia tanto na vida familiar, quanto na vida em sociedade. O primado da responsabilidade marital pelos encargos familiares, compatível com os usos e costumes dominantes à época da elaboração do CC/1916, como compensação à chefia da sociedade conjugal, foi-se diluindo paulatinamente a partir de meados do século passado em razão das novas posturas reconhecidas à mulher na sociedade moderna (CAHALI, 2009, p. 148).
Eis que então temos o advento da Constituição Federal de 1988 que chancela, expressamente, que homens e mulheres são iguais sujeitos de direitos e deveres. Infelizmente, a inclusão constitucional não foi acompanhada, ao menos num primeiro momento, de modificação expressiva na legislação infraconstitucional, muito menos de real modificação nas estruturas sociais.
De fato, continuavam flagrantes no texto legal infraconstitucional, especialmente no Código Civil de 1916, a desigualdade positivada em leis que alçavam o homem a lugar de indiscutível superioridade. A igualdade legal custava, e muito, a chegar, especialmente no ordenamento que tratava do direito das famílias, onde ainda se lia em artigo de lei expressões discriminatórias e extremamente sexistas.
O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento RE 658.312/RJ, houve por bem reconhecer que o princípio da igualdade legalmente previsto, infelizmente, não corresponde a realidade social brasileira:
Não há como negarmos que a igualdade estritamente jurídica somente transcenderá a letra da lei – planando também nos vieses sociais - quando for conferido às desigualdades tratamento desigual na medida de sua desigualdade, e indivíduos identificados como especialmente vulneráveis em função do grupo social a que pertencem têm reconhecido pelo sistema constitucional o direito à proteção do Estado, na forma de mecanismos eficazes de dissuasão, contra violações de sua integridade pessoal.
Muito embora o próprio tribunal constitucional já tenha decidido no sentido de que a igualdade formal não representar, necessariamente, igualdade material, nos deparamos algumas vezes com outras decisões diametralmente opostas. Foi o que houve, inclusive, por ocasião do recente julgamento do AREsp 1737142, ocasião em que o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva teve oportunidade de ponderar que:
A igualdade entre o homem e a mulher estabelecida na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002 se faz em todos os campos, não sendo possível que a ex-mulher prefira continuar a viver de pensão do ex-esposo.
Os alimentos não podem se tornar fonte de renda, mas apenas auxílio financeiro nos casos de comprovada necessidade, não havendo prova de impossibilidade da autora se manter sozinha.
O tema é, portanto, espinhoso. A grande questão que não quer calar é sopesarmos se, de fato, o princípio da igualdade está plenamente aplicado quando se trata da questão afeta ao gênero e se, considerado também sob o prisma da solidariedade, como há de ser aplicado.
2.g) Princípio da Monogamia (ou valor)
A primeira grande questão no que toca à monogamia é a compreensão no sentido de ser ela, de fato, princípio ou um valor jurídico. Considerando a monogamia como valor ético que norteie a vida humana, temos que entendê-la como valor jurídico. Atribuindo a ela status de norma de conteúdo aberto temos que compreendê-la como princípio.
Há divergência doutrinária sobre o tema. Para Rodrigo da Cunha Pereira, a monogamia é princípio:
O princípio da monogamia, embora funcione também com ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio ordenador. Ele é um princípio básicoe organizador das relações jurídicas da família do mundo ocidental. Se fosse mera regra moral, teríamos que admitir a imoralidade dos ordenamentos jurídicos do Oriente Médio, onde vários países não adotam a monogamia. (PEREIRA, 2016, p.127)
Já Maria Berenice Dias, por sua vez, compreende não ser um princípio propriamente dito. No entendimento da jurista, não sendo um princípio estatal propriamente dito, é uma regra adstrita à proibição de mais de uma relação matrimonializada ao mesmo tempo (DIAS, 2016, p. 45).
Enfrentada no REsp 1348458 / MG, o tema rende inúmeros debates, mormente porquanto a questão perpasse necessariamente à valoração de condutas sociais e morais que, embora sedimentadas na sociedade e no senso comum como algo correto, não é unanimidade na comunidade jurídica:
Direito Civil. Recurso Especial. Família. Ação de Reconhecimento de União Estável. Relação concomitante. Dever de Fidelidade. Intenção de constituir família. Ausência. Artigos analisados: Arts. 1º e 2º da Lei 9.278/96.
Ação de reconhecimento de união estável, ajuizada em 20.03.2009.
Discussão relativa ao reconhecimento de união estável quando não observado o dever de fidelidade pelo de cujus, que mantinha outro relacionamento estável com terceira.
Embora não seja expressamente referida na legislação pertinente, como requisito para configuração da união estável, a fidelidade está ínsita ao próprio dever de respeito e lealdade entre os companheiros.
A análise dos requisitos para configuração da união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, e também a fidelidade.
Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade - que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo - para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.
Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. 7. Na hipótese, a recorrente não logrou êxito em demonstrar, nos termos da legislação vigente, a existência da união estável com o recorrido, podendo, no entanto, pleitear, em processo próprio, o reconhecimento de uma eventual uma sociedade de fato entre eles.
Recurso especial desprovido.
Talvez a grande discussão sobre o tema possa gerar empasses sobre a possibilidade de flexibilização, via acordo prévio entre os envolvidos, da existência de uma única relação de conjugalidade envolvendo uma mesma pessoa.
Com efeito, diante da privatização das relações familiares e da tão comemorada interferência mínima na intimidade relacional dos entes do núcleo da família, chega-se a ponderar se existiria direito estatal que possa impedir pactos que afastem a monogamia? A existência de resistência social – muito mais ligada às questões morais que propriamente jurídicas – será capaz de afastar a autonomia privada.
2.h. Princípio da Afetividade (ou valor)
Definitivamente incorporado nas discussões que tratem sobre o direito das famílias, o afeto pode ser considerado importante amálgama capaz de gerar reflexos no campo das relações humanas.
Importante desde já pontuar que o afeto juridicamente relevante – e tutelado - não é mero fato psicológico, não é amar ou gostar de alguém com quem mantém vínculo familiar. Afetividade, para o direito das famílias, é composta pela concretização de atos/fatos capazes de gerar deveres e direitos de entes entre si. Portanto, ainda que haja desamor ou desafeição, atos de vinculação afetiva são capazes de gerar reflexos jurídicos.
Há também celeuma quanto ao tema e seu enquadramento como princípio ou valor jurídico. Entendida como valor jurídico, podemos considerar a impossibilidade de se falar em direito ou dever de afeto, não obstante sejam devidamente valoradas as condutas concretas que traduzam a existência do sentimento em si (TEPEDINO-TEIXEIRA, 2020, p. 23).
Outros doutrinadores, todavia, consideram a afetividade princípio fundamental no direito das famílias:
Atualmente, é possível afirmar que a afetividade é o grande vetor dos relacionamentos familiares, constituindo-se no novo paradigma, sendo, no cenário brasileiro, princípio contemporâneo do Direito de Família (CALDERON, 2019, p.52)
No mesmo sentido, Rodrigo da Cunha Pereira:
A afetividade é um princípio constitucional da categoria dos princípios não expressos. Ele está implícito e construído nas normas constitucionais, pois aí estão seus fundamentos essenciais e basilares: o princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, III), da solidariedade (art. 3º, I), da igualdade entre os filhos, independentemente de sua origem (art. 227, §6º), a adoção como escolha afetiva (art. 227, §§ 5º e 6º), a proteção da família monoparental, tanto fundada em laços de sangue ou por adoção (art. 226, §4º), a convivência familiar assegurada à criança e ao adolescente, independentemente da origem biológica (art. 227). (PEREIRA, 2016, p. 220).
O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar questão ligada à afetividade no REsp 945283/RN, entendeu pela aplicação da afetividade como princípio:
Direito de Família. Guarda de menor pleiteada por avós. Possibilidade. Revalência absoluta do interesse da criança e do adolescente observada (…) 4. O que deve balizar o conceito de “família” é, sobretudo, o princípio da afetividade, que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico.
O fato é que, princípio ou valor jurídico, não há como compreender o direito das famílias sem considerar a afetividade como elemento primordial ao seu desenvolvimento. Com efeito, as relações familiares se mostram as mais férteis para que o sentimento humano aflore. Evidente que o direito constitucional das famílias e os meios consensuais de direito processual civil não tutelarão o sentimento familiar em si, mas os atos concretos correlatos a ele terão espaço na tutela jurisdicional e nos atributos das portas processuais de acesso, os direitos fundamentais.
3. Considerações Finais
A constitucionalização do direito privado é um movimento sem retorno. Diversamente de um conflito decorrente de uma relação consumerista, os familiares podem demandar dos estudantes e profissionais do direito um raciocínio e um labor dotado de sofisticação e imbricações entre o Direito Constitucional das Famílias e o Direito Processual Civil. Evidente que o direito das famílias – privado - não pode descolar-se dos preceitos constitucionais e, consequentemente, dos princípios. A conjuntura da pandemia e do “novo normal” ( pós pandemia) implica na redesignação do agir no manejo dos direitos materiais e instrumentos processuais dos cidadãos e o inescapável enfrentamento da trágica pandemia da COVID-19. Aqui nesta contribuição estamos moduladas quer seja no prisma do Direito Constitucional das Famílias, quer seja no Direito Processual Civil na forma de adoção de meios consensuais, dentro ou fora do Sistema de Justiça Estatal. Respeitosa e pacientemente, nas hipóteses de acessibilidade processual e qualidade dos serviços do Estado Juiz, os princípios constitucionais das famílias e o direito processual civil, calcado nos meios consensuais são congruentes, e já traduzem as oportunidades do uso de meios consensuais na etapa anterior ou no curso processual.
De fato, família é ente em constante evolução. Como vimos, o desenvolvimento social propiciou evidente mudança na família institucional e engessada que, outrora, regia a vida social. Hoje cada vez mais as organizações familiares são maleáveis e mutáveis.
Daí porque impossível imaginarmos a aplicação do direito das famílias em a utilização de um sistema vivo, aberto, capaz de adaptar-se a cada um dos dilemas que a sociedade trouxer buscando solução. E, para tanto, os princípios serão importantes ferramentas.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana tem (e sempre terá) ampla acolhida e aplicação no Direito das Famílias. Família é berço de dignidade. É lugar de desenvolvimento da plenitude humana em todos os seus meandros. É na família que o ser humano consegue plenitude para desenvolvimento e busca de sua dignidade.
Podemos considerar, inclusive, que da dignidade decorre a pluralidade familiar. É esse Princípio que permite que as mais variadas conformações familiares tenham reconhecimento e tutela. O texto legal define família no sentido lato e não jurídico. Permite que os entes, por si, constituam núcleos familiares, desde que esses respeitem requisitos já apontados neste trabalho.
Já o Princípio da Solidariedade representa a obrigatoriedade de responsabilização de cada um dos entes da família por seus vínculos. De fato, a relação familiar pressupõe cuidado, deveres, vínculos salvaguardados e hígidos. Vimos ainda que o Princípio da Autonomia da Vontade tem grande aplicabilidade no direito das famílias, mormente se considerarmos que a intervenção estatal, em uma realidade de direito civil constitucional, deve ser mínima, apenas garantidora da segurança e plenitude de cada ente.
O melhor interesse das crianças e dos adolescentes, por sua vez, é mola propulsora da tutela jurisdicional dos seres humanos em formação. É princípio garantidor de tutela específica para a vulnerabilidade desses jurisdicionados em situação de proteção plena. Já a igualdade entre cônjuges, por sua vez, foi capaz de garantir que a família antes comandada pelo patriarca passasse a ser a família democrática com igualdade – ao menos formal – entre os membros que a orbitam.
Por fim (mas não menos importantes), analisamos a monogamia e a afetividade, discutindo sua inclusão (ou não) na categoria dos princípios e a sua importância para o direito das famílias.
Conclui-se pontuando que, sem os princípios, é verdadeiramente utópico imaginar a possibilidade de efetividade do direito das famílias. É preciso, todavia, que a aplicação desses princípios seja sempre precedida de uma análise sob a perspectiva de todo um sistema integrado, em cotejo – e não em oposição – à legislação vigente. Princípio, portanto, não pode ser subterfúgio para ativismo judicial ou desconsideração legal.
Notas e Referências
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DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2016.
FONSECA, Priscila Corrêa da. Manual do planejamento patrimonial das relações afetivas e sucessórias. São Paulo: Thompson Reuterus. 2018.
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LIMA, Ana Cristina Quint de; ROSA, Conrado Paulino da; FREITAS, Douglas Philips. Adoção por casal homoafetivo. Florianópolis: Vox Legem, 2012.
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Não é segredo que a tutela jurisdicional executiva não vem recebendo a atenção e o tratamento devidos no processo civil brasileiro. Esse cenário não se restringe ao território nacional, sendo compartilhado por diversos países ao longo da história, a ponto de ser um traço comum do panorama processual no mundo.
Se de um lado é antiga, crescente e generalizada a preocupação com a efetividade do processo, por outro, paradoxalmente, não se costuma destinar atenção prioritária ao estudo da execução. Embora o processo executivo seja campo preocupado por excelência com a realização de direitos, apresenta-se como terreno pouco ou mal explorado, não sendo raro associá-lo a um caráter meramente acessório e complementar em relação ao processo cognitivo.
No ensejo do centenário de Clarice Lispector, um exercício metafórico pode ser útil, ou ao menos interessante: se a mesa da ciência processual estivesse posta, a tutela executiva seria vista como algo semelhante a um café frio, item pouco disputado e que gera olhares de espanto a quem se interessa por apreciá-lo[i].
É preciso partir da ideia de que o exercício da jurisdição não está limitado ao julgamento resultante da atividade cognitiva, já que não é suficiente para o credor o anúncio formal de que está juridicamente certo[ii]. Em verdade, a frequente resistência do obrigado no atendimento da prestação corrobora a incapacidade do processo de conhecimento em garantir a modificação da situação de fato ao titular do direito[iii].
Em termos estatísticos, o cenário executivo é pouco animador. De acordo com a última apuração anual do Conselho Nacional de Justiça, dos 77 milhões de processos judiciais existentes no país, 55,8% estão em fase de execução. Além dos processos executivos serem maioria, possuem as maiores taxas de congestionamento[iv].
Sabe-se que os problemas enfrentados pela execução são plurais e complexos, indo de aspectos jurídicos a questões sociais, políticas e econômicas, de difícil resolução[v]. A amplificação do acesso ao crédito, o avanço tecnológico, a rápida depreciação patrimonial, a reduzida reprovabilidade social ao estado de inadimplência e a insuficiente estrutura das instituições de justiça são exemplos situados no segundo grupo. De toda sorte, apesar dos fatores técnicos não estarem sozinhos, exercem função essencial na racionalização dos rumos do processo civil executivo, sendo grave equívoco desvalorizá-los, como há tempos alertou Barbosa Moreira[vi]. Os negócios jurídicos processuais executivos se inserem nesse quadrante.
Há dois principais fundamentos normativos que estimulam a negociação processual no âmbito executivo: a cláusula geral de negociação processual (art. 190, CPC) e o regime de disponibilidade da execução (art. 775, CPC). Assim, é necessário romper com o dogma de que toda execução seria necessariamente imposta ou forçada, como uma expressão absoluta do poder de império do Estado, sem espaço para diálogo ou ajustes entre os envolvidos. A lógica negocial e cooperativa também informa o procedimento executivo, existindo ampla margem de conformação do seu percurso[vii].
Com o sistema processual em vigor, a incidência da vontade das partes no processo se fortaleceu, conduzindo o ambiente processual a se tornar terreno propício ao exercício da liberdade. Na execução, isso é intensificado, uma vez que se desenvolve em favor da realização dos interesses do credor, podendo desistir de toda a execução ou de medidas executivas, sem precisar, como regra, da anuência do executado. Trata-se de campo que lida com a satisfação do direito de crédito, com acentuada natureza patrimonial e com vastas possibilidades de autocomposição[viii], o que propicia a modificação consensual das suas formas, atos e situações jurídicas processuais.
O incentivo à consensualidade é facilmente notado pela presença no CPC de leque bastante significativo de acordos processuais na execução. Para mencionar alguns: cláusula de eleição de foro (art. 781, I); suspensão convencional da execução (arts. 921, I e 313, II); pacto de impenhorabilidade (art. 833, I); avaliação consensual do bem penhorado (art. 871, I); e escolha do executado para depositário (art. 840, § 2º).
Mas é no terreno da atipicidade que está a grande potencialidade do tema e também suas maiores discussões. A doutrina processual já sinaliza ser possível acordo para supressão de efeito suspensivo de recurso; convenção de não promoção de cumprimento provisório; acordo para dispensa de caução; convenção de modificação da ordem preferencial de penhora; acordo de inexecução de multa coercitiva; pacto para escolha do depositário-administrador e do avaliador, assim como do regime de pagamento e distribuição de gastos; acordo de preferência do método expropriatório; exclusão consensual de medida executiva atípica ou transformação consensual dela em medida principal...[ix] Não há como inventariar todas as possibilidades, visto que seria tarefa incompatível com a fluidez e amplitude do modelo de atipicidade negocial.
Um ponto que merece atenção é como o tema dos negócios processuais executivos tem sido recebido pelos tribunais, sobretudo pelo Superior Tribunal de Justiça, considerando a relevância da sua atuação para a uniformidade de interpretação de leis federais, como são o CPC e diversas legislações processuais esparsas.
É certo que o termômetro de utilização dos negócios processuais não deve ser o amplo posicionamento do Poder Judiciário ao seu respeito. Primeiro, porque o Código está em vigor há menos de cinco anos, tempo insuficiente para essa avaliação. Segundo, se a convenção for celebrada, aplicada, e não suscitar dúvidas, sequer será profundamente debatida pelas instâncias judiciais, até mesmo por ser dispensada a sua homologação pelo órgão julgador, salvo exigência expressa nesse sentido. Sem prejuízo disso, importa saber como o controle de validade dos negócios processuais está sendo realizado na execução, em especial em relação ao objeto das convenções atípicas.
A limitação objetiva da negociação processual é assunto sensível e dotado de elevada complexidade. A ausência ou multiplicidade de critérios, com a utilização de parâmetros demasiadamente genéricos, vagos e imprecisos, pode acarretar a proliferação de interpretações que, ao cabo, inviabilizem o próprio objeto do acordo[x]. Com efeito, a realização adequada do controle judicial da convenção é importante para que não se proíba, por via transversa, o que o legislador expressamente permitiu, tampouco sejam adotados critérios que sirvam ao propósito de fomentar decisões arbitrárias ou de difícil controle, conforme Marília Siqueira da Costa acentua[xi].
Falar em limites objetivos não envolve o desestímulo à celebração do negócio processual ou a promoção do seu desprestígio. Ao contrário, revela a preocupação em melhor utilizar o instituto, de acordo com o seu máximo alcance, com respeito ao autorregramento da vontade, à segurança jurídica e ao dever de fundamentação.
De modo geral, a construção jurisprudencial do STJ acerca do controle de validade dos negócios processuais ainda é incipiente. No processo executivo, o panorama parece se repetir, resultando em poucos casos. Entre eles, destaca-se a decisão proferida pela Ministra Maria Isabel Gallotti, integrante da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Agravo em Recurso Especial n. 1.545.153/São Paulo, com publicação no mês de outubro de 2019.
Em síntese, trata-se de execução de título executivo extrajudicial, ajuizada com base em confissão de dívida, no valor de R$ 72.482,26. O juízo de origem determinou a citação dos executados, fixando a verba honorária em 10% do débito. A exequente interpôs agravo de instrumento em relação a esse ponto, recurso que foi rejeitado pela Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo. Interposto recurso especial, houve a negativa de seguimento, circunstância que originou a utilização pela exequente de agravo dirigido ao STJ.
No caso, a agravante sustentou a violação ao art. 190 do CPC pela decisão agravada, uma vez que no instrumento de confissão de dívida havia pactuação expressa entre as partes de fixação de verba honorária de 20% sobre o valor do débito atualizado, patamar que não foi respeitado pelo magistrado de origem e pelo TJ/SP, os quais afastaram a convenção e se limitaram ao valor de 10% de honorários, por ser um comando numérico expresso do art. 827 do CPC.
No STJ, a Ministra Relatora negou provimento monocraticamente ao agravo, por considerar ser hipótese de aplicação da Súmula 283 do STF, em razão do agravante não ter atacado todos os fundamentos relevantes da decisão recorrida. Não obstante, a decisão disse mais, sinalizando que a posição adotada pelas instâncias ordinárias no caso está em harmonia com o que a Corte Superior pensa sobre a temática.
Ao se verificar o fundamento para negativa de aplicação do negócio processual em tela pelas instâncias ordinárias, teor que inclusive consta transcrito na decisão monocrática agravada, vê-se que houve a indicação de que não competiria às partes renunciar ao devido processo legal, alterando o patamar da verba honorária para 20% no processo de execução autônoma por quantia, já que o art. 827 estipula expressamente valor inferior. Por essa ótica, caberia apenas ao julgador, e não às partes e seus advogados, majorar a verba honorária, sempre excepcionalmente, conforme o § 2º do art. 827, ou reduzi-la pela metade, sendo o caso do § 1º do dispositivo. Logo, ocorrendo o aumento da verba por iniciativa dos acordantes, a justificativa teleológica de incentivo à satisfação da obrigação seria violada, impelindo o devedor a suportar o pagamento de demasiados honorários.
De início, formula-se uma primeira crítica e questionamento: a invocação do respeito ao devido processo legal, de maneira genérica, é critério adequado ou minimamente seguro para controlar o que pode ser negociado no processo? Não se duvida da relevância do mandamento constitucional expresso de obediência ao processo devido (art. 5º, LIV, CRFB). O que se mostra nebulosa é a sua utilização, nos termos narrados, para o fim de controlar a validade do objeto do negócio processual. O que é o devido processo legal, afinal de contas? Não há consenso sobre os elementos ou postulados que o integram, nem mesmo sobre sua definição[xii], o que traz imprecisões.
Além disso, a vedação absoluta e em abstrato de negociar sobre verbas honorárias é ilusória. Em tese, admite-se a realização de acordos processuais sobre qualquer verba que integre o custo do processo, ou seja, sobre as custas, despesas e honorários advocatícios[xiii]. Na linha do que propõe Antonio do Passo Cabral, os acordantes podem decidir que cada um arcará com os custos dos seus advogados no processo ou disciplinar o pagamento das verbas honorárias pelo adversário, mas de maneira diversa da que está estabelecida legalmente. Desse modo, pode existir negócio para estipular valor fixo de honorários, e não um percentual específico, assim como para alterar a base de cálculo ou modificar os patamares máximo e mínimo da verba honorária[xiv]. Esse raciocínio se aplica plenamente à execução.
Na situação examinada, celebrado o acordo para o aumento do patamar dos honorários a serem pagos pelos executados em favor do advogado da exequente, a norma convencional contida no instrumento de confissão de dívida derroga a norma legal do art. 827 do CPC, como de resto acontece com as demais espécies negociais.
É importante dizer que a leitura da decisão não permite concluir se o advogado da exequente participou da celebração do acordo processual. Por se tratar de negócio que beneficia o patrono, não lhe causando prejuízo, entende-se não haver pertinência em eventual pretensão de ineficácia por ausência de sua concordância naquele momento, até porque o instrumento está sendo agora executado, o que supriria a ausência primitiva de participação. Todavia, como regra, é necessária a anuência do advogado, já que o recebimento dos honorários é um direito autônomo e exclusivo do procurador, sendo vedada, a princípio, a disposição das partes sobre situação jurídica titularizada por terceiro, conforme também se extrai dos arts. 23 e 24, § 4º, do Estatuto da OAB.
Para encerrar, reitera-se a expectativa de que a negociação jurídica processual seja mais e melhor utilizada, com a realização adequada do seu controle de validade perante os órgãos judiciais brasileiros. Na dúvida, a liberdade negocial deve prevalecer, especialmente no processo executivo, em que impera a disponibilidade.
Notas e Referências
[i] A alegoria foi inspirada na obra “A hora da estrela”, último romance escrito por Clarice Lispector, publicado originalmente em 1977, mesmo ano do falecimento da autora. Em certo trecho, o narrador da história, Rodrigo S.M, descreve a protagonista Macabeá do seguinte modo: “[...] Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. E assim se passava o tempo para a moça esta. Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela [...]” (LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. São Paulo: Rocco digital, 2020, versão eletrônica).
[ii] PROTO PISANI, Andrea. Lezioni di diritto processuale civile. 6. ed. Napoli: Jovene, 2014, p. 692-693.
[iii] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 261.
[v] Sobre o tema, recomenda-se a leitura: GRECO, Leonardo. Execução civil – entraves e propostas. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, v. XII, 2013; SICA, Heitor Vitor Mendonça. Tendências evolutivas da execução civil brasileira. In: ZUFELATO, Camilo; et al (coord.). I Colóquio Brasil-Itália de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 2016.
[vi] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Efetividade do processo e técnica processual. Temas de direito processual. Sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 27.
[vii] DIDIER JR., Fredie; CABRAL, Antonio do Passo. Negócios jurídicos processuais atípicos e execução. Revista de Processo, São Paulo, v. 275, jan., 2018, p. 3-4, versão eletrônica.
[viii] TEMER, Sofia; ANDRADE, Juliana Melazzi. Convenções processuais na execução: modificação consensual das regras relativas à penhora, avaliação e expropriação de bens. In: MARCATO, Ana; et al (coord.). Negócios processuais, v. 1. Coletânea Mulheres no Processo Civil Brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 553.
[ix] Algumas hipóteses mencionadas constam nos Enunciados 19, 262 e 490 do FPPC.
[x] FARIA, Marcela Kohlbach de. Licitude do objeto das convenções processuais. In: MARCATO, Ana; et al (coord.). Negócios processuais, v. 1. Coletânea Mulheres no Processo Civil Brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 357.
[xi] COSTA, Marília Siqueira da. Convenções processuais sobre intervenção de terceiros. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 113.
[xii] YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova Era? In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Coleção Grandes Temas do novo CPC. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 82.
[xiii] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções sobre os custos da litigância (I): admissibilidade, objeto e limites. Revista de Processo, São Paulo, v. 276, fev., 2018, p. 76.
Com a proximidade das festas de final de ano, os conflitos relativos ao direito de família tendem a ficar mais tensos, ainda mais nesse ano de 2020, em que a pandemia mundial da COVID-19 trouxe novas complicações aos arranjos de visitação dos filhos.
Para a contextualização do tema, é importante que se esclareça que o direito de visita de que aqui se trata é aquele estipulado para o genitor não-guardião, diante da fixação de uma guarda unilateral.[i]
O direito de visita é previsto no Código Civil, no art. 1.589, que dispõe que “o pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia”. A fixação desse direito pode ocorrer por acordo mútuo ou por decisão judicial.
O presente artigo busca analisar as situações em que ainda não há acordo ou decisão anterior, ou há acordo e tem-se o descumprimento ou a intenção de modificação em razão de particularidades geradas pela pandemia.
É importante que se diga que o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é que deve nortear qualquer decisão judicial referente ao direito de visita dos filhos pelo genitor não-guardião, independente de estar-se ou não num período de pandemia.
A pandemia do coronavírus causou uma reviravolta nessa questão de visitas, gerando ações e decisões diversas nesse período. Umas das primeiras decisões noticiadas suspendia a visita do pai, que era piloto, até cumprir uma quarentena de 14 dias.[ii] Em outras decisões, fundamentou-se que a pandemia não pode ser utilizada como único motivo para descumprimento do acordo relativo à visitação ou modificação da visita.[iii] Mais recentemente, foi noticiado um caso de tutela antecipada concedida em favor do pai que ingressou com modificação de guarda em razão da mãe ser enfermeira.[iv]
Diante da proximidade das festas de final de ano, tais questões costumam ficar ainda mais conturbadas. Diante disso, quais seriam os instrumentos processuais à disposição das partes?
O Código de Processo Civil possui capítulo próprio para tratar do procedimento das ações de família, previsto nos artigos 693 a 699, o qual estabelece como obrigatória a audiência de mediação. No mais, o procedimento é muito similar ao comum. O Código também não prevê, especificamente, as possíveis ações de direito de família, trazendo apenas parâmetros gerais para o procedimento.
Sendo assim, para as questões relativas à guarda, a parte pode se valer, a princípio, de: i) ação de regulamentação de visitas, ii) ação de modificação de direito de visitas ou do regime de convivência, iii) ação de guarda cumulada com visitas, iv) ação de suspensão do direito de visitas. Pode-se, inclusive, cogitar a propositura de uma v) ação de modificação de guarda, em situações excepcionais. Passa-se a analisar cada uma das opções.
A ação de regulamentação de visitas poderá ser utilizada na hipótese de guarda unilateral previamente estipulada, mas sem previsão do direito de visitas. O genitor não-guardião poderá pedir medida de urgência para que as visitas já sejam implementadas de forma imediata, se possuir prova pré-constituída que demonstre a viabilidade do seu direito.
Pode ocorrer de já existir uma decisão anterior de guarda e visitas, mas diante de novos fatos em decorrência da pandemia e das particularidades das festas do final de ano, surgir conflito com relação ao exercício desse direito. Nesse caso, o melhor instrumento é a ação de modificação do direito de visitas ou do regime de convivência.
É importante destacar, que nessa hipótese, não pode o genitor guardião impedir as visitas sem prévio acordo ou prévia decisão judicial que modifique a decisão anterior. Sendo assim, diante da proximidade das festas natalinas, é possível requerer antecipação de tutela, se comprovada a probabilidade do direito alegado.
Em razão das recomendações dos órgãos sanitários com cuidados com a saúde, tem-se visto com bastante frequência, ação de suspensão do direito de visitas desde o início da pandemia. Entende-se que tal suspensão deve ser temporária e apenas para hipóteses em que a saúde do menor esteja em risco.
É possível também, diante de situações mais graves, em que efetivamente há um prejuízo do contato do menor com o genitor não-guardião, ingressar-se com ação de modificação de guarda, podendo ser requerida a conversão de guarda unilateral em guarda compartilhada ou para que se inverta a guarda unilateral. Lembrando que em tal hipótese radical, recomenda-se o acompanhamento por equipe multidisciplinar, pautando a atuação do Poder Judiciário sempre pelo melhor interesse da criança ou do adolescente.
Situação diversa ocorre quando já há decisão estipulando o direito de visitas ou direito de convivência e, ainda assim, o genitor guardião a descumpre. Nesse caso é cabível cumprimento de sentença, inclusive com a possibilidade de estipulação de multa diária (astreintes) para incentivar a parte devedora ao cumprimento. Tal possibilidade já foi inclusive reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça.[v]
Agora e se, com a justificativa da pandemia e dos cuidados com a saúde, o genitor que teria direito a visitas (ou seja, o não-guardião) recusa-se a exercer esse direito? Seria possível também exigir cumprimento de sentença e fazer com que esse progenitor visite seu filho? Entende-se que, não havendo risco à saúde da criança ou adolescente, as astreintes seriam cabíveis inclusive para sujeitar o genitor não-guardião às visitas.[vi]
Maria Berenice Dias afirma que o direito de convivência (visita) não é apenas um direito dos genitores, seria um direito de personalidade do próprio filho de conviver com seus pais e de fortalecer vínculos paterno e materno-filial.[vii]
Nessa mão dupla, porém, não se pode negar que o direito de visita representa uma regalia principalmente para o progenitor que não coabita com o filho e isso decorre do poder familiar. Direito posto, temos por outro lado o direito do filho à saúde, à segurança, à dignidade humana e à qualidade de vida.
A pandemia do COVID-19 trouxe uma realidade inédita que pôs em xeque vários direitos e a própria segurança jurídica nos moldes em que a sociedade sempre esteve acostumada.
Em momentos críticos como esse, é necessário recorrer aos alicerces do sistema jurídico e ir buscar nas estruturas basilares a solução para vexata quaestio.
É assim que Ronald Dworkin[viii] esclarece que quando há um confronto entre regras, deve-se dirimi-lo aplicando um princípio e se o confronto é entre princípios, deve-se usar o juízo de ponderação e discernir qual deles deve ser privilegiado no caso para que a decisão seja íntegra.
Diante do direito dos progenitores de convívio com seus filhos e o direito de seus filhos à saúde e a própria vida digna, dentro do sistema jurídico brasileiro, verifica-se na Constituição Federal um brinde ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (arts. 226 e ss), que deve ser claramente o protocolo a ser seguido! Ponderados os princípios, devem prevalecer na decisão judicial os preceitos que ponham os filhos em segurança durante essa fase atípica de isolamento social forçado. Mas, como nas lições de Dworkin, tem-se, diferentemente de um conflito de normas, onde uma anula a outra no caso concreto, no confronto de princípios a ponderação faz com que um prevaleça sobre o outro, sem tampouco anulá-lo. Portanto, há de se decidir com base no melhor interesse da criança e adolescente, mas, aplicando-se, na medida do possível, a garantia do direito de convívio dos pais. Uma solução encontrada criativamente pelos tribunais nacionais foi a adaptação da visita física em on-line.
Assim, os laços relacionais entre pais e filhos continuam a ser desenvolvidos, ainda que improvisadamente, e a segurança da criança e adolescente é resguardada.
A adaptação da visita na forma remota não precisa seguir à risca os moldes da presencial, até porque logisticamente não seria confortável, por exemplo, um fim de semana inteiro transmitido por câmeras.
As horas podem ser divididas num intervalo 30 minutos a 1 hora de dias alternados, por exemplo. Vai variar pela idade do visitando e pelo contexto da relação filial, respeitando sempre o bem estar da criança ou adolescente.
Diante do aqui exposto e diante da inesperada crise mundial causada pela pandemia da COVID-19 há que se ponderar o direito dos pais à visita e o direito dos filhos à vida e à segurança. Diante disso, a decisão judicial deve se basear num juízo de ponderação, no qual predomina o princípio constitucional do melhor interesse da criança e adolescente, o que abre o potencial para ajustes temporários de visita presencial por visita remota na forma on-line, onde os vínculos familiares continuam evoluindo e a saúde do filho é resguardada pela exigência de isolamento social. Isso vale tanto para visitas semanais/quinzenais como para visitas natalinas e férias escolares.
O essencial é a cooperatividade dos envolvidos, a empatia para com o progenitor que não coabita com o filho e a boa fé na relação, seja extrajudicial, seja judicial, para que haja sustentabilidade da relação e dos vínculos, lembrando-se que é uma solução customizada para os tempos de pandemia, devendo ser retomados os modelos iniciais depois dessa crise, ou abrir-se margem para novas formas adequadas para cada família, no novo normal que haverá de se instaurar.
Notas e Referências
[i] Reconhece-se que o termo “convivência familiar” seria mais adequado para o direito do genitor não guardião de estar com seu filho ou filha, todavia, opta-se pela utilização do termo “visita” ou “visitação” diante da expressa previsão do Código Civil e do Código de Processo Civil.
Como é cediço, o art. 226, §6º da CF/88 estabelecia, em sua redação original, que o casamento civil poderia ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
Até a edição da Lei 11.441/2007, o procedimento para decretação do divórcio era exclusivamente judicial. Com a entrada em vigor da referida Lei, que inseriu no revogado CPC/73 o art. 1.124-A, passou a ser permitida a promoção extrajudicial da separação e do divórcio consensuais, por meio de escritura pública, desde que i) observados os requisitos legais quanto aos prazos; ii) não houvesse filhos menores ou incapazes do casal; iii) houvesse acordo quanto à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia; iv) as partes estivessem representadas por advogado ou defensor público.
A EC nº 66/2010 promoveu uma significativa alteração na CF/88, ao modificar a redação do §6º do seu art. 226, que passou a dispor que o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. Foram eliminados os requisitos temporais para a dissolução do vínculo conjugal, não havendo mais referência ao instituto da separação.
Com a referida Emenda, o divórcio passou a ter a natureza de direito potestativo[1], que se contrapõe a um estado de sujeição – o outro sujeito tem que se sujeitar à situação imposta por aquele que deseja o fim do casamento. Passaram a não ser mais exigidos os requisitos temporais, nem admitidas discussões sobre a culpa como fundamento da dissolução da união conjugal, tampouco sanções pelo descumprimento dos deveres do casamento[2]. Para Cristiano Chaves[3], o divórcio seria um direito potestativo extintivo, diante do poder de um dos cônjuges de buscar a extinção da sociedade conjugal, mediante sua exclusiva declaração de vontade.
Assim é que a Lei 11.441/2007 e, posteriormente, a EC nº 66/2010, deram uma nova formatação à dissolução da união conjugal no Brasil. Esta concepção do divórcio assegura a liberdade do casal para pôr fim à união matrimonial no momento que mais lhe convier, sem a necessidade de cumprir prazos, estando assegurados os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da mínima intervenção estatal[4].
Importante destacar que o CPC/2015, em seu art. 733, manteve a possibilidade da realização da separação e do divórcio consensuais por escritura pública, passando a permitir também a extinção consensual da união estável em cartório. Os requisitos são os mesmos, com exceção dos temporais para o divórcio, que foram eliminados pela EC nº 66/2010. Além disso, um novo pressuposto foi acrescido, qual seja, a inexistência de nascituro.
A via extrajudicial é facultativa, de modo que, ainda que preenchidos os pressupostos do art. 733 do CPC, as partes podem optar pela propositura da ação judicial de divórcio consensual. Havendo nascituro ou filhos incapazes, o divórcio é necessariamente judicial. Importante referir que as partes podem buscar a mediação nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e de Cidadania – CEJUSC’s e o acordo, se alcançado, será homologado judicialmente.
Quanto ao divórcio litigioso, o CPC/2015 estabeleceu um procedimento especial, que se aplica igualmente aos processos contenciosos de separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação. São as ações de família, cujo regramento consta dos arts. 693 a 699 do CPC, nas quais a audiência de tentativa de mediação e conciliação é obrigatória, dada a premissa de que todos os esforços devem ser empreendidos para a solução consensual da controvérsia.
No tocante à separação judicial, grande parcela da doutrina entende que o instituto deixou de existir no ordenamento jurídico brasileiro após a EC nº 66/2010[5], havendo também posicionamentos em sentido contrário[6], corrente doutrinária que se segue, pelas seguintes razões: a) os institutos da separação e do divórcio são distintos, especialmente no que se refere à possibilidade de restabelecimento da sociedade conjugal após a separação; b) a não revogação das disposições legais pertinentes à separação e a previsão legal de novas regras que reforçam a sua subsistência, como as do CPC/2015[7]); c) o STJ, no julgamento do REsp nº 1247098[8], de relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti, decidiu, por maioria, que subsiste a separação no direito brasileiro; d) o CNJ, no Pedido de Providências 00005060-32.2010.2.00.0000[9], decidiu pela manutenção das disposições referentes à separação na Resolução nº 35/2007; e) a aprovação de enunciados nas Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal após a EC 66/2010 relativos à separação, inclusive o de nº 514 que consagra o entendimento de que “A Emenda Constitucional n° 66/2010 não extinguiu o instituto da separação judicial e extrajudicial”.
Pode-se dizer, então, que há no direito brasileiro três procedimentos através dos quais o a separação e o divórcio podem ser requeridos: a) extrajudicial consensual por escritura pública; b) judicial consensual; c) e judicial litigioso.
Inobstante, com fundamento na doutrina do divórcio unilateral ou impositivo e considerando o disposto no art. 1.581 do Código Civil, que permite o divórcio sem prévia partilha de bens, juízes de tribunais diversos do país passaram a decretar o divórcio por meio de decisão liminar. A primeira notícia a esse respeito foi veiculada no ano de 2014, segundo a qual juiz da 6ª Vara de Família de Salvador/BA teria concedido a tutela antecipada requerida pela parte para fins de decretar liminarmente o divórcio. Na ocasião, determinou-se o prazo de 15 dias para que a outra parte contestasse a medida, findo o qual deveria ser expedido mandado ao cartório de registro civil para averbação do divórcio[10].
Na vigência do CPC/2015, o principal fundamento para o decreto liminar do divórcio tem sido ou art. 311, inciso IV do CPC, ou seja, a tutela provisória da evidência. Em decisão proferida pelo juiz substituto da 1ª Vara de Família e de Órfãos e Sucessões de Águas Claras-DF em maio de 2019, por exemplo, o magistrado, além de decretar o divórcio sem a oitiva da parte contrária, determinou a expedição de mandado para a averbação em cartório, bem como a citação do réu, para oferecer resposta no prazo legal[11].
Paralelamente à atuação judicial acima relatada, tentou-se promover a desjudicialização do divórcio impositivo através de instrumento normativo de natureza administrativa. De forma pioneira, a Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Pernambuco regulamentou o instituto através do Provimento nº 06, de 14 de maio de 2019, ato assinado pelo então Corregedor-Geral em exercício, Des. Jones Figueirêdo Alves. Segundo o Provimento, qualquer dos cônjuges poderia requerer perante o registrador do cartório de registro civil em que foi processado o casamento a averbação do divórcio à margem do termo do respectivo assento, sem intervenção judicial. O outro cônjuge seria apenas notificado acerca do pedido e, uma vez recebido o comprovante de notificação pelo cartório, deveria ser realizada a averbação respectiva. O pedido só poderia ser formulado se o casal não tivesse filhos menores ou incapazes e se não houvesse nascituro. Com a opção por esse procedimento, a eventual partilha de bens ficaria postergada. Em 20 de maio de 2019, a Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Maranhão também regulamentou a matéria de forma semelhante através da publicação do Provimento nº 25/2019.
Tais Provimentos suscitaram tantas polêmicas quanto dúvidas a respeito de sua validade e de sua aplicação, especialmente questionamentos relativos à sua constitucionalidade[12]. Diante disso, foi instaurado, ex officio, o Pedido de Providências n. 0003491-78.2019.2.00.0000[13] pelo então Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Humberto Martins, que resultou na edição da Recomendação de nº 36 de 30.05.2019, a qual determinou a suspensão das medidas administrativas que regulamentaram o divórcio impositivo e recomendou a todos os Tribunais Estaduais que não editassem normas no mesmo sentido.
Logo em seguida, foi apresentado o Projeto de Lei nº 3.457/2019 no Senado Federal, pelo Senador Rodrigo Pacheco, que tem por finalidade regulamentar o divórcio impositivo nos mesmos moldes do Provimento pernambucano, através da inserção de um art. 733-A no CPC/2015. O PL está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania desde junho de 2019.
O divórcio unilateral ou impositivo continua, portanto, sem previsão legal. Inobstante, vez por outra, são noticiadas novas decisões judiciais decretando-o liminarmente, sem a oitiva da parte contrária[14]. E a doutrina, de modo geral, tem se posicionado favoravelmente à concessão liminar do divórcio unilateral.
Para Henrique Batista, apesar de não haver expressa previsão legal da possibilidade de concessão da tutela da evidência com base no art. 311, inciso IV de forma liminar, “não há razão lógica razoável para obrigar a parte autora, que pediu a decretação liminar do divórcio litigioso, esperar o término das sessões de mediação e conciliação, bem como a irrelevante manifestação do réu no tocante ao pleito liminar, muito menos eventual defesa insubsistente dele quanto a essa matéria, já sabidamente incontroversa e irresistível, para só depois se chegar ao julgamento parcial do mérito com a concessão de tal tutela”[15].
Dierle Nunes e Ana Luiza Marques consideram que o fundamento da tutela da evidência, no caso, pode ser extraído dos incisos II e IV do art. 311 do CPC, “tendo em vista a inconteste evidência do direito material do demandante, por se tratar de alegação comprovada apenas documentalmente (para tanto, basta a juntada da certidão de casamento e a manifestação de vontade da parte autora), com respaldo em norma de índole constitucional”[16]. Para os autores, o indeferimento do pedido liminar e a postergação da análise do pedido incontroverso para depois da formação do contraditório, contraria o princípio da celeridade processual (artigo 4º, CPC) e os interesses de gestão do passivo processual do Poder Judiciário.
Não se pretende negar, no presente texto, a natureza potestativa do direito ao divórcio desde a EC nº 66/2010. Assim, entende-se que o divórcio pode ser requerido a qualquer momento, por qualquer das partes, mesmo contra a vontade e o interesse da outra, não estando a sua decretação subordinada a nenhuma condição ou imposição de qualquer natureza[17].
Entretanto, não há previsão legal para a decretação do divórcio unilateral sem a oitiva da parte contrária e, segundo se pensa, tampouco há como enquadrá-lo nas hipóteses de tutela da evidência contidas no art. 311, incisos II e IV do CPC/2015.
No que concerne ao inciso IV (petição inicial instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não opõe prova capaz de gerar dúvida razoável), o parágrafo único do art. 311 exige o contraditório, restando expressamente vedada a decisão liminar. A decretação do divórcio liminar com esse fundamento revela-se contra legem, portanto.
Quanto ao inciso II (alegações de fato comprovadas apenas documentalmente e tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante) também não se aplica ao caso. A interpretação extensiva do dispositivo para abranger hipótese em que haveria “respaldo em norma de índole constitucional” não parece adequada. Primeiro porque o inciso admite a tutela da evidência na hipótese de haver padrão decisório vinculante sobre determinado tema e não há qualquer tese vinculante acerca do divórcio unilateral. Em segundo lugar, porque o fundamento “prova documental dos fatos + norma constitucional” não está contido em nenhum dos incisos do art. 311 do CPC. Além disso, a interpretação doutrinária e jurisprudencial do art. 226, §6º da CF/88 no sentido de que o divórcio é um direito potestativo não leva à conclusão de que o ordenamento jurídico admite a decretação do divórcio unilateral através de uma tutela provisória, notadamente sem a oitiva da parte contrária.
Na realidade, a natureza definitiva do divórcio é incompatível com a sua concessão por meio de uma tutela provisória, que, segundo art. 296 do CPC, conserva sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada.
Sob o prisma registral, é importante consignar que, nos termos do art. 100 da Lei de Registro Públicos, a averbação da decisão que decreta o divórcio depende da prova do trânsito em julgado respectivo. Em sendo assim, o divórcio, uma vez averbado à margem do assento de casamento no registro civil das pessoas naturais, não admite retorno ao status quo ante[18]. Não há, pois, como restabelecer o vínculo conjugal, de modo que se o casal pretender formalizar a união, precisará dar início a um novo processo de habilitação para o casamento[19].
Por isso é que, a rigor, a determinação da averbação do divórcio através de decisão concessiva de uma tutela provisória estaria sujeita à qualificação negativa pelo registrador[20], por não observar os requisitos estabelecidos pelo art. 100 da LRP.
Ademais, essa averbação, caso efetivada, não admite cancelamento nem anulação por desistência dos interessados. Desse modo, se, durante a tramitação de um determinado processo, após a decretação liminar do divórcio e averbação respectiva no assento respectivo do registro civil das pessoas naturais, o casal pretendesse retomar o casamento, não poderia o magistrado determinar o cancelamento da averbação do divórcio e decisão nesse sentido também poderia ensejar a qualificação negativa do título por parte do registrador.
Como dito, somente restaria ao casal arrependido a via de um novo processo de habilitação, com as consequências legais correspondentes, inclusive. Uma delas pode ser aqui referida, suscintamente. O divórcio assim decretado (unilateral e liminarmente) posterga a partilha de bens e, quando não há partilha, há uma causa suspensiva para o casamento, prevista no art. 1.523, inciso III do CC. Nesse caso, pretendendo casar novamente, os cônjuges divorciados não poderão escolher livremente o regime de bens, estando submetidos ao regime da separação obrigatória (art. 1.641, I do CC), a não ser que façam previamente a partilha do patrimônio comum.
Por isso, considera-se possível a decretação do divórcio em momento anterior à sentença, mas o instrumento processual adequado para tanto é o julgamento antecipado parcial do mérito, previsto no art. 356, inciso I do CPC, porquanto haverá, na hipótese, um pedido incontroverso. Ainda que a parte demandada conteste, se a parte autora não voltar atrás em sua decisão quanto à dissolução do casamento após as considerações contidas na defesa ou manifestadas em audiência de tentativa de mediação, tratando-se de direito potestativo, persiste o cabimento da medida. A decisão parcial de mérito é a medida adequada porque i) pressupõe o exercício do contraditório, uma vez que a sua prolação é posterior à citação e à oportunidade de apresentação de defesa pelo réu; e ii) terá caráter definitivo após o trânsito em julgado, definitividade essa compatível com a natureza também permanente do divórcio, inclusive no âmbito registral, como assinalado anteriormente.
Diversos juízes e tribunais têm decretado o divórcio através de decisão parcial de mérito[21], que pode ser proferida no início da demanda, após a citação e regular exercício do contraditório, continuando o processo em relação aos demais pedidos, como a partilha, os alimentos e a guarda dos filhos, conforme pontua Regina Beatriz Tavares da Silva[22]. A autora, aliás, demonstra que o próprio TJSP, apontado como um dos tribunais que admite o divórcio unilateral liminar, rechaça tal medida em diversos julgados, considerando que a decretação do divórcio deve ser levada a efeito por meio de decisão parcial de mérito, após a oportunidade do contraditório ao réu[23].
Do exposto, até que haja a regulamentação do divórcio unilateral ou impositivo por meio de lei, reputa-se inadequada e sem respaldo normativo sua decretação através de decisão liminar, inaudita altera pars, baseada na tutela provisória da evidência. Caso seja interesse de um dos cônjuges pôr fim ao vínculo conjugal antes da resolução das demais questões atinentes ao matrimônio e aos filhos, o divórcio pode ser determinado antes da sentença e até mesmo no início do processo, mas por meio do julgamento antecipado parcial do mérito previsto no art. 356 do CPC, após a citação e oportunidade de manifestação do outro consorte, garantindo-se o respeito ao contraditório e, em consequência, ao devido processo legal. Transitada em julgado a decisão correspondente, pode ser promovida a averbação no assento de casamento, em obediência ao art. 100 da LRP.
Notas e Referências
[1] Nesse sentido: DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 146.
[2] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, p. 340.
[3] FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento (casar e permanecer casado: eis a questão). In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Afeto, ética, família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 105-126, p. 115.
[4] SANTOS, Luiz Cesar Rocha. A Emenda Constitucional nº 66/2010 o novo divórcio e o fim da separação. Conteudo Juridico, Belo Horizonte-MG: 01.04.2017. Acesso:08 jun 2020.
[5] Nesse sentido: TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, p. 1241.
[6] Por todos, DELGADO, Mário Luiz. A nova redação do § 6.º do art. 226 da CF/1988: por que a separação de direito continua a vigorar no ordenamento jurídico brasileiro. Separação, divórcio, partilha e inventários extrajudiciais. Questionamentos sobre a Lei 11.441/2007. 2. ed. Coord. Antonio Carlos Mathias Coltor e Mário Luiz Delgado. São Paulo: Método, 2011. p. 25-48.
[7] Art. 23, III; art. 53, I; art. 189, II; art. 693 e o art. 733, que expressamente faz referência à separação consensual como modalidade de dissolução da união conjugal passível de ser realizada por escritura pública.
[8] REsp 1.247.098-MS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, por maioria, julgado em 14/3/2017, DJe 16/5/2017.
[9] CNJ - PP: 00050603220102000000, Relator: JEFFERSON LUIS KRAVCHYCHYN, Data de Julgamento: 14/09/2010.
[17] LINS, Lorena Freitas Barreto e PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. O divórcio unilateral ou impositivo e a admissibilidade de sua averbação direta nas Serventias do Registro Civil das Pessoas Naturais. Projeto de Responsabilidade Institucional – Livros Arpen Brasil (no prelo).
[18] A averbação do divórcio no assento de casamento tem por objetivo conferir publicidade ao ato e ensejar a produção dos efeitos atinentes ao término do vínculo conjugal em relação a terceiros, nos termos do art. 100, §1º, da Lei de Registros Públicos. Os efeitos entre as partes decorrem do trânsito em julgado da decisão.
[19] Art. 33 da Lei 6.515/77: Se os cônjuges divorciados quiserem restabelecer a união conjugal só poderão fazê-lo mediante novo casamento.
[20] Ressalte-se que os títulos judiciais também estão sujeitos à qualificação registral.
[21] Nesse sentido, TJSP; Agravo de Instrumento 2190994-53.2020.8.26.0000; Relator (a): Alvaro Passos; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Araçatuba - 1ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 23/09/2020; Data de Registro: 23/09/2020.
[23] Divórcio. Tutela de urgência (visando a decretação do divórcio ‘inaudita altera pars’). Indeferimento. Ausência dos requisitos do art. 300 do CPC. Inexistência de situação de urgência a justificar a concessão da medida sem a citação da parte contrária. Alegação de ser desconhecido o paradeiro do agravado que, se o caso, levará à citação editalícia (após o esgotamento das tentativas de localização do demandado). Risco, ainda, de irreversibilidade do provimento (art. 300, par. 3º do CPC). Precedentes. Decisão mantida. Recurso improvido (TJSP. Agravo de Instrumento n. 2051508-53.2020.8.26.0000. Relator Salles Rossi. 8ª Câmara de Direito Privado. Julgamento em 19/06/2020).
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