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Utopia E Realidade: O Cpc/2015 E O Novo Perfil De Atuação Dos Operadores Do Direito[1]

1. Introdução: para uma nova sociedade, um novo código. Mas manejado por antigos ou novos operadores do Direito?

A minha reflexão propõe, em síntese, um recomeço, uma volta às origens, com vistas a, quiçá, no seu final, permitir que apliquemos mais e melhor o “estado da arte” de todos os institutos previstos no CPC/2015.

Pretende ser uma abordagem propositiva, mas que traz em seu bojo um inevitável quê de denúncia ou talvez de exortação, que nos tira de nossa zona de conforto.

O Direito Processual, tanto ou mais do que os demais ramos do Direito, precisa manter e nutrir uma conexão indelével com a sociedade a que se volta, que é o destinatário dos préstimos de nosso sistema de justiça. E as expectativas e os anseios da sociedade, do jurisdicionado - como costumamos técnica e carinhosamente chamá-lo na ciência processual - mudam ao longo do tempo e do momento histórico.

Por isso, essa conexão, embora indelével, não é imutável. Ao contrário, ela é essencialmente mutável e cambiante, justamente porque a sociedade é mutável e cambiante.

Havendo mudanças profundas na sociedade, que impactem nas expectativas do jurisdicionado em relação ao sistema de justiça, o processualista precisa estar alerta para, em um primeiro momento, detectar tais mudanças significativas e, a seguir, deflagrar um movimento voltado a envidar esforços para interpretar e aplicar institutos existentes de modo a deles extrair todo o seu potencial para atender a tais expectativas (movimento de lege lata) ou, não sendo suficiente, criar novos instrumentos e institutos para tanto (movimento de lege ferenda).

Portanto, o trabalho do processualista não está nunca acabado. Estamos sempre in itinere, a caminho, em busca de um sistema de justiça que esteja apto a alcançar resultados mais adequados, justos, efetivos e consentâneos com as expectativas de seus destinatários em cada momento histórico.

E aqui está o mérito do legislador na edição do CPC/2015.

Vivenciamos todos nós uma série de mudanças pontuais no CPC/1973 ao longo das mais de quatro décadas de sua vigência, a ponto de torná-lo quase que uma colcha de retalhos. Mudou-se no pouco e no muito; e destaco, a título ilustrativo, duas alterações significativas, tais como a previsão da tutela antecipada nas Disposições Gerais Do Processo e do Procedimento (art. 273, CPC/1973, com a redação trazida pela Lei nº 8.952/1994), pondo fim à insegurança jurídica decorrente do cabimento ou não e em que medida das então chamadas “cautelares satisfativas”, e da previsão do processo sincrético (art. 475-I, CPC/1973, trazido pela Lei nº 11.232/2005), suplantando a nossa tradição de fragmentar cognição, execução e cautela em processos autônomos e diversos.

No entanto, o ponto de virada está quando alterações legislativas pontuais, seja no pouco ou no muito, não se mostram mais suficientes. A detecção desse momento, que é uma virada histórica, não é singelo.

Mas o legislador, com acuidade, entendeu que esse momento haveria chegado e se justificava a edição não mais de leis esparsas modificadoras do CPC/1973, mas a edição de um novo Código de Processo Civil.

E, penso eu que, num balanço, precisamos perguntar: por que será que o legislador optou, neste momento, por esse movimento mais drástico e complexo?

Não vou aqui entrar nas origens e nas idas e vindas do movimento de codificação do Direito.

José de Oliveira Ascensão pontua que um código, para ser assim intitulado, se reveste de unitariedade e sistematicidade, não sendo apenas uma mera compilação de regras pontuais. Uma das “vantagens” apontadas por Ascensão para justificar a edição, em dado momento histórico, de um novo código é fazer “avultar os grandes princípios que disciplinam aquele sector da vida social” e dar “ao intérprete um mapa onde situar” cada novo caso. A edição de um código, para o referido autor, pressupõe a “construção científica do Direito”, segundo os “princípios comuns que vivificam as diversas partes”[2].

Ou seja, trazendo para o Direito Processual, a edição de um novo código ocorre quando são necessárias mudanças paradigmáticasna estrutura do Direito Processual, que mudanças legislativas pontuais não logram alcançar e espelhar.

Precisamos estar cientes e atentos a isso, porque, em última análise, se não nos apropriarmos dessa ideia e deixarmos de ler, interpretar e aplicar todo o CPC/2015 sob essa perspectiva, de forma sistemática, a mudança de paradigma que justifica um movimento tão drástico se esvai e voltamos a ter “mais do mesmo” para uma sociedade profundamente modificada.

Resumidamente, vou pinçar quatro grandes paradigmas trazidos pelo CPC/2015 que, a meu ver, são marcas distintivas dele e que, por isso, ilustram a justificativa da edição de uma nova codificação, a saber: autocomposição, cláusula geral de negociação, precedentes e medidas executivas atípicas.

O que a minha abordagem busca chamar a atenção é que, em síntese, a grande marca do CPC/2015 e o que o justifica enquanto codificação e não mera lei esparsa não é, a meu ver, pontualmente a criação de IAC ou de IRDR, ou mais uma mudança - em parte frustrada pela jurisprudência - de modificação no agravo (que é a, na minha opinião, a “Geni” do sistema recursal brasileiro), mas é, acima de tudo e mais drasticamente, exigir um novo perfil de atuação dos operadores do Direito e reorganizar profundamente os papeis dos atores do sistema de justiça civil brasileiro. E por isso nenhum de nós consegue passar ileso.

Quando testemunhamos a edição de um novo código, experienciamos a passagem do bonde da História em nossa frente. Mas podemos nele subir ou ficarmos parados na estação, assistindo ele prosseguir o seu trajeto, de forma passiva, mas nem por isso isenta.

Os colegas processualistas penais da minha geração (e de outras anteriores), por exemplo, ainda não vivenciaram algo semelhante em sua área de pesquisa e atuação e manejam, até os dias atuais, o Código de Processo Penal (Decreto Lei nº 3689) editado por Getúlio Vargas em 03/10/1941 (quase trinta anos antes do nosso já revogado CPC/1973, portanto).

Feita a devida contextualização, passo, a seguir, a brevemente abordar cada qual dos quatro novos paradigmas traçados pelo CPC/2015, que impactam substancialmente no perfil de atuação dos operadores do Direito.

2. Autocomposição: artigo 3º, §§2º e 3º, CPC/15.

O artigo 3º, para ficarmos em apenas um artigo sobre o tema, dados os limites da presente reflexão, é cristalino ao apontar para nós um novo grande paradigma: o paradigma do diálogo, do consenso na solução dos conflitos. O seu §2º prevê que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos” e o seu §3º dispõe que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do MP, inclusive no curso do processo judicial”.

Isso subverte completamente a lógica tradicional de nosso sistema jurídico-processual, que sempre privilegiou a solução heterocompositiva, a adjudicação estatal. Agora, o legislador nos endereça uma mensagem inequívoca: devemos todos privilegiar a autocomposição em detrimento da heterocomposição.

Veja-se: não se trata de apenas nos instar a passar a manejar determinado recurso no lugar de outro, ou privilegiar o modo retido, diferido ou imediato de seu julgamento, ou a praticar tal ou qual ato processual de um novo modo ou prazo. É substancialmente muito mais do que isso.

E esse novo grande paradigma, não por acaso, está elencado como uma das normas fundamentais do Processo Civil Brasileiro e está topologicamente alocado em um dos primeiros artigos do CPC/2015. Isso se dá porque esse novo paradigma se espraia por todo o código. Todos os dispositivos do CPC/2015 precisam, por coerência interna, organicidade e sistematicidade ser lidos, interpretados e aplicados sob o pálio desse novo paradigma.

Outros dispositivos legais, como corolário do artigo 3º, buscam concretamente viabilizá-lo, como é o caso, claramente, do artigo 334, do CPC/2015, que - não entrando no mérito de seus acertos ou erros pontuais - define, coerentemente, que, nos litígios que admitam autocomposição, a designação de sessão de conciliação ou mediação passa a ser a regra (in dubio pro consensu), logo ao início do procedimento comum, salvo se todas as partes manifestarem desinteresse. Nas ações de família, o legislador vai ainda mais longe e designa um procedimento especial cujo coração, culminância e razão de ser é precisamente a realização da sessão de mediação (artigos 694 e 695, CPC/2015).

Mas a pergunta é: esse paradigma é “autoexecutável” na prática, ou seja, as leis processuais tomam as ruas, os corredores do fórum sponte propria, com uma força propulsora interna? Uso o termo “autoexecutável” aqui não no sentido jurídico que lhe atribuímos, mas no sentido mais comezinho e pragmático, em seu sentido empírico. E a resposta é, a meu sentir, “não”.

Depende da vontade e do labor dos operadores do Direito. O ponto de virada é, pois, precisamente a saída dos operadores do direito da sua zona de conforto do tradicional (e suplantado) paradigma do CPC/1973 e a sua reação interna, que se projeta na sua prática profissional, direcionada a efetivamente concretizar esse novo paradigma diuturnamente. E isso se dá laboriosamente, sem passe de mágica, na lida diária.

Paulo Eduardo Alves da Silva e Tatyana Paravela, após estudo de casos no estado de São Paulo, concluem que “em apenas 16% dos processos que compuseram a amostra analisada foi designada audiência de conciliação” (artigo 334, CPC/2015). Destacam os autores ainda que, dentre os motivos para o magistrado deixar de designar a sessão de mediação e conciliação, sobressai a inviabilidade material, diante do déficit de mediadores, como se extrai claramente da seguinte decisão, reproduzida no aludido trabalho: “Anoto que não será feita a audiência de conciliação de que fala o artigo 334 do CPC. Isto porque não há viabilidade material de realização desta audiência por ausência de estrutura”[3].

De acordo com o Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça publicado em 2020[4], no ano de 2019, apenas 12,5% de processos foram solucionados via conciliação, sendo que, em relação a 2018, houve aumento de apenas 6,3% no número de sentenças homologatórias de acordos. De acordo com o mesmo Relatório, no fim de 2019, havia na Justiça Estadual 1.284 CEJUSCs instalados, o que representa quase o triplo do número de Centros existentes em 2014. Não obstante, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 5.570 municípios atualmente em nosso país, a demonstrar que ainda temos muito a avançar no que tange à interiorização e à capilaridade da oferta concreta de mediação e conciliação em nosso país, de modo a genuinamente atender ao paradigma da autocomposição.

Os números são, de fato, desoladores.

Podemos ficar nos lamuriando, mas não creio que seja esse o mote da confecção desse belíssimo Congresso.

As possíveis soluções são várias, embora todas laboriosas, sem luxo, sem mágica, mas factíveis e consentâneas com o CPC/2015 e com a CRFB/1988, tais como convênio entre o Poder Judiciário e o segmento extrajudicial, conforme Recomendação 28/2018 e Resolução 350, ambas do Conselho Nacional de Justiça, sendo que a última prevê a cooperação interinstitucional como integrante do conceito de cooperação judiciária nacional  - afinal, autocomposição, Justiça Multiportas e desjudicialização andam de mãos dadas , e tantas outras.

Ou seja, é possível, mas é preciso um artífice, um agente catalisador dessa mudança paradigmática, de forma proativa e criativa, que são o juiz, o promotor, o advogado público e privado, o delegatário de serventia extrajudicial, enfim, todos os operadores do Direito, seja criando meios de viabilizar o artigo 334, do CPC/2015, fomentando a mediação extrajudicial com a criação de câmaras sérias e respeitadas, seja todos adquirindo as habilidades do diálogo que não são características dos operadores do Direito até a minha geração, mas que hoje se mostram indispensáveis para se adotar todo um novo modus operandi consentâneo com as linhas mestras do CPC/2015.

3. Cláusula geral de negociação processual: artigo 190, CPC/15.

O Direito Processual é ramo do Direito Público e o processo judicial é dirigido por um Poder do Estado, pelo Estado-juiz, conforme resta inequívoco no caput do artigo 139, CPC/2015.

Por isso, trazendo uma colocação objetiva e até simplista, por conta da restrição de tempo, o Direito Processual é um “campo minado”, permeado por normas cogentes, pela delicada e desafiadora Ordem Pública Processual, que Ricardo Aprigliano[5], Trícia Navarro[6], Igor Raatz[7] se debruçaram com coragem e vigor.

Mas, mesmo nesse “campo minado”, o legislador, no CPC/2015, nos trouxe um mapa que sinaliza um novo caminho asfaltado, que, até então, se mostrava acidentado e sinuoso, por conta de oscilações principalmente em sede doutrinária sobre o seu cabimento: a possibilidade de as partes celebrarem negócios jurídicos processuais atípicos (artigo 190).

Deixando à parte os limites dos negócios jurídicos processuais atípicos, que transborda, e muito, a temática da presente reflexão, o fato é que a cláusula geral de negociação processual do artigo 190 do CPC/2015 corrobora a primeira grande premissa antes traçada. Sim, corrobora. E não há razão para estranheza.  Trata-se de subscrever o paradigma do diálogo e chancelar a autonomia da vontade das partes, tanto quanto possível. Sendo assim, se as partes não lograram solucionar o objeto litigioso através de acordo, que seria a preferência clara do CPC/15, em seu artigo 3º, como examinado no item precedente, de modo que a instauração e/ou o prosseguimento do processo judicial se faz necessário, o diploma processual coerentemente aquiesce com que as partes possam, quando menos, como consectário do diálogo sadio e benfazejo, pactuar sobre aspectos processuais que tenham o potencial de tornar o procedimento mais adequado às especificidades da causa.

Trata-se, a bem dizer, de uma nova fronteira da tutela diferenciada, cunhada por Andrea Proto Pisani[8]. Se até então falávamos em tutela diferenciada preponderantemente nos formatos pré-estabelecidos pelo legislador nos procedimentos especiais codificados, nas leis esparsas e nos microssistemas, agora fica claro que as próprias partes e os operadores do Direito são colocados no centro da cena, como coprotagonistas. Isso é prova cabal do profundo rearranjo do papel dos operadores do direito nesse novo desenho do sistema de justiça.

Cabe consignar que, mais uma vez, como artífices e agentes catalisadores desses novos paradigmas, nos cabe o relevante e delicado papel de definir como e para quais finalidades os negócios jurídicos processuais  atípicos serão utilizados.

Um importante e nobilíssimo segmento e propósito de emprego dos negócios jurídicos processuais atípicos, em consonância com o artigo 1º do CPC/15, que nos impele a interpretar e aplicar todos os instrumentos processuais à luz e em prol das garantias fundamentais do processo, é o seu manejo com vistas a transpor óbices à paridade de armas e à promoção da equidade endoprocessual, reduzindo as “vulnerabilidades processuais”[9], inclusive e especialmente das mulheres, como estamos estudando neste ano de 2021 no Grupo de Pesquisa Democracia e Processo da UERJ e, muito em breve, daremos a conhecer a toda a comunidade o produto dessas reflexões.

Concordamos integralmente com Júlio Camargo de Azevedo quando afirma que o artigo 190 do CPC/2015 tem uma vocação inata para a igualdade material, para a acessibilidade, para a redução de disparidades, ou seja, uma vocação democrática, democratizante e humana do processo. O autor atribui, a meu ver, com razão, ao artigo 190 a função de “cláusula-geral de vulnerabilidade no Direito Processual Civil brasileiro”, sendo a consideração concreta de vulnerabilidade um fator de discrímen que justifica a adequação da técnica processual e do procedimento[10].

Mas isso depende, mais uma vez, da nossa iniciativa, corroborando a premissa inicial desta exposição.

4. Precedentes: artigo 926, CPC/15.

Dados os limites do presente trabalho, mantenho o compromisso de pinçar apenas um dispositivo legal do CPC/2015 para ilustrar cada paradigma. E, para o terceiro grande novo paradigma do CPC/2015, que é o dos precedentes, não tenho como escapar de pinçar o artigo 926, que erige como dever dos tribunais – veja-se: sem adjetivações que porventura restrinjam a quais cortes se dirige a norma - “uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

Entendo que, a partir dessa norma, descortina-se o terceiro grande paradigma de nossa fala de hoje, que é a opção legislativa de romper com a nossa tradição jurídica secular de manejo errático e desestruturado da jurisprudência para ratificar que insta os operadores do Direito a adotar uma nova postura a partir de agora, nesse novo momento histórico. Almeja-se trazer um mínimo de organicidade, comprometimento e responsabilidade na elaboração, invocação, aplicação e revisão dos julgados a serem adotados como paradigma para decisões futuras.

E eu poderia trazer dezenas de dispositivos do CPC/2015 que revelam um esforço genuíno do legislador, ao longo da referida codificação, para demonstrar para nós, operadores do Direito, das mais diversas formas, que esse paradigma é sério e é para ser levado a sério. Ele impacta na autorização legal para que o juízo de 1º grau possa julgar liminarmente improcedente o pedido (art. 332, CPC/15), conceder tutela provisória da evidência (art. 311, II, CPC/15), para reputar não fundamentada e, por isso, nula, a sentença que não leve esse paradigma a sério (art. 489, §1º, V e VI, CPC/15), para autorizar julgamento monocrático do recurso pelo Relator (artigos 932 e 1011, inciso I, do CPC/15) e assim por diante.

Esse novo paradigma, mais uma vez, não é “autoexecutável” concretamente, ele depende de um novo perfil de atuação dos operadores do Direito. Especialmente da magistratura, é verdade, mas não apenas dela.

Da magistratura porque, a meu ver, ler o artigo 926 como um novo paradigma que justifica a edição de uma nova codificação implica dizer que independentemente da corrente doutrinária a que adiramos quanto à interpretação do artigo 927 - quando, em qual medida e quais incisos são vinculantes -, o fato é que mudança de paradigma representa mudança de mentalidade e de postura. Não se trata de mudança pontual, periférica, cosmética. Dói, incomoda, dá trabalho.

Ou seja, o paradigma do artigo 926 conclama textualmente os tribunais, mas a norma fundamental da cooperação do artigo 6º se encarrega de voltar todos os demais operadores do Direito para que também colaborem, cada qual na parte que lhe toca, para que se logre uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

À primeira vista, eu tendia a compreender que a ampliação das hipóteses de precedentes vinculantes em nosso ordenamento jurídico processual acabaria por ter o efeito colateral de “acanhar”, de passar a mensagem de “apequenamento” do papel da magistratura de 1º grau, que está na base da pirâmide do Poder Judiciário; de, ainda que por via transversa, tolher a independência dos magistrados zelosos e aguerridos, que julgam seus casos com zelo. Temia que pudesse lhes transmitir a mensagem de que, agora, deveriam se tornar “burocratas”, o que seria, em tese, agravado pelo Justiça em Números, que coloca na vitrine seus scores e, como consequência, faz aumentar a cobrança geral por números mais promissores, que espelhem maior produtividade.

Nuria Belloso Martín, Professora da Universidade de Burgos, na Espanha, externa essa mesma preocupação inicial minha, dizendo que os tribunais inferiores, ao estar constrangidos a resolver conforme a jurisprudência, ver-se-iam limitados em sua independência e autonomia, porque se sentiriam impedidos de realizar a interpretação da norma, passando, assim, a ser “meros aplicadores do precedente judicial”[11].

No entanto, bem vistas as coisas, o novo paradigma traçado pelo artigo 926 do CPC/2015 conclama todos, inclusive o juiz de 1º grau de jurisdição, à tarefa laboriosa e não menos importante de, em primeiro lugar, acompanhar a formação da jurisprudência aplicável à sua área de atuação, exigindo-lhe, portanto, constante atualização, e, em segundo lugar e não menos importante, se debruçar sobre o caso concreto que lhe foi confiado e lhe compete para, somente a partir disso, identificar se ele se adequa ou não aos precedentes formados e em qual medida, fundamentando. Trata-se de tarefa que transpõe, e muito, a ideia de um juiz “burocrata”.

De igual modo, advogados públicos e privados, promotores de justiça e delegatários de serventia extrajudiciais devem se pautar pelo mesmo escopo de contribuir para a formação de bons precedentes, acompanhar a sua evolução, invocá-los e aplicá-los correta e lealmente. Trata-se, pois, de um novo paradigma macro, a que nenhum operador está infenso.

5. Medidas executivas atípicas: artigo 139, IV, CPC/15.

E a prova cabal de que o CPC/2015 não quer um juiz “burocrata”, nem tampouco pretende, de modo algum, desvalorizar ou apequenar o papel do magistrado, muito embora tenha, de fato, promovido uma reorganização profunda do sistema de justiça, passando pela colocação, no centro da cena, de diversos e novos agentes, está na autorização para que o magistrado defira medidas executivas atípicas.

Ao trazer conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas abertas para autorizar o magistrado a ser criativo - embora sempre com responsabilidade, razoabilidade, comedimento, compromisso com a isonomia e com a menor onerosidade para o executado - e possa, assim, contribuir, com imparcialidade mas de forma capital, para que se alcance o princípio da efetividade, do resultado ou do desfecho único na execução, alçado a uma norma fundamental nos artigos 4º e 6º do CPC/2015, em suas respectivas partes finais.

Tenho dito que a execução civil no Brasil é o nosso “nó aselha”, de dificílimo desate[12], mas tais medidas sinalizam que o CPC/2015 está longe de querer operadores do Direito burocratas ou autômatos para se desincumbir do desafiador mister de tentar desatá-lo.

Ainda estamos nos sintonizando, após 5 anos de vigência da codificação, aos lineamentos do artigo 139, IV, CPC/2015, mas isso também não é o foco da minha abordagem neste trabalho.

O que importa dizer é que, mais uma vez, o CPC/2015 nos dá outra prova cabal de que estamos diante de novos paradigmas, de que lidar com uma nova codificação está longe de ser uma tarefa fácil para o operador do Direito no século XXI. E isso não decorre de “maquiavelismo” do legislador, em absoluto.

Ao contrário, voltando para o início da presente abordagem, essa é uma resposta complexa para um problema complexo. Ou melhor: é exigir de nós, operadores do Direito que lidamos com o sistema de justiça civil brasileiro, um novo e complexo perfil de atuação, sem “piloto automático” ligado, cada vez com um número de fórmulas preconcebidas menor, pois a sociedade para a qual se volta o sistema de justiça é cada vez mais complexa e exigente e os litígios dela emergentes são, por via de consequência, cada vez mais multifacetados e complexos - os ditos hard cases se proliferam.

6.Conclusão: o real – e desejável - incremento na efetividade do sistema de justiça, a partir da vigência do CPC/2015, depende “do quê” ou “de quem”?

O saldo desse balanço é apenas um, então.

Temos um novo Código de Processo Civil no século XXI, em nosso país, pois temos, no século XXI, em nosso país, uma nova sociedade e, por conseguinte, a partir dela, um contingente de litígios a serem solucionados que muito se distanciam da realidade histórica dos idos da década de 1970.

E o que justifica a edição de um novo código e não a replicação do expediente que se vinha adotando nas décadas anteriores, de edição de leis modificadoras do CPC/1973 é que nos são colocados novos grandes paradigmas, que nos exigem um novo perfil de atuação.

Isso é desconcertante, é incômodo, é trabalhoso, mas é o honesto balanço que eu devo fazer. E a régua para, daqui a mais cinco anos, medirmos o grau de efetividade dos novos instrumentos trazidos pelo CPC/2015, está em nossas mãos.

Não poderemos, comodamente, colocar o dedo em riste para jogar a culpa em terceiros ou no próprio legislador.

Se não tivermos um sistema de justiça civil diferente - preferencialmente melhor - após o CPC/2015, talvez a pergunta seja menos “por quê?” e mais “por causa de quem?”.

Para um novo código, infelizmente, são necessários “novos” operadores do Direito. O diferencial para que os paradigmas de um novo CPC não sejam mera utopia, mas concreta realidade, somos nós.

Senão, acabaremos tendo mais do mesmo, sendo que somos os primeiros da fila a nos queixar do status quo.

Permito-me finalizar parafraseando o saudoso professor Piero Calamandrei, em seu trabalho “A Crise da Justiça”[13], que, embora em contexto histórico diverso do nosso, fez um alerta que, em boa medida, cabe aqui: Exatamente a partir destas frias fórmulas legislativas, parte um ataque de conteúdo revolucionário contra o status quo e aponta-se para a aspiração a uma nova ordem.

Será que o “exército” dessa sadia revolução está a postos?

En garde, donc.

Notas e Referências

[1] Texto redigido a partir de palestra ministrada no II Congresso online Mulheres no Processo, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, no dia 13/08/2021, no painel “Balanço dos 5 anos de vigência do CPC/2015”, disponível no canal do Youtube do aludido Projeto: https://www.youtube.com/channel/UCknaeCW15_lbphyFpkUsjig

[2] ASCENSÃO, José de Oliveira. “O Direito. Introdução e Teoria Geral”. 13. Ed. Coimbra: Almedina. 2005. P. 370.

[3] SILVA, Paulo Eduardo Alves da. PARAVELA, Tatyana Chiari. "Algum dia, talvez, se for o caso… - frequência e motivos para a não designação da audiência do artigo 334 do CPC em comarcas da justiça estadual paulista”, Revista Eletrônica de Direito Processual. vol. 21, número 3. Setembro a Dezembro de 2020. pp. 500-533.

[4] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/ Consulta realizada em 12/08/2020.

[5] APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem pública e processo. O tratamento das questões de ordem pública no Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas. 2011.

[6] CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Ordem pública processual. Brasília: Gazeta Jurídica. 2015.

[7] RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo: liberdade, negócios jurídicos processuais e flexibilização procedimental. 2. Ed. Salvador: Jus Podivm. 2019.

[8] PISANI, Andrea Proto. “Tutela giurisdizionale differenziata e nuovo processo del lavoro”. Il Foro Italiano. Vol. 96. n. 9. Setembro. 1973. pp. 205-250.

[9] AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade: critério para a adequação procedimental. A adaptação do procedimento como garantia ao acesso à justiça de sujeitos vulneráveis. CEI. 2021. P. 138.

[10] Idem, p. 140.

[11] MARTÍN, Nuria Belloso. “Del precedente judicial a los precedentes obligatorios: ¿ventaja o amenaza para los tribunales inferiores?” Revista Eletrônica de Direito Processual. Ano 12. Volume 19. Número 3. Setembro a Dezembro de 2018. pp. 591-626

[12] HILL, Flávia Pereira. “A produção antecipada da prova para a busca de bens no patrimônio do devedor: rumo a uma execução mais efetiva e racional”. Revista Eletrônica de Direito Processual.  Ano 15. Volume 22. Número 2. Maio a Agosto de 2021. pp. 302-322.

[13] CALAMANDREI, Piero. A Crise da Justiça. Belo Horizonte: Editora Líder. 2004. P. 22.

A Tendência De Ampliação Dos Filtros Restritivos Derecurso Especial Ao Stj E Os Seus Riscos

A necessidade de gestão dos processos e racionalidade dos julgamentos já há algum tempo é pauta de preocupação. E, justamente em virtude do problema de assoberbamento do Judiciário continuam sendo criadas intermináveis leis, emendas constitucionais e medidas alternativas visando à mitigação de tal questão.

No que tange à taxa de congestionamento dos Tribunais Superiores, especialmente do STJ, tramita perante o legislativo projeto de emenda constitucional que visa inserir o filtro da repercussão geral (relevante questão de direito) como requisito de admissibilidade para o recurso especial que, além de efetivamente não resolver o problema de congestionamento dos Tribunais Superiores e da duração razoável do processo, também pode resultar em restrição de acesso à justiça, além de ferir outras garantias constitucionais. Barbosa Moreira há muito já advertia sobre o “mito da rapidez acima de tudo[1].

Desde 2012, tramita perante a Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição nº 209/2012, que tem por objeto inserir a “relevância das questões de direito infraconstitucional” como requisito de admissibilidade do recurso especial ao STJ[2], como, aliás, já ocorre com o recurso extraordinário, em virtude da existência do requisito da “repercussão geral” (art. 102, III, §3º da CF/88). A PEC 209/2012 em questão fora votada e aprovada pelo Plenário da Câmara em primeiro e segundo turno. Já no Senado Federal, o substitutivo, PEC10/2017, já fora aprovado pela Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) e aguarda atualmente votação do Senado[3].

A proposta foi sugerida inicialmente pelos próprios ministros do STJ, sob alegação de que a inserção do requisito de ‘relevância da questão federal’ reduziria o congestionamento daquele Tribunal Superior, uma vez que o STJ deixaria de julgar causas corriqueiras e temas “irrelevantes”, como multas de trânsito, cortes de fornecimento de energia, briga entre condôminos, cobrança de contas d’água, entre outras controvérsias.[4]

José Miguel Garcia Medina adequadamente questiona se “tais temas são, de fato, destituídos de relevância? O próprio Superior Tribunal de Justiça tem súmulas a respeito (p.ex., multa de trânsito, as de número 312 e 434; água, as de número 407 e 412; condomínio, as de número 260 e 478...), o que demonstra que a generalização exposta na notícia parece não ter fundamento[5].

A inserção de mais um rigoroso filtro recursal como óbice à interposição de recurso especial ao STJ deveria, necessariamente, ser precedida de uma prévia e detida análise dos impactos dessa possível mudança, não apenas sob a perspectiva da eficiência quantitativa do Judiciário, como já alertava Taruffo[6], mas também sob a perspectiva qualitativa e em cotejo com a garantia do devido processo constitucional, da necessidade de integridade e coerência na uniformização decisória e da impossibilidade de se compreender o acesso à justiça democrático apenas sob a perspectiva de redução de processos aos Tribunais Superiores, isso para dizer o mínimo.  

Não é novidade a existência em nossa legislação de diversos e rigorosos filtros recursais para obstar a interposição de recursos aos Tribunais Superiores, além das súmulas impeditivas de recursos (a exemplo da necessidade do prequestionamento, da impossibilidade de reexame de matéria fática e revisão de cláusulas contratuais etc. - súmulas 05, 07 do STJ), com nítida finalidade de reduzir o número de recursos aos Tribunais Superiores. A respeito do tema, Lenio Streck e Georges Abboud fazem uma breve evolução histórica dessa tentativa de redução dos recursos e suposta eficiência jurídica, demonstrando que essas alterações não resolvem o problema do Judiciário.[7]

A par da promessa de a repercussão geral gerar redução do congestionamento do STJ, a exemplo do que fora feito em relação ao recurso extraordinário, inserido no art. 102, §3º da Constituição Federal/1988 pela Emenda Constitucional nº45/2004, cumpre registrar que tal filtro não fora capaz de resolver adequadamente o problema nem mesmo de congestionamento do STF.[8]

Segundo o Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, em análise da estatística do sistema de repercussão geral do STF, constava que, até dezembro de 2013, havia 493 processos com repercussão geral reconhecida, esclarecendo o Ministro que desde a implantação de tal filtro “o Plenário do STF julgou uma média de 27 processos com repercussão geral reconhecida a cada ano”.[9]

Em 2014, o próprio Ministro Luís Roberto Barroso em suas reflexões, com base em dados empíricos reconheceu: “Tomando-se como referência a média anual de julgamento de processos com repercussão geral admitida, seriam necessários mais de 12 (doze) anos para julgamento do estoque de repercussões gerais já reconhecidas (330:27). Mesmo que se levasse em conta o número recorde de repercussões gerais julgadas em 2013, ainda assim seriam necessários mais de 7 (sete) anos para liquidar o estoque (330:44). E isso em um cenário contrafactual e indesejável, no qual não se reconheceria qualquer nova repercussão geral ao longo dos próximos anos. Esta situação de retardamento nos julgamentos se torna muito mais grave diante da sistemática de sobrestamento prevista na disciplina legal da repercussão geral.”[10]

De lá para cá, mesmo com uma análise maior do que esperada de temas com repercussão geral pelo STF, ainda assim temos uma quantidade considerável de processos que aguardam o julgamento do mérito dos temas em que fora reconhecida a repercussão geral[11]. Há ainda o grave impacto com o sobrestamento de processos que aguardam o julgamento do mérito dos temas de repercussão geral reconhecida, consoante previsão ao art.  1035, §6º do CPC/15, sem nenhuma segurança quanto ao julgamento do mérito de tais temas dentro do prazo de um ano estabelecido no art. 1035, §9º.

Nesse contexto, oportuno ainda ponderar que o STJ não se equipara à Corte Suprema e não se destina apenas a formar teses, já que julga também os casos[12]. Nos recursos extraordinários ao STJ e STF, em que as hipóteses de cabimento são restritas, ainda assim, quando preenchidos os requisitos de admissibilidade e analisado o mérito, os Tribunais Superiores podem julgar a causa, isto é, sua inteireza nos limites em que a lide foi proposta, quando se tratar de error in judicando, conforme inclusive se extrai do art. 1.034 CPC/15. Assim, preenchidos os requisitos de admissibilidade, os Ministros dos Tribunais Superiores poderão reformar, confirmar ou anular a decisão, sendo que, nas duas primeiras hipóteses, julgar a causa implica a análise do caso concreto em sua inteireza.[13]

Além disso, também sob o aspecto do argumento da inserção de mais um filtro impeditivo de recurso especial para viabilizar a duração razoável do processo e celeridade, parece-nos um pouco apressada a tentativa de inserir diversas alterações legislativas visando reduzir a qualquer custo o número de processos que assola o Judiciário, como se apenas a eficiência sob a perspectiva quantitativa fosse suficiente para resguardar as garantias constitucionais e assegurar a efetividade do direito[14].

Não se nega o fato de que o Superior Tribunal de Justiça está assoberbado, aliás, todo o Judiciário, mas se preocupar apenas em impor a cada dia mais medidas restritivas de acesso aos Tribunais Superiores talvez não represente a melhor solução para o problema, até porque não há solução mágica para o problema complexo da alta litigiosidade no Brasil e, consequentemente, de congestionamento do Judiciário.

Atento à questão de congestionamento do Judiciário e necessidade de uniformidade decisória, o CPC/15 previu o julgamento de recursos repetitivos (art. 1036 à 1041), o IRDR (art.976), o IAC (art. 947), além de ter disciplinado também acerca da estabilização e vinculação decisória (art. 926, art. 927), bem como a previsão de negativa de seguimento pela Presidência ou Vice-Presidência dos Tribunais Estaduais e Federais a REsp ou RE interposto em face de acórdão que estejam em conformidade com entendimento do STF e STF exarado no julgamento de recursos repetitivos. Ou seja, já existem diversos mecanismos processuais vigentes que impactam e contribuem na racionalização decisória.

Também não está se levando em consideração que se o requisito da “relevância da questão de direito” para a interposição de REsp se tornar lei, tal alteração prejudicará a pretendida uniformidade interpretativa, a coerência e integridade (inseridas no CPC/15), além de afrontar a segurança jurídica, devido processo legal com os recursos a ela inerentes, com nítida restrição do acesso à jurisdição, e a previsibilidade das decisões, já que poderá haver diversas interpretações divergentes sobre um mesmo artigo de lei federal infraconstitucional que certamente não serão analisadas pelo STJ e não gerarão provimentos vinculantes, em virtude do filtro da relevante questão de direito imposta.[15]

Nesse sentido, Vinicius Secafen e Priscila Kadri reconhecem: “O tema é extremamente polêmico, e as justificativas daqueles que aprovam a PEC 209/2012 parecem ser contraditórias com as previsões constitucionais, seja em razão da restrição ao amplo e irrestrito acesso à justiça, seja em razão do prejuízo evidente ao papel do STJ de uniformizar a interpretação dada à lei federal infraconstitucional”[16].

Outro aspecto que parece não estar sendo analisado por aqueles que defendem a implementação do filtro da repercussão geral no REsp diz respeito à existência de estudos empíricos realizados pelo próprio CNJ apontando que os 10 maiores litigantes no Brasil são: setor público federal, bancos, setor público municipal, setor público estadual, telefonia, comércio, seguros/previdência, indústria, serviços e conselhos profissionais[17]. Se os repeat players são os litigantes que mais impactam e congestionam o Judiciário, normalmente tratando de questões de direito similares, o julgamento de recursos repetitivos ou julgamento por amostragem (art. 1036 a 1041 do CPC/15), com vinculação decisória, parecem apresentar-se mais adequados do que simplesmente criar a cada dia mais filtros restritivos, de forma indiscriminada, com a única função de impedir a interposição de Resp junto ao STJ.

Tratar somente a consequência do congestionamento do Judiciário, com inserção de alterações legislativas em série, restringindo cada vez mais o acesso aos Tribunais Superiores em negativa à própria garantia constitucional de acesso à jurisdição, apresenta-se como uma proposta simplista que não resolverá a questão (a exemplo dos diversos outros filtros recursais já estabelecidos anteriormente).

As origens do problema da chamada “crise do Judiciário” envolvem também uma série de vertentes e outros fatores que, na verdade, camuflam a “crise da atuação do Estado[18].

Ademais, a criação de novos filtros afronta garantias constitucionais, como o acesso efetivo à jurisdição e o devido processo constitucional e parece focar tão somente numa perspectiva limitada de uma eficiência quantitativa, com uma pretensa e fracassada promessa de solução das altas taxas de congestionamento de processos no STJ.

Notas e Referências

[1] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004. p.7-8.

[2] A PEC 209/2012 pretende inserir o seguinte § 1º ao art. 105 da CF/88: "No recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento".

[3] Disponível: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128403. Extraído em 09/08/2021.

[4] O teor do requisito da repercussão geral como filtro de admissibilidade do Recurso Especial foi sugerido pelo então Ministro do STJ Teori Zavascki. A proposta foi apresentada à Câmara dos Deputados pelos deputados Rose de Freitas e Luiz Pitiman, com encaminhamento em setembro de 2012 à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (PEC 209/2012).

[5] MEDINA, José Miguel Garcia. Justiça não pode ser medida apenas em números. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-set-16/processo-justica-nao-medida-apenas-numeros. Extraído em: 09/082021.

[6] A eficiência, como já dito por Taruffo, possui duas faces (a eficiência quantitativa e qualitativa), as quais devem ser aplicadas de forma equilibrada para que uma não elimine a outra.TARUFFOMichele. Oralidad y Escritura como Factores de Eficiencia en el Proceso CivilIn: CARPI, Frederico; ORTELLS, Manuel. Oralidad y escritura en un processo civil eficiente. Valencia: Universidade de Valencia, 2008. p. 285 e ss.)

[7] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto - O precedente judicial e as súmulas vinculantes? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p.13.

[8] Verificar também artigo: PEDRON, Flávio Quinaud; FARIA, Guilherme Henrique Lage. Repercussão geral em recursos especiais é apostada em mecanismo fracassado. Disponível: ConJur - Opinião: Repercussão em REsp é aposta em mecanismo fracassado, extraído em: 09/08/2021

[9] BARROSO, Luís Roberto. REFLEXÕES SOBRE AS COMPETÊNCIAS E O FUNCIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/palestra-ivnl-reflexoes-stf-25ago2014.pdf, extraído 10/08/2021.

[10] BARROSO, Luís Roberto. REFLEXÕES SOBRE AS COMPETÊNCIAS E O FUNCIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/palestra-ivnl-reflexoes-stf-25ago2014.pdf, extraído 28/07/17.

[11] De acordo com a estatística do STF desde a implementação do filtro da repercussão geral no STF até 2021 foram identificados registros de 773 teses com repercussão geral reconhecida e 377 teses com repercussão geral negada. Contudo, ainda há um número considerável de temas de repercussão geral reconhecidas que  não tiveram o mérito analisado pelo STF. Disponível: https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=STF. Extraído em 10/08/2021.

[12] Dierle Nunes, Flávio Pedron e André Horta esclarecem sobre o tema: “[...] a proposta de que o STF e o STJ assumam o perfil de Cortes Supremas, retirando das partes o direito de recorrerem a esses tribunais, na pretensão de que apenas as decisões proferidas por esses tribunais se tornem, prospectivamente, precedentes judiciais que desempenharão a importante função de uniformização do Direito mediante atribuição de sentido à Constituição e às Leis por intérpretes privilegiados ignora, por completo, que o Direito não é realizado apenas nas Supremas Cortes: o Direito está presente no cotidiano das pessoas, que constroem os seus planos de vida e se relacionam com o próximo sob múltiplos aspectos, conferindo, elas próprias, sentido às Leis e à Constituição – noção de comunidade política”. E ainda nesta temática esclarecem: “[...]a aposta em supostas virtudes das Cortes (supremas), que revela uma vertente pragmática para resolver possíveis problemas funcionais que a profusão de feitos induz, parece negligenciar que ela oferta ares de legitimidade a um projeto anti-democrático e de reforço das elites”. (NUNES, Dierle et al. Os precedentes judiciais, o art. 926 do CPC e suas propostas de fundamentação: um diálogo com concepções contrastantes. In: NUNES, Dierle et al. (Coords.). A nova aplicação da jurisprudência e precedentes no CPC/15. Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

[13] Nesse sentido: BAHIA, Alexandre Melo Franco. Recursos extraordinários no STF e no STJ. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2016. p. 202; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 170.

[14] Barbosa Moreira há muito já advertia sobre o “mito da rapidez acima de tudo” .MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004. p.7-8.

[15] Sob esse mesmo aspecto José Garcia Medina alerta: “Aprovada a proposta de emenda constitucional, os dispositivos das leis federais que regulam os assuntos que, de acordo com Superior Tribunal de Justiça, não teriam relevância, poderão ser interpretados e aplicados de modo diferente, em cada um dos estados do país. Teremos, então, leis federais, mas normas (ou, com outras palavras, o sentido como se interpreta e aplica a lei) diferentes em cada um dos estados, o que deve vir a ocorrer em relação a controvérsias “corriqueiras” relativas a Direito Bancário, do Consumidor, Tributário, Administrativo, Penal... O Direito Federal, sob esse prisma, acabaria sendo ‘estadualizado’. “MEDINA, José Miguel Garcia. Justiça não pode ser medida apenas em números. Disponível: http://www.conjur.com.br/2013-set-16/processo-justica-nao-medida-apenas-numeros. Extraído: 01 de agosto de 2021.

[16] MINGATI, Vinicius Sedafen; LACHIMIA, Priscila Kadri. Pec 209/2012: a controversa solução da crise numérica do STJ. Revista Conexão Juridica. Ed.4, julho/17.

[17] Em pesquisa apresentada realizada pelo departamento de pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizada em 2010 ficou caracterizado que os 10 maiores litigantes no Brasil no ranking dos 100, também conhecidos como “repeat players” (litigantes habituais) são: setor público federal, bancos, setor público municipal, setor público estadual, telefonia, comércio, seguros/previdência, indústria, serviços e conselhos profissionais. E que o  setor público federal e os bancos representam cerca de 76 % do total de processos dos 100 maiores litigantes nacionais. (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa 100 maiores litigantes. Brasília, mar. 2011. Disponível em: <http://tinyurl.com/5r6qczb>.)

[18] Dierle Nunes e Nicola Picardi, ao mencionarem as reformas processuais e judicialização, destacam também a responsabilidade do Estado que, em virtude da não implementação de políticas públicas idôneas, teve considerável participação no abarrotamento do Judiciário. NUNES, Dierle José Coelho; PICARDI, Nicola. O Código de Processo Civil Brasileiro: origem, formação e projeto de reforma. Revista de informação legislativa, v. 48, n. 190 t.2, p. 93-120, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242945>. Acesso em: 10/08/2021. p. 100).

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Seriam Os Precedentes Judiciais Uma Forma De Coletivização Do Procedimento?

O artigo 333 do Código de Processo Civil de 2015, que previa a conversão da ação individual em coletiva, foi vetado e não compõe a redação do CPC em vigor. Referido artigo tratava da possibilidade de tal conversão, diante da existência de pedido coletivo ou da necessidade de solução de “conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, por sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme”. Assim, não há previsão legal da possibilidade da conversão de uma ação individual em coletiva.

Todavia, não se pode negar que a instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento de recursos especiais e extraordinários repetitivos acabam por ter efeito similar ao do artigo vetado, tanto é que um dos motivos do veto foi o fato de o Código já contemplar mecanismos para tratar demandas repetitivas.

A partir de uma análise dos mecanismos de criação dos chamados precedentes vinculantes, é possível perceber, claramente, que a pretensão da instituição de tais mecanismos foi permitir a extensão dos resultados de um julgamento para outros casos considerados idênticos. Tais procedimentos implicam no reconhecimento do caráter coletivo das matérias neles debatidas, isso porque fazem com que o provimento jurisdicional proferido em um procedimento individual alcance os outros casos idênticos, tratando-se, portanto, de procedimentos destinados à tutela de direitos individuais homogêneos. Ou seja, tais procedimentos buscam tutelar “um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que permite a defesa coletiva de todos eles”[i].

Como alerta André Vasconcelos Roque, “os procedimentos para resolução de casos repetitivos frequentemente são associados às ações coletivas, visto que estas contemplam, como um dos seus escopos, o processamento e a apreciação, em um só processo, de direitos classificados como individuais homogêneos”[ii].

Essa aproximação da ideia de julgamentos de casos repetitivos com as ações coletivas decorre, ainda, do fato de que o um procedimento de natureza individual passa a ser julgado considerando a existência de uma considerável quantidade de demandas em que se discute questões de direito idênticas. Assim, um procedimento que seria individual terá o seu provimento jurisdicional estendido, como se coletivo fosse o procedimento.

Em se tratando de procedimentos destinados à tutela de direitos individuais homogêneos e bastante similares ao que seria a conversão da ação individual em coletiva, poderíamos chamá-los de procedimentos coletivos? É essa a reflexão ora pretendida.

Apesar do objeto tutelado, pode-se dizer que o que ocorre em procedimentos como o IRDR e os recursos repetitivos é uma verdadeira coletivização do provimento jurisdicional, que passa a ser aplicável obrigatoriamente, nos termos do artigo 927 do CPC, aos demais casos idênticos.

Não se pode considerar que tais técnicas ocasionam a coletivização do procedimento, tendo em vista que nada além do resultado terá natureza coletiva. Há apenas a coletivização do provimento jurisdicional, não de todo o procedimento.

Para que fosse possível pensar nas técnicas de construção de precedentes vinculares como forma de processo coletivo, seria necessário, em primeiro lugar, questionar a representatividade do litigante. Diante de toda a lógica do processo coletivo brasileiro, que se baseia na representação adequada ope legis, não se poderia admitir que, tão somente em razão da temática debatida nos autos, a parte daquele procedimento se tornasse como legítima representante da coletividade.

Sabe-se que a legislação brasileira adotou o critério legal quanto à legitimidade nas ações coletivas, estabelecendo previamente as pessoas aptas a defender os interesses transindividuais em juízo, considerando, ainda, a representatividade adequada, de forma a garantir que “os membros do grupo que não estão presentes no processo judicial devem ser adequadamente representados para a observância do devido processo legal substancial”[iii].

E, conforme esclarece Flávia Hellmeister Clito Fornaciari, “não se vislumbra justificativa plausível para que qualquer legislação que verse sobre direitos coletivos não coloque a representatividade adequada dentre os princípios dos processos voltados a sua defesa, porque ele é intrínseco ao próprio conceito das ações representativas”[iv].

Assim, não seria possível considerar o litigante individual, parte da demanda em que for instaurado o julgamento repetitivo como representante adequado da coletividade, sendo este um dos principais motivos para não se equiparar as técnicas de construção de precedentes vinculantes ao processo coletivo.

Vale lembrar que, no vetado procedimento de conversão de ação individual em coletiva, haveria a substituição do legitimado ativo por quem requeresse a conversão, que poderia ser o Ministério Público, a Defensoria Pública ou qualquer dos outros previstos no art. 5º da Lei nº 7.347/85 e no art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, passando o autor originário a figurar como litisconsorte. Havia, portanto, uma inicial preocupação com a legitimidade coletiva, o que não há nas técnicas de julgamento coletivo previstas no CPC.

Além disso, em um procedimento coletivo, seria necessário refletir sobre a extensão do provimento jurisdicional, de modo que, nos casos em que se pretender a tutela de direito individual homogêneo, a sentença deveria ser imutável com efeitos erga omnes somente nos casos de procedência do pedido inicial. É o que preconiza o art. 103, III, do Código de Defesa do Consumidor, que determina que a sentença somente faz coisa julgada, nas hipóteses de direitos individuais homogêneos, “no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores”.

Sabe-se que não se fala em “coisa julgada” ao se tratar de precedentes vinculantes, mas há uma clara determinação legal no sentido de que o entendimento firmado a partir das técnicas de construção de precedentes deve ser obrigatoriamente aplicado por juízes e tribunais, como se houvesse a obrigação de se preservar a coisa julgada de outra demanda.

Sofia Temer aponta ser inegável a existência de uma dimensão coletiva nos julgamentos de demandas repetitivas, mas esclarece que tais procedimentos não são considerados coletivos, porque se limitam a fixar uma tese em caráter objetivo, sendo que as demais demandas individuais idênticas deverão ser necessariamente apreciadas pelos juízos em que tramitarem[v]. Todavia, não se pode desconsiderar que, na prática, após um julgamento repetitivo, é como se já houvesse prévio julgamento das causas individuais, firmando-se entendimento cuja aplicação é obrigatória. Há sim, análise das demandas individualmente, porém, com a obrigatória vinculação a um provimento jurisdicional firmado em razão da natureza coletiva da questão em discussão. Verifica-se, desse modo, que há uma atípica e insólita extensão da coisa julgada constituída nos julgamentos de casos repetitivos.

Portanto, o que se pretende denunciar aqui é que não se pode reconhecer os precedentes vinculantes como forma de coletivizar o procedimento, sendo mera técnica de coletivizar os provimentos jurisdicionais, tornando um mesmo resultado aplicável em outros casos, sem se importar com quem representava a coletividade no julgamento coletivo, nem mesmo com a forma de extensão destes resultados. Assim, injustificado o veto à conversão da ação individual em ação coletiva, já que a existência de julgamentos repetitivos não proporciona, de fato, a existência de procedimentos coletivos no CPC/2015.

Para fins de reflexão, seria razoável pensar se há necessidade de adequar os julgamentos repetitivos à lógica do processo coletivo ou se o necessário mesmo seria abandonar qualquer ideia que vincule os mecanismos de construção de precedentes judiciais ao processo coletivo.

Notas e Referências

[i] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 43.

[ii] ROQUE, André Vasconcelos. Ações Coletivas e Procedimentos para a Resolução de Casos Repetitivos. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da (coords.). Julgamentos de Casos Repetitivos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 16.

[iii] RICHTER, Bianca Mendes Pereira. Representatividade Adequada: uma comparação entre o modelo norte-americano das class actions e o modelo brasileiro. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Vol. 1, 2012, p. 227.

[iv] FORNACIARI, Flávia Hellmeister Clito. Representatividade adequada nos processos coletivos. Tese de doutorado. São Paulo: Faculdade de Direito da USP, 2010. p. 54

[v] TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 94.

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O Desafio Da Gestão Processual: Do Caso Para A Litigiosidade

Jurisdição efetiva é aquela prestada em tempo suportável[1], em um processo judicial sem dilações indevidas, e a partir da gestão racional e eficiente dos meios processuais. Como já apontava Rui Barbosa, em célebre frase, “a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”[2].  

Da mesma forma, podemos dizer que processo justo e efetivo é aquele que se expressa no tratamento isonômico das partes, e na prestação tempestiva e eficiente da tutela jurisdicional.

Ainda que pertinentes, essas características não esgotam as qualificações necessárias para a configuração de uma boa prestação jurisdicional, ainda mais diante das novas demandas levantadas pela contemporaneidade. A capacidade de o Poder Judiciário reagir eficientemente aos litígios de uma sociedade tecnológica, globalizada e massificada parece demandar, em certa medida, a reinvenção de meios e perspectivas processuais[3], como a do próprio acesso à justiça, objeto de histórico desafio da processualística[4].

A clássica identificação por Mauro Cappelletti e Bryant Garth das três ondas renovatórias do acesso à justiça já pode ser compreendida como resultado da preocupação com a igualdade de acesso efetivo aos mecanismos de resolução do conflito e de produção de resultados justos, para além da perspectiva meramente individual, a fim de abarcar, também, a abordagem social ou coletiva. Os autores apresentam diretrizes e propostas para uma tutela jurisdicional mais adequada aos novos desafios da realidade contemporânea[5].

A primeira onda renovatória estabelece a necessidade de criação de assistência judiciária aos pobres[6], incluindo a remuneração do advogado pelo Estado para aqueles que não possuírem recursos financeiros, e a dispensa do pagamento dos custos para o ingresso no sistema de justiça[7].    

A segunda solução prática aos problemas de acesso à justiça é a representação dos interesses difusos e coletivos. Nessa segunda onda renovatória, busca-se a ampliação do objeto do processo, tradicionalmente visto sob uma perspectiva bilateral, isto é, como instrumento disponível a autor e réu para a resolução do litígio individual.

Cappelletti e Garth já assinalavam a necessidade da releitura da concepção de processo para a promoção do acesso à justiça na tutela dos interesses da coletividade[8]principalmente, quanto ao tempo razoável para a prestação da jurisdição, a fim de que ela seja mais efetiva, célere e humana[9].

Por fim, a terceira onda renovatória compreende a ampliação da própria concepção de acesso à justiça, a partir da simplificação procedimental no âmbito judicial, da adoção de meios extrajudiciais de resolução do conflito, do emprego de técnicas não adversariais, da mudança estrutural dos tribunais, e do uso de pessoas leigas ou paraprofissionais[10]

Para a melhor compreensão das potencialidades trazidas por essa última onda de acesso à justiça é necessário correlacionar o tipo de litígio, sua complexidade e importância social, com a forma mais eficiente para sua resolução[11].

Segundo Teori Zavascki, o Brasil experimentou uma verdadeira “revolução” na representação dos interesses difusos e coletivos, em virtude da alteração na Lei de Ação Popular, que passou a considerar patrimônio   “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico”, e da entrada em vigor da Lei da Ação Civil Pública, a Lei nº. 7. 347, de 24 de julho de 1985[12]

A Constituição Federal de 1988 consagrou o direito fundamental de acesso à justiça no art. 5º, XXXV, ao estabelecer que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Contudo, a previsão de um amplo direito de acesso à justiça frente a um Estado que não tem condições de suportá-lo eclodiu na crise do sistema de justiça brasileiro, especialmente, em virtude da incapacidade de o Poder Judiciário prestar a tutela jurisdicional de forma efetiva e eficiente a demandas cada vez mais numerosas e complexas.

A insuficiência estatal na implementação dos direitos fundamentais, a morosidade do Poder Judiciário, a “jurisprudência lotérica”[13], e o grande acervo processual levaram à criação de órgãos jurisdicionais e técnicas processuais, bem como à reformulação de procedimentos com o objetivo de garantir o acesso à justiça e de otimizar a atuação do Poder Judiciário diante da elevada litigiosidade[14].

Partindo desse raciocínio, a otimização e racionalização dos meios processuais é um dos desafios da processualística para a resolução da litigiosidade, uma vez que o “exercício da atividade jurisdicional é corolário a universalização do acesso à justiça”[15]. Percebe-se, portanto, que racionalização, adequação, tempestividade e efetividade na resolução do litígio são vetores de incremento da efetividade de acesso à justiça[16].

O aumento da complexidade social e da litigância fez com que os órgãos do Poder Judiciário, com destaque para o Conselho Nacional de Justiça, reconsiderassem sua forma de atuação administrativa e jurisdicional para a resolução dos conflitos. Agilidade e produtividade na prestação da tutela jurisdicional, prevenção de litígios, adoção de soluções consensuais para o conflito, consolidação do sistema obrigatório de precedentes e aprimoramento da gestão administrativa e da governança judiciária passam a figurar nos macrodesafios da Estratégia Nacional do Poder Judiciário  2021/2026[17].

Percebe-se, ainda, que a tradicional concepção do “modelo dualístico”[18] revela-se defasada, a exigir ressignificações e reestruturações do sistema de justiça, e da aplicação das normas processuais[19]

A compreensão gestionária da justiça[20] possui relação intrínseca com a concretização do direito de acesso efetivo à justiça, uma vez que sua negligência tende a resultar em inefetividade e ineficiência da jurisdição, especialmente, diante de demandas múltiplas, complexas e multitudinárias.

gestão de litígio parte da identificação do perfil da litigância e de sua complexidade para a definição da técnica de resolução mais adequada para a sua solução. Assim, a gestão do litígio pressupõe a triagem dos casos (screening process ou planificação das soluções de litígio), possibilitando o emprego do método mais adequado, segundo sua complexidade[21].  

Compreende-se por gestão judiciária (court management) a fixação de metas a serem alcançadas com o menor custo financeiro e de tempo, e que maximize o resultado de atividades correlacionadas à jurisdição, tais como organização e funcionamento dos cartórios e secretarias, rotinas administrativas e fluxo processual. Apesar da previsão constitucional do direito à razoável duração do processo, parcela considerável da magistratura brasileira ainda permanece alheia às novas perspectivas sobre a gestão judiciária[22].

A gestão do processo (case management) busca a conformação do procedimento com as peculiaridades do direito material, a partir do emprego de institutos processuais que possibilitam “o planejamento da condução de demandas judiciais em direção à resolução mais adequada do conflito, com menor dispêndio de tempo e custos”[23].

Para Coelho, Lopes, Matos e Mendes, a gestão do processo pode ser conceituada como “a intervenção conscienciosa dos actores jurisdicionais no tratamento dos casos ou processos, através de variadas técnicas com o propósito de dispor as tarefas processuais de um modo mais célere, equitativo e menos dispendioso”[24].

Interessante ponto para a análise da gestão do processo pode ser encontrado na estruturação molecular da litigiosidade individual de larga escala, realizada através, por exemplo, da suspensão de ações individuais até o trânsito em julgado de ações coletivas, como adotada pelo STJ no julgamento do Recurso Especial Repetitivo nº. 1.525.327-PR, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão[25].

Nessa importante decisão, o STJ reforça a virada paradigmática da gestão processual de conflitos em larga escala, cujo enfoque é transferido da resolução de casos para a resolução da litigiosidade, impedindo-se, por exemplo, a pulverização de demandas e decisões contraditórias.

O juízo da vara cível da Comarca de Bocaiúva do Sul, no Paraná, determinou o sobrestamento dos autos da ação individual de reparação de dano moral ajuizada por Eleuza Machado de Lima em face de Trevisa Investimento S.A., Plumbum do Brasil Ltda., Plumbum Comércio e Representações de Produtos Mineiras e Industriais Ltda, Itaú Unibanco S.A e Lloyds TSB, em razão de exposição à contaminação ambiental por chumbo, resultante do beneficiamento industrial de mineração a céu aberto. 

A decisão do juiz singular foi impugnada pelo recurso de agravo de instrumento, que teve seu provimento negado pelo Tribunal de Justiça do Paraná. O recurso especial da agravante, submetido à sistemática dos recursos repetitivos, teve como única questão controvertida, e único objeto da afetação, “a necessidade ou não de suspensão das ações individuais em que se pleiteia indenização por dano moral em razão de suposta exposição à contaminação ambiental decorrente da exploração de jazida de chumbo no Município de Adrianópolis-PR até o julgamento das Ações Civis Públicas em trâmite na Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual de Curitiba”[26].

Por unanimidade, os ministros da segunda seção do STJ negaram provimento ao recurso, fixando a seguinte tese repetitiva[27]:

Até o trânsito em julgado das Ações Civis Públicas n. 5004891-93.2011.4004.7000 e n. 2001.70.00.019188-2, em tramitação na Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual de Curitiba, atinentes à macrolide geradora de processos multitudinários em razão de suposta exposição à contaminação ambiental decorrente da exploração de jazida de chumbo no Município de Adrianópolis-PR, deverão ficar suspensas as ações individuais.

Em que pese a inexistência de permissivo legal que autorize a suspensão das ações individuais de ofício em razão da pendência de julgamento de ações coletivas, e da inaplicabilidade do art. 313, CPC/15 e art. 104, CDC, a suspensão das ações individuais até o trânsito em julgado das ações civis públicas possibilitará a otimização da jurisdição no tratamento de conflitos massificados, e a resolução igualitária para todos os envolvidos, que, em 18/10/2016, já totalizavam 2.230 ações individuais[28].

Sem adentrarmos em questões jurídicas mais específicas, parece bastante clara a adequação do tratamento molecular da litigiosidade de larga escala, por meio da suspensão das ações individuais até o trânsito em julgado das ações coletivas, como técnica de gestão dos processos

Contudo, na processualística brasileira ainda falta a sedimentação teórica do dever de gestão judicial, como ocorre nos sistemas português e francês. O reconhecimento desse dever pode ser a base de legitimação para uma maior adaptabilidade da tutela jurisdicional à litigiosidade, com a defesa, por exemplo, da aplicação, ope iudicis, de técnicas atípicas de gestão, e da definição dos respectivos critérios objetivos de controle ou standards.

A realidade brasileira contemporânea tem apresentado crescentes e complexos desafios ao Poder Judiciário. Resta saber se os processualistas saberão ressignificar seus institutos e concepções tradicionais a fim de assegurar a efetividade e eficiência da prestação jurisdicional frente a esses novos desafios. 

Notas e Referências

[1] PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo; MORAES, Daniela Marques. Op. cit., p. 7.

[2] BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1977.

[3] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. 2. ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2010, p. 8.

[4] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 15.

[5] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Op. cit., p. 31.

[6] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Op. cit., p. 33.

[7] SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à Justiça: um direito e seus obstáculos. Revista USP, [S. l.], n. 101, 204. p. 6.

[8] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Op. cit., p. 91.

[9] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Op. cit., p. 19.

[10] SADEK, Maria Tereza Aina. Op. cit. p. 4.

[11] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Op. cit., p. 72.

[12] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista do Tribunais, 2017, p. 35-36.

[13] CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais, vol. 786, abr. 2001, p. 108-128.

[14] MORAES, Daniela Marques de. A importância do olhar do outro para a democratização do acesso à justiça: uma análise sobre o direito processual civil, o poder judiciário e o observatório da justiça brasileira. Tese. Universidade de Brasília, 2014, p. 152

[15] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas: sistematização, análise e interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 3.

[16] PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo; MORAES, Daniela Marques. O tempo da Justiça no Código de Processo Civil. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 76, pp. 135-154, jan./jun. 2020, p. 140.

[17] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 325, 29 de junho de 2020. Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2015-2020.

[18] MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular no direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados “interesses difusos”. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: primeira série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 110.

[19] ZAVASCKI, Teori Albino. Op. cit., p. 26.

[20] Bochenek, Antônio César; LOPES, José Mauraz; MATOS, José Igreja; MENDES, Luis Azevedo; COELHO, Nuno; FREITAS, Vladimir Passos de. Manual luso-brasileiro de gestão judicial. São Paulo: Almedina, 2018, p 16.

[21] SILVA, Paulo Alves da. Gerenciamento de processos judiciais. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 37-38.

[22] SILVA, Paulo Alves da; ARENA FILHO, Paulo Ricardo. Op. cit., p. 119.

[23] SILVA, Paulo Alves da. Op. cit., p.3 5.

[24] COELHO, Nuno; LOPES, José Mouraz; MATOS, José Igreja; MENDES, Luís Azevedo. Manual de Gestão Judicial. Coimbra: Almedina, 2015. p. 234.

[25] No julgamento do Resp nº. 1.110.549/RS, pelo rito dos repetitivos, o STJ definiu a tese que “ajuizada ação coletiva atinente a macro-lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva”.

[26] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Repetitivo nº. 1525327/PR, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, j. em 12/12/2018, p. em 01/03/2019.

[27] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Repetitivo nº. 1525327/PR, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, j. em 12/12/2018, p. em 01/03/2019.

[28] OSNA, Gustavo; ALFF, Hannah Pereira. A ação coletiva e a suspensão de ações individuais: isonomia e gestão a partir do Resp n. 1.525.327/PR. In: VITORELLI, Edílson; ZANETI JR., Hermes. Casebook de processo coletivo: estudos de processo a partir de casos. Vol. I. São Paulo: Almedina, 2020, p. 60.

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Ações De Família: Estaríamos Mesmo Diante De Procedimentos Especiais?

O Código de Processo Civil em vigor inovou com a classificação das ações de família como procedimentos especiais, quando houver litigiosidade, determinando que fossem aplicadas as normas contidas no referido capítulo aos processos de divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação [1].

Por outro lado, manteve como procedimento especial de jurisdição voluntária, quando ausente de contenda, na mesma forma do Código revogado, o divórcio, a separação, a extinção de união estável e a alteração de regime de bens do matrimônio [2].

A intenção deste texto é questionar o leitor, com as pontuações e com os destaques feitos, se a classificação dada pelo legislador no Código de Processo Civil de que ações de família, ali nominadas, quando contenciosas, fazem parte mesmo do seleto grupo dos procedimentos especiais ou se seriam apenas técnicas avulsas a elas aplicadas.

Sabemos que os procedimentos especiais, no que dizem respeito às ações denominadas de família, bipartem em razão de ser litigioso ou não o exercício do poder de ação posto em prática pelo cidadão, com vistas a solucionar as causas que “submetidas ao Estado, através do processo,” buscam a correta solução jurídica, denominando esta atuação estatal de jurisdição, no dizer de Alexandre Câmara [3].

A divergência entre os processualistas quanto a utilização do vocábulo jurisdição, quando ausente a litigiosidade, ainda persiste. Uns sustentam tratar de “uma atividade administrativa”; e por isto, justificam a manutenção do vocábulo jurisdição em razão de ser exercida pelos agentes do Poder Judiciário. Já outros confirmam ser jurisdição sim, pois se desenvolve através de um processo, com todas as garantias constitucionais do cidadão.

Com vistas a assegurar o exercício do jurisdicionado em solucionar o seu direito, conflituoso ou não, perante o Estado, a lei estabelece um método especial, onde são impostas as normas que o regulamentam, garantindo as formas e a legalidade durante todo o seu desenrolar até culminar com a solução.

“Os processos de resolução de litígios são, em grande maioria, um reflexo da cultura em que estão inseridos” [4] e revelam também os valores de uma época, a considerar as ações antes regulamentadas como procedimentos especiais no Código de 73 e hoje excluídas do Código de 2015 [5].    

E para este conjunto sistemático de normas e regras, de atos procedimentais continuados e sequenciais, deve haver uma ordem lógica e cronológica, reconhecendo a importância da investigação cognitiva, compreendida como a produção de provas, e com o máximo respeito às diferentes tutelas especificas em razão do direito material protegido e exposto a julgamento.

Assim, o legislador, contemplando as especificidades dos inúmeros direitos protegidos, formula ritos especiais para melhor solucionar as questões que possam envolvê-los. Em geral estes direitos são agrupados por similitude e peculiaridades, com vistas, a coerentemente, ser aplicada a mesma fórmula e procedimento, garantindo e ao mesmo tempo facilitando a resolução do imbróglio pela via judicial, quer seja litigioso ou não, em um prazo razoável [6].

Então, surge a promessa do procedimento especial para a solução e em contraposição ao procedimento comum, também conhecido como método “ordinário”, não com o significado utilizado pelo então Código Processual revogado, mas sim como um método vulgar, longo e demorado, que era muito criticado por não atender a necessidade de celeridade que estes direitos diferenciados exigem. 

A adequação do método para assegurar a realização de um direito acontece por exclusão dos procedimentos e culmina no que podemos denominar de tutela comum. Se não estiver nominada a ação nos procedimentos especiais, quer seja de jurisdição contenciosa ou voluntária, a aplicação será do procedimento comum.

Proto Pisani, citado por Grinover [7], em um primeiro momento fazia a distinção de modo inverso, ou seja: o que não for ordinário seria tutela diferenciada. Posteriormente, inverteu o raciocínio, excluindo o que não se enquadrar na tutela diferenciada seria então pelo procedimento-padrão.

Tendo como máxima a eficácia do processo para solucionar estes direitos, resistidos ou não, e acrescendo a garantia do devido processo legal, quer seja quanto às regras procedimentais, quer seja quanto ao direito material que se deseja resolver, justificou-se a criação de um procedimento especial.

Portanto, é de fácil conclusão que certos direitos materiais reclamam, exigem um método especial para serem resolvidos.

E por isto, o legislador de nossa época, vislumbrando a necessidade de assegurar ao cidadão a eficácia de um rito adequado a certos direitos específicos cria os procedimentos especiais, que devem, obrigatoriamente, conter regras procedimentais diferenciadas do procedimento comum, e que devem regulamentar todo o trâmite e desenrolar da ação até o provimento final.

Fala-se em procedimentos diferenciados aplicáveis a direitos específicos, mas em verdade o que são específicas são as ações nominadas e que contém estes direitos.

Tratando das ações de família, em nada será prejudicada, a parte que desavisadamente ajuizar o seu direito sem acautelar-se da propositura pelo rito especial. Pois é perceptível que, as regras específicas contidas no procedimento dito especial, quando se tratar do contencioso, serão aplicadas de ofício, conforme determina o artigo 695, caput do citado Código.

Como exemplo de tutelas específicas das ações de família podemos citar o conteúdo do mandado de citação e o prazo mínimo para que ocorra a citação para a audiência. Pois, as demais regras contidas no capítulo, ora em comento, nada têm de diferenciadas, como será demonstrado ao longo do texto; e, em caso de não haver acordo o rito a ser seguido será o comum [8].

Portanto, ilusoriamente, apesar de estar capitulada como procedimento especial, em caso de permanência da litigiosidade, a ação será solvida no procedimento comum.

Comporta uma crítica a primeira regra, quando o legislador determinou que o réu, ao ser citado, não tenha conhecimento do interior teor da inicial. Em verdade, foi criado aqui um blind date para o réu com a parte autora. Qual o cidadão que recebe uma citação e não procura saber de toda a narrativa fática imputada em face dele? E mais, qual o advogado que recebe a procuração de um cliente sem tomar conhecimento de toda a inicial?

Quanto às demais regras contidas no capítulo do referido procedimento especial das ações de família, a exemplo da mediação, da conciliação, [9] da tutela provisória, [10] da citação feita na pessoa do réu, [11] das partes estarem acompanhadas de advogado ou de defensores públicos, [12] da intervenção do Ministério Público quando houver interesse de incapaz, [13] já estão todas previstas para e no procedimento comum.

A mediação e a conciliação, dispostas na parte geral, como normas fundamentais do processo civil, devendo ser estimuladas pelos juízes, procuradores, defensores públicos e pelo parquet[14] são também tratadas no capítulo dos auxiliares da justiça, dando destaque à mediação, em conflitos que houver vínculo anterior entre as partes [15] e, mesmo no procedimento comum, existe a previsão legal de designação da audiência de conciliação ou de mediação [16].

A tutela provisória, regulamentada na parte geral do Código de Processo Civil [17], com todas as suas nuances, nada deixa a desejar para aquela específica do artigo 695 do referido Codex. Muito pelo contrário, a regra especial deve ser complementada pela geral, frente às possibilidades de medidas atípicas que se fizerem adequadas e necessárias para a efetivação da tutela provisória, como possibilita o artigo 297. Como exemplo, pode ser citada, a necessidade, nas ações de alimentos de ofícios requisitórios para informar os valores recebidos a título de salário ou até mesmo dos rendimentos contidos no imposto de renda do requerido com o objetivo de ser conhecida a possibilidade econômica do alimentante, com vistas ao deferimento da concessão de liminar de alimentos requerida na inicial pela filha alimentada. E, mais recentemente, também como exemplo, a possibilidade do deferimento da tutela de evidência, quanto ao pedido de divórcio, por se tratar de direito potestativo, fundamentado no artigo 311, incisos I e IV do Código de Processo Civil.

Percebe-se que as regras contidas nos procedimentos especiais devem ser complementadas pelas normas gerais, sob pena de não haver uma satisfatória prestação jurisdicional.

Quanto à citação na pessoa do réu, nas ações de família, já estava contemplada no artigo 247 do Código mencionado, como previsão das exceções por se tratar de ações de estado, inclusive mencionando expressamente o disposto no art. 695, § 3º.

No que diz respeito à regra específica ditada pelos procedimentos especiais de que as partes devem estar acompanhadas por seus advogados ou defensores públicos de nada tem de especial, pois já é previsto no artigo 334, parágrafo 9º do CPC.

Finalmente e como último destaque as regras contidas no procedimento, dito especial para as ações de família, temos a intervenção do Ministério Público, nas causas que versarem sobre interesse de incapaz. Mais uma vez não inova como regra especial, posto que o artigo 178, inciso II, já determina a intimação e consequente intervenção do Ministério Público nos processos que envolvam interesse de incapaz.

Destarte, quando se trata do direito de família, é preciso atenção para a adequação aos procedimentos especiais, analisando de forma detida e especifica, as denominadas “ações de família contenciosas”, sob pena de ser aplicado o procedimento comum, como determina o artigo 327, parágrafo 2º do Código Processual. E mais, o artigo citado possibilita o emprego das técnicas processuais nas ações de família mesmo quando passem a ser processadas no rito comum, denominada de cláusula geral de flexibilização procedimental [18].

Para que não ocasione nenhuma nulidade processual, devem ser seguidas as regras ditas específicas do tipo processual até o julgamento.

Como modelo de adequação ao rito correto, podemos citar o ajuizamento de uma ação de divórcio, pelo procedimento especial, quando na verdade o que se pretende, primeiro, é a declaração de existência de casamento e posteriormente a dissolução do vínculo conjugal. Não se pode ignorar ou transpor o pressuposto da declaração de existência de um casamento, na falta de documento legal comprobatório, devendo seguir o rito comum, conforme dispõe o artigo 1.049, haja visto que não está prevista nas ações nominadas no caput do artigo 693, para ao depois ajuizar o divórcio. O mesmo não ocorre com a união estável, que pode ser reconhecida e extinta pelo procedimento especial.

Já, quanto aos atos específicos do procedimento incomum, o exemplo pode vir de um pedido de homologação de guarda e visitação de filho, em que não houve a intervenção do Ministério Público, como determina o artigo 698 do citado Código. Pois mesmo quando não haja contenda e seja apenas um simples pedido de homologação feito pelos genitores a ausência desta intervenção macula todo o processo.

Sem dúvida, é possível a correção no caso do primeiro exemplo, para a adequação ao rito comum, objetivando a declaração de existência do casamento, conforme a permissão legal do artigo 1.049, caput, do Código de Processo; aproveitando os atos que assim possam ser, seguindo-se a regra de respeito a todas as garantias processuais.

Os aplausos recebidos pela criação do procedimento especial para as nominadas ações, a exemplo das ações de família, hoje merecem uma nova observação, simplesmente porque, podemos perceber que de método especial nada contêm, após demonstrado pari passu, que com exceção do conteúdo do mandado de citação e do prazo mínimo para que ocorra a citação para a audiência, as demais regras já inseridas na parte geral e na ausência de acordo o processo desagua na vala do procedimento comum. Comprova-se pela leitura atenta ao artigo 697 do referido Código; bem como nas ações de alimentos e que versar sobre interesse da criança ou de adolescente.

Daí para frente segue o baile, “ordinarizado”. 

A valoração das nominadas ações de família no capítulo de procedimentos especiais se deve à época pela qual estamos passando, com a reestrutura dos valores familiares, de aceitação e de recomposição do núcleo familiar, visando a diminuição de conflitos e de ações recorrentes, não só entre os ex-cônjuges, mas também entre ex-companheiros e nas relações parentais.

A família não é mais a mesma. Com isto, os valores protegidos também se alteram e se alternam, influenciando até mesmo as normas procedimentais para as soluções dos conflitos existentes entre os envolvidos.  

O método empregado para a solução do conflito deve ser eficaz, mas também deve garantir a paridade de tratamento entre as partes, o contraditório, a publicidade, tudo isto em um prazo razoável para trazer a solução do seu problema. Diante das características peculiares da possibilidade de revisões das decisões judiciais nas ações de família, o legislador falhou quando não ofereceu um verdadeiro procedimento especial, em caso de contenda para que as partes se sintam satisfeitas com o resultado, evitando assim o retorno ao Poder Judiciário com ações recorrentes sobre temas já decididos.

Didier, Cabral e Cunha concluíram que é “preciso desenvolver uma teoria dos procedimentos especiais compatível com as transformações pelas quais tem passado o procedimento comum nos últimos anos”. [19] E afiançamos este ensinamento no caso específico das ações de família, pois após observado o rito que aparelha as nominadas ações percebemos que apesar de legal e taxativamente determinadas como procedimento especial em caso de litígio, tudo não passou de uma “pseudo” oferta legislativa de solução. Uma vez que se litigiosa a coisa continuar, seguirá o rito comum, que nada tem de especial para tratar estes direitos.

Notas e Referências

[1] Art. 693 do Código de Processo Civil.

[2] Art. 731 do Código de Processo Civil.

[3] CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro.7 ed., São Paulo: Atlas, 2021, p. 30 e 31.

[4] CHASE, Oscar G. Direito, cultura e ritual. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 21.

[5] Ação de depósito, Ação de Nunciação de Obra Nova, Ação de Usucapião etc.

[6] Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

[7] GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaios sobre a processualidade: fundamentos para uma nova teoria geral do processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018, p. 35 e 36. 

[8] Art. 697 do CPC.

[9] Art. 694, caput, e artigo 695, caput, ambos do CPC

[10] Art. 695, caput do CPC.

[11] Art. 695, parágrafo 3º do CPC.

[12] Art. 695, parágrafo 4º do CPC.

[13] Art. 698 do CPC.

[14] Art. 3º, parágrafo 3º do CPC.

[15] Art. 165 e seguintes do CPC.

[16] Art. 334, caput do CPC.

[17] Art. 294 e seguintes do CPC.

[18] DIDIER JUNIOR, Fredie, CABRAL, Antonio do Passo, CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais. Bahia: Editora JusPODIVM, 2018, p. 69 e 73.

[19] DIDIER JUNIOR, Fredie, CABRAL, Antonio do Passo, CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais. Bahia: Editora JusPODIVM, 2018, p. 16.

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Acesso À Ordem Jurídica Oportuna Na Tutela Executiva: O Equilíbrio Necessário Entre O Princípio Do Incentivo À Autocomposição E O Princípio Da Efetividade Do Direito De Crédito Do Exequente

O acesso à ordem jurídica vem sendo ampliado dentro do ordenamento jurídico através de uma evolução histórico-normativa, em que se observa a preocupação do legislador de ofertar para o jurisdicionado uma prestação jurisdicional adequada, efetiva e oportuna. Tal objetivo de ampliação do acesso ocorre por meio do incentivo a uma solução consensual do conflito, bem como disponibilização de instrumentos processuais voltados a garantir a plena satisfação do credor, portador de um título executivo judicial e extrajudicial.

É justamente dentro desse cenário normativo contemporâneo que se pretende, nesta oportunidade, apresentar um diálogo e uma reflexão sobre a ponderação que o magistrado deverá ter ao realizar sua atividade jurisdicional dentro da tutela executiva. Seu olhar interpretativo precisa estar direcionado para aplicar, de forma equilibrada, o seu dever de incentivar e de promover a autocomposição dentro da relação jurídica processual e, por outro lado, o dever de proporcionar ao credor o acesso efetivo à satisfação do seu direito de crédito.

Tem-se, então, o direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, pautado na garantia concedida ao jurisdicionado para que obtenha a proteção dos seus direitos e interesses por meio do Estado-Juiz.  A concretização desse direito advém da oferta de uma prestação jurisdicional adequada, através de instrumentos voltados para a solução de conflitos e homologação de interesses, bem como de uma prestação jurisdicional efetiva, para aquele que possui a certeza do seu direito material.

Os métodos autocompositivos de solução de conflitos são frutos do estudo aprofundado de Mauro Cappelletti e Bryant Garth sobre o acesso à justiça, os quais idealizaram essa justiça coexistencial, representando a terceira onda renovatória para a superação dos obstáculos existentes nessa seara [1].  Através de tais métodos, permite-se o alcance da verdadeira justiça almejada pelas partes do conflito, com um resultado satisfatório na sua solução — resultado esse que nem sempre é alcançado através da justiça contenciosa estatal ou arbitral, tendo em vista que essa pode não ser a mais correta e adequada à realidade de determinado conflito [3].

É justamente essa justiça coexistencial que marca a “desformalização das controvérsias”, retirando do Poder Judiciário o monopólio da jurisdição estatal, ampliando para a possibilidade de solução de conflitos através de mediadores, conciliadores, e pelas próprias partes, sem qualquer intervenção de terceiros imparciais, como acontece na negociação [4].  Nela, funda-se o ideal do “ganha-ganha” vindo da participação democrática do jurisdicionado na solução das controvérsias e conflito de interesses.

Os métodos autocompositivos já vinham sendo aplicados pelo Poder Judiciário em harmonia com os preceitos contidos na Resolução 125/2010 do CNJ.  Referida Resolução instituiu a Política Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos em que se busca uma reforma na organização judiciária e na concretização de diretrizes para a “cultura do consenso” ou “cultura da pacificação social”, como forma de conscientização acerca dos benefícios de uma solução consensual do litígio. 

Foi justamente com base nessa política de tratamento adequado do conflito que o atual Código de Processo Civil de 2015 se preocupou em fazer uma reconstrução do significado do acesso à justiça, colocando a utilização dos meios autocompositivos de solução de conflitos como prioridade na prestação jurisdicional. Com isso, criou-se o dever do Estado-Juiz de promover, sempre que possível, a sua aplicabilidade nas demandas judiciais (art. 3º, §2º), por meio da conciliação e da mediação, por exemplo.

Partindo dessa perspectiva, o legislador transformou os métodos autocompositivos em norma processual de caráter fundamental, incluindo a obrigatoriedade do Poder Judiciário, dos advogados, dos promotores e dos defensores, de promoverem e incentivarem a política da solução consensual dos conflitos, como está exposto na redação do artigo 3º, §3º, do CPC/2015. A autocomposição poderá ocorrer antes ou no curso do processo, de forma judicial ou extrajudicial (art. 175, CPC e artigos 21 a 29, da Lei 13.140/15). 

Portanto, a redação do artigo 3º, §§ 2º e 3º do CPC promove a releitura do conceito de acesso à justiça, cujo alcance vai muito além do que simplesmente possibilitar ao jurisdicionado o direito de provocar a atividade jurisdicional. João Pedroso, Catarina Trincão e João Paulo Dias [5] afirmam que “o cerne do acesso à justiça não é possibilitar que todos possam ir à corte, mas sim, que a justiça possa ser realizada no contexto em que se inserem as partes, com a salvaguarda da imparcialidade de decisão e de igualdade efetiva das partes”.

Esse novo olhar para o acesso à ordem jurídica justa concede ao jurisdicionado a possibilidade de optar pela solução mais adequada do seu conflito dentre as multiportas colocadas à sua disposição.  Assim, a inclusão da regra autorizativa do uso da autocomposição provocou uma verdadeira mudança de paradigma, diante da prioridade imposta pela legislação processual da tentativa de uma composição amigável dos conflitos como regra a ser seguida pelos julgadores [6].

A previsão das normas sobre mediação e conciliação está entre os artigos 165 ao 175, ao lado de outras espalhadas pelo CPC. Conforme se depreende da redação dos artigos 139, V, 334, 565, 694, 932, I, a utilização do caminho da consensualidade pode ser materializada a qualquer tempo no processo, até mesmo em grau de recurso ou após a publicação do acórdão [7].  É possível ainda que as partes se utilizem, inclusive, da produção antecipada de provas para analisar a viabilidade de uma autocomposição, como prevê o artigo 381, II.

Os conceitos jurídico-positivos da conciliação e da mediação podem ser encontrados nos §§ 2º e 3º, do artigo 165, do CPC, cuja redação legal evidencia as diferenças entres os referidos métodos autocompositivos.

A mediação tem aplicabilidade, preferencialmente, nos litígios entre pessoas que possuem vínculos anteriores, como, por exemplo, vínculos familiares, contratuais, comerciais ou trabalhistas (artigo 165, §3º, CPC).  É justamente pela natureza de relação continuada entre as partes do conflito que o objetivo da mediação está concentrado na busca pelo restabelecimento do diálogo entre as partes, para que elas próprias tentem alcançar um acordo baseado nos interesses, nas necessidades e nas possibilidades de cada uma, de forma harmônica, igualitária e justa, inobstante as concessões recíprocas que existirão na formulação do acordo a ser firmado [8]. Portanto, a atuação do mediador deve ser de um interventor neutro que dá auxílio aos conflitantes para realizarem o tratamento do conflito por meio do diálogo recíproco e através dele, alcançarem, se possível, a melhor solução [9].

Por sua vez, a conciliação é utilizada, preferencialmente, quando o conflito advier de relações circunstanciais, em que as partes passam a se vincular somente em virtude de um determinado fato ou acontecimento (art. 165, §2º, CPC). O seu foco é a tentativa de alcançar a formulação de um acordo para evitar uma demanda judicial ou para finalizar uma ação judicial por meio da homologação do consenso (art. 487, III, “b”, CPC). Desse modo, o terceiro imparcial, denominado conciliador, possui uma participação mais ativa diante da sua intervenção ao lançar propostas, sendo-lhe vedado fazer qualquer tipo de imposição, sob pena de nulidade do acordo firmado.

Warat manifesta-se sobre esses pontos diferenciadores lecionando que, na conciliação, o conciliador não trata o conflito, mas o negocia com as partes; e, por sua vez, o mediador tem a função de ajudar as partes a gerirem o conflito, analisando-o profundamente para chegarem numa decisão convergente, através de diálogos restabelecidos [10].

Ambas as figuras do mediador e do conciliador, considerados como sujeitos imparciais e auxiliares do juízo, precisam passar por curso de capacitação ofertado por entidade credenciada ao CNJ, para posteriormente requerer o seu cadastro nacional, bem como registro no cadastro do Tribunal de Justiça ou de Tribunal Regional Federal (art. 167, §1º, CPC).

Na utilização dos métodos autocompositivos, os mediadores e conciliadores, obrigatoriamente, devem observar seus princípios informadores previstos no caput do artigo 166, da CPC complementado pelo art. 2º, da Lei 13.140/2015. São eles: independência, imparcialidade, autonomia de vontade, confidencialidade, oralidade, informalidade, decisão informada, isonomia e boa-fé.

Para demonstrar o dever do Poder Judiciário de dar prioridade ao alcance da prestação jurisdicional por meio da consensualidade, o legislador determina a designação obrigatória de uma audiência preliminar de mediação e conciliação, prevista no artigo 334, do CPC inserido no Título I, do Livro I, da Parte Especial, que trata do Processo de Conhecimento.  Tal ato processual será dispensado quando o direito em litígio não admitir a autocomposição, ou se ambas as partes manifestarem expressamente o seu desinteresse, seja por meio de uma prévia negociação processual (art. 190, CPC); ou na petição inicial e numa petição do réu a ser protocolada 10 dias antes da data da audiência (art. 334, §4º, CPC), ressaltando que, se houver litisconsórcio, todos terão que apresentar o desinteresse (§6º, do mesmo artigo).

A norma processual prevê que as partes deverão comparecer na referida audiência, acompanhadas por seus advogados ou defensores públicos (§9º), e a sua ausência injustificada será considerada como ato atentatório à dignidade da justiça, com a aplicação de uma multa de até 2% sobre a vantagem econômica pretendida ou sobre o valor da causa (§8º). Recentemente, o STJ se posicionou, por meio do Informativo 700, no sentido de afastar a aplicação dessa multa caso a parte ausente na audiência preliminar esteja representada por advogado com poderes específicos para transigir, como autoriza o artigo 334, §10, CPC [11].

E no âmbito da tutela executiva, a busca pela autocomposição é dever do magistrado? A tentativa de construção do consenso é via prioritária na atuação jurisdicional? A reflexão sobre tais questionamentos se faz imprescindível, diante do que se tem observado na prática forense.

A tutela executiva, diversamente do que ocorre na tutela cognitiva, é direcionada para a satisfação e efetividade do direito de crédito daquele que é portador de um título executivo, judicial (art. 515, CPC) ou extrajudicial (784, CPC).   Assim, para que o credor possa obter a prestação jurisdicional, deve apresentar em juízo a existência desse título previsto em lei, que contenha uma obrigação certa, líquida e exigível, além de demonstrar o inadimplemento do devedor.  Preenchidos esses requisitos legais presentes nos artigos 783 e 786, do CPC, o exequente poderá buscar a satisfação do seu crédito por meio de cumprimento de sentença ou do processo de execução, a depender da natureza do título executivo, judicial ou extrajudicial.

Nesse tipo de prestação jurisdicional emerge o direito fundamental à tutela executiva, com fulcro no devido processo legal efetivo, do qual se extrai o princípio da efetividade insculpido na redação do artigo 4º, do CPC, sendo outra norma processual de suma importância para o acesso à ordem jurídica [12]. Ou seja, o direito à execução está contido no princípio da inafastabilidade da jurisdição, que garante ao credor o direito à atividade satisfativa com a utilização de todos os meios executivos, típicos e atípicos (art. 139, IV, CPC), bem como garantida a prestação jurisdicional em tempo razoável (art. 4º e 6º, CPC)

O enunciado 485, do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), ao interpretar sistematicamente os artigos 3º, §§ 2º e 3º; art. 139, V; art. 509 e art. 513, conclui que é cabível a conciliação ou mediação no processo de execução, no cumprimento de sentença e na liquidação de sentença, em que será admissível a apresentação de plano de cumprimento da prestação.

Contudo, o que se tem observado na prática é uma interpretação equivocada dos magistrados sobre a redação do artigo 3º, §§ 2º 3 º e do artigo 139, V, utilizando o artigo 334 para designar a audiência preliminar de mediação e conciliação após o despacho inicial de admissibilidade da execução, fundamentando-se nesse dever de incentivar a autocomposição. Tal atitude judicial ceifa, verdadeiramente, o direito do credor de obter a satisfação do seu crédito dentro do prazo legal, cujo direito está estabelecido nas normas processuais. Ou seja, admitida a execução, a lei processual determina a intimação do devedor para cumprir sua obrigação pecuniária em 15 dias, no caso de cumprimento de sentença (art. 523, caput); e citação para pagamento em 3 dias, no caso de processo de execução (art. 827, §1º, CPC).

O enunciado do FPPC demonstra que a tentativa da autocomposição pode ser realizada dentro da tutela executiva, mas que, ao nosso ver, somente poderá ser feita após o prazo legal para pagamento da dívida. Postergar o prazo de pagamento para depois da realização da audiência prévia de autocomposição viola flagrantemente o direito de acesso à tutela executiva em tempo oportuno. O julgador deve ficar atento a essa garantia que o legislador concedeu ao exequente.

Fazendo-se a leitura das normas processuais, fica patente que, se a intenção do legislador fosse dar prioridade à autocomposição na tutela executiva, postergaria expressamente o prazo de pagamento da dívida para depois da realização desse ato processual, o que não foi a sua opção. Pelo contrário, traz previsão específica do prazo de pagamento.

O atual ordenamento processual civil gera para o credor-exequente o princípio da máxima efetividade ou do resultado, conforme se depreende do artigo 797, do CPC, em que a tutela executiva é colocada à disposição do jurisdicionado para satisfazer plenamente o seu interesse e obter efetivamente o direito contido no título executivo. [13]

Dessa forma, o magistrado, ao ser invocado pelo credor por meio do cumprimento de sentença ou do processo de execução, terá a sua atividade cognitiva restrita para o preenchimento dos seus requisitos legais que, estando presentes, somente lhe restará admitir a execução, tendo o dever processual de determinar a notificação do executado, emitindo a ordem judicial de pagamento, já que esta irá advir da certeza do direito de crédito contido no título executivo judicial. 

Sobre esse tema é interessante anotar que a 3ª Turma do STJ apresentou julgado no sentido de que a realização da audiência de conciliação no processo executivo não é vedada, mas que a sua realização ficará a critério do juiz e, caso haja pedido expresso do executado para que a referida audiência seja realizada, esta somente ocorrerá após a eventual oposição dos embargos à execução. Tal pleito não irá suspender e nem interromper o prazo para a interposição dos embargos à execução [14]. Destarte, a audiência de conciliação/mediação não deve ser a prioridade, mas sim utilizada de forma residual.

Outro ponto interessante a ser abordado reside na possibilidade ou não de ser aplicada a multa do artigo 334, §8º, do CPC.  Ao nosso entender, deve haver uma cautela por parte do magistrado. A aplicação da multa irá depender do momento em que essa audiência será designada. Se for após o prazo de pagamento e antes da manifestação impugnativa do executado, a ausência na audiência não poderá configurar ato atentatório e nem ser aplicada a multa, tendo em vista que, nesse ínterim processual, a tutela executiva está baseada na certeza preexistente contida no título executivo e a audiência terá por objetivo buscar formas viáveis de pagamento da obrigação.

Entretanto, se a audiência for designada após a apresentação da impugnação do cumprimento de sentença ou dos embargos à execução, o direito exequendo passa a ser controvertido, exigindo do julgador uma atividade cognitiva. Nesse caso, a função da audiência de conciliação/mediação terá a mesma finalidade prevista no processo de conhecimento, ou seja, tentar alcançar a solução da controvérsia formada pela resistência processual do executado.  Portanto, nessa hipótese, entende-se ser possível a aplicação da multa por ato atentatório, caso a ausência das partes seja injustificada.

Dentro que foi exposto, conclui-se que deve imperar a interpretação no sentido de que o Poder Judiciário precisa exercer a jurisdição ofertando ao exequente uma tutela executiva integral, com plena e efetiva satisfação [15]. Desse modo, o juiz tem o poder-dever de deixar de aplicar a norma fundamental de incentivo à autocomposição prevista no artigo 3º, §§2º, 3º, do CPC como prioridade, para atender à proteção do direito fundamental do credor de obter a satisfação do crédito dentro do prazo razoável previsto em lei, sendo-lhe garantida a prestação jurisdicional oportuna, ou seja, garantido o acesso à ordem jurídica justa. Essa ponderação na aplicação das normas está autorizada pelo artigo 489, §2º, do CPC.

Portanto, impõe-se ao operador do direito e aplicador da norma jurídica atentar-se à maior efetividade possível da tutela executiva, protegendo a dignidade da pessoa humana do credor, prevista no artigo 1º, III, da CF e ratificada pelos artigos 1º e 8º, do CPC, dentro de um sistema jurídico com fincas na autocomposição, a qual, na seara da tutela executiva, deverá ser vista como caminho subsidiário e não preferencial, diante da certeza do direito de crédito contida, a priori, no título executivo judicial. Eis o equilíbrio essencial que deverá ser realizado pelo julgador: incentivar a autocomposição a qualquer tempo no processo, mas resguardar o direito do exequente de obter a tutela executiva no prazo legal. Agindo com esse bom senso processual, o devido processo legal efetivo restará inabalável. 

Notas e Referências

[1] Art. 5º, XXXV, CF. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

[2] CAPPELLETI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre. Sergio Antonio Fabris Editor. 2002, p. 132-142.

[3] NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima; JABORANDY, Clara Cardoso Machado. O diálogo da mediação: uma garantia de acesso à ordem jurídica humanizada. Revista Jurídica Jus Poiesis. Pag. 152 a 172, Vol 21, Nº 26. 2018.

[4] FONTAINHA, Fernando de Castro.  Acesso à Justiça: da contribuição de Mauro Cappelletti à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[5] PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, Joao Paulo.  E a justiça aqui tão perto?  - As transformações no acesso ao direito e à justiça. Artigo publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais. Disponível em https://journals.openedition.org/rccs/1181.Acesso em 04 de abril de 2021.

[6] NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima; JABORANDY, Clara Cardoso Machado. O diálogo da mediação: uma garantia de acesso à ordem jurídica humanizada. Revista Jurídica Jus Poiesis. Pag. 152 a 172, Vol 21, Nº 26. 2018.

[7] Informativo 572/2015 do STJ. A publicação do acórdão que decide a lide não impede que as partes transacionem o objeto do litígio. A tentativa de conciliação dos interesses em conflito é obrigação de todos os operadores do direito desde a fase pré-processual até a fase de cumprimento de sentença. Nesse passo, o Código de Ética e Disciplina da OAB, no art. 2º, parágrafo único, VI, prevê, dentre os deveres do advogado, "estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios". No mesmo sentido, são inúmeros os dispositivos legais que preconizam a prática da conciliação, no curso do processo, com o objetivo de pôr termo ao litígio (arts. 277, 448 e 794, II, do CPC, dentre outros). De mais a mais, ao magistrado foi atribuída expressamente, pela reforma processual de 1994 (Lei 8.952), a incumbência de tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes, com a inclusão do inciso IV ao artigo 125 do CPC. Com efeito, essa medida atende ao interesse do Estado na rápida solução dos litígios e converge para o ideal de concretização da pacificação social. Logo, não há marco final para implementá-la. REsp 1.267.525-DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 20/10/2015, DJe 29/10/2015.

[8] NEJAIM, América Cardos Barreto Lima. Mediação e uma releitura do princípio do acesso à justiça: uma solução à incongruência do neoconstitucionalismo. Artigo publicado na obra Estudos sobre o Acesso à Justiça e direito do Estado, org. SOUZA, Wilson; LEAL, Ana Paula de Almeida Lima e NUNES, Bruno Vargens. Salvador. Editora Dois de Julho, 2020, p.236.

[9] SERPA, Maria de Nazareth. Teoria e Prática de Mediação de Conflitos. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 1999, p.90

[10] WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis, Editora Habitus, 2001, p. 79-80.

[11] Informativo 700/2021, do STJ: Não cabe a aplicação de multa pelo não comparecimento pessoal à audiência de conciliação, por ato atentatório à dignidade da Justiça, quando a parte estiver representada por advogado com poderes específicos para transigir. (RMS 56.422-MS, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 08/06/2021)

[12] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I, 17ª edição. Salvador, Editora Saraiva, 2015, p. 113 e 114.

[13] SÁ, Renato Montans de. Manual de Direito Processual Civil. 4ª edição. São Paulo. Editora Saraiva,2019, p. 1013.

[14] Recurso Especial 1.919295/DF, publicado em 20/05/2021, Ministra Relatora Nancy Andrighi.

[15] GUERRA, Marcelo Lima. Direitos Fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 102-104.

O Recurso De Apelação E O Sistema De Preclusão

No dia 19 de maio do corrente ano aconteceu o evento Elas no Processo e os Recursos, organizado pelo coletivo Elas no Processo, com o apoio da Escola da Advocacia Geral da União, do Projeto Quartas Excepcionais e do GEPROC, totalmente on-line, gratuito e contou com mais de quatrocentas inscrições. Em quatro painéis, foram abordados temas basilares, envolvendo os recursos ordinários e meios de impugnação às decisões judiciais; recursos e tecnologias; recursos e precedentes e recursos aos tribunais superiores.

Tive a honra e a alegria de participar do primeiro painel, ocasião em que abordei, de forma sintética, o recurso de apelação e o sistema de preclusão no nosso ordenamento processual civil. Como o tema é amplo e de grande debate na doutrina, surgiu a ideia de complementar a fala a partir deste ensaio, mencionando alguns acórdãos que motivaram a explanação do tema.

A preclusão é um fenômeno que ocorre dentro do processo, ou seja, no próprio procedimento, que, relativamente às partes, limita a sua atividade processual, em razão da faculdade de agir, frente a determinado ato ou decisão, impugnável ou não. A inércia da parte, a depender do tipo de matéria objeto da decisão judicial, pode lhe causar prejuízos em razão da preclusão temporal.

Um diferencial da preclusão frente a outros institutos (por exemplo, a coisa julgada) é que  ocorre no próprio processo, mais de uma vez até, enquanto a coisa julgada opera efeitos que se estendem no mundo jurídico e em outros processos. Nota-se, entretanto, que tais institutos, ao fim e ao cabo, possuem a mesma finalidade, qual seja, a de proporcionar a segurança jurídica às relações processuais.

Deve-se pontuar que a preclusão limita o agir das partes no processo, impondo ordem e celeridade ao procedimento, sobretudo para buscar êxito à duração razoável do processo[i]. Concorda-se com a doutrina de Teresa Arruda Alvim no sentido de que a preclusão é a espinha dorsal do processo, no que concerne ao seu andamento, pois é o instituto por meio do qual, no processo, superam-se os estágios procedimentais, e não deixa de ser também um instrumento propulsionador da dinâmica processual[ii].

Fredie Didier Jr define preclusão como a perda de uma situação jurídica ativa processual: seja a perda de poder processual das partes, seja a perda de um poder do juiz[iii].

O processo é uma marcha para frente[iv]. São atos processuais sucessivos, ordenados e destinados ao fim que é a prestação jurisdicional por meio da sentença. Nesse sentido, a preclusão é extremamente pertinente, porque, de certa maneira, concretiza, no desenvolvimento da marcha processual, a efetividade da prestação jurisdicional. Da mesma forma, concede aos sujeitos do processo a segurança jurídica necessária no sentido de que os atos não impugnados no momento oportuno não poderão mais ser discutidos no processo. Dito de outra forma, serve a preclusão para inviabilizar a eternalização da lide e a sua completa desordem[v]. No mesmo sentido, a doutrina de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:

Se o processo não obedecesse a uma ordem determinada, cada ato devendo ser praticado a seu devido tempo e lugar, fácil entender que o litígio desembocaria numa disputa desordenada, sem limites ou garantias para as partes, prevalecendo ou podendo prevalecer a arbitrariedade e a parcialidade do órgão judicial ou a chicana do adversário. Não se trata, porém, apenas de ordenar, mas também de disciplinar o poder do juiz e, nessa perspectiva, o formalismo processual atua como garantia de liberdade contra o arbítrio dos órgãos que exercem o poder do Estado[vi].

É possível afirmar também que a preclusão está diretamente relacionada, na maioria das vezes, às decisões judiciais. Sabe-se, todavia, que há momentos processuais em que, por exemplo, o autor deve expor os fatos e fundamentos acerca da causa de pedir e pedido. Com o intuito de equilibrar o processo, é na contestação que o réu exerce o direito de refutar os fatos e o direito do autor, como exemplo o chamamento de terceiros ao processo se faz nesta ocasião, sob pena de preclusão. Outros eventos processuais também servem para exemplificar: a indicação de assistente técnico, apresentação de rol de testemunhas, inversão de ônus de prova, reconhecimento de prescrição ou decadência. Se não o fizer, precluso estará qualquer debate acerca da matéria. Com efeito, observa-se que a preclusão se opera em diversos momentos processuais, seja pelos atos das partes ou do ato do próprio juízo, por meio das decisões judiciais. Por via reflexa, conclui-se que não há processo sem preclusão[vii].

Quanto às espécies, a preclusão pode ser temporal, quando ocorrer em razão da passagem da oportunidade processual em que deveria ter sido praticado o ato[viii]. Nitidamente é possível exemplificar a partir da perda de um prazo peremptório. A preclusão pode ser lógica quando em razão da prática anterior de um ato incompatível, com o exercício da faculdade/poder processual[ix], a exemplo, o pedido de produção de prova de um fato já confessado; ou indicar determinado bem à penhora e requerer a invalidação da constrição. Por último, a preclusão pode ser consumativa, nesse caso, ocorre quando já se praticou o ato processual pretendido, não sendo possível repeti-lo, melhora-lo ou corrigi-lo[x], como por exemplo o protocolo adiantado, antes do prazo fatal, da contestação ou de razões e contrarrazões recursais, não podendo a parte “arrumar” nos dias restantes ao final do prazo.

É bastante comum ouvir que matérias de ordem pública não precluem e podem ser arguidas em qualquer momento do processo e grau de jurisdição. Todavia, alerta-se que esse jargão está incompleto. Seria mais completo e melhor dito que a matéria de ordem pública pode ser arguida em qualquer fase processual e grau de jurisdição, desde que já não tenha sido objeto de decisão. Aí sim, o raciocínio estaria completo. Se nunca fora objeto de decisão em nenhuma fase processual ou grau de jurisdição, a matéria de ordem pública que deveria ter sido examinada pode ser arguida a qualquer momento.

De acordo com o artigo 1.009, § 1º do CPC, todas as situações não enumeradas no artigo 1.015 do CPC, ou seja, não podem ser objeto de recurso de agravo de instrumento, terão a preclusão diferida para o momento das preliminares de razões ou contrarrazões de apelo. Serão, portanto, matérias de preliminares de mérito do recurso de apelação e precluirão, se não forem arguidas.

E se for matéria de ordem pública? Faz-se o mesmo raciocínio. Se não for objeto de agravo de instrumento, necessariamente deverá ser arguida como preliminar nas razões ou contrarrazões de apelo. Mesmo sendo matéria de ordem pública, deverá ser observado esse mesmo raciocínio.

Note-se que, didaticamente, é possível comparar a preclusão com um farol de luz amarela intermitente, em que cada decisão judicial proferida no iter procedimental altera sua intensidade, justamente para alertar as partes que algo precisa ser feito. Nesse sentido, havendo decisão judicial sobre qualquer matéria, seja de ordem pública ou de ordem privada, a parte deverá atentar para o recurso pertinente cabível, sob pena de haver a preclusão. Caso contrário, a funcionalidade da preclusão fica prejudicada.

Foi possível identificar em alguns julgados de tribunais de justiça o manejo de recurso de apelação pretendendo a revisão de matéria de ordem pública decidida em primeira instância, sem o recurso pertinente no momento oportuno.

Do Tribunal de Justiça do Paraná, conforme apontado na ementa de julgamento de apelação cível número 0026150-53.2017.8.16.0017[xi],  houve o pedido de reexame de matéria envolvendo inversão de ônus de prova, matéria típica do artigo 1.015, inciso XI do CPC, que poderia ter sido objeto de agravo de instrumento, mas que não o foi. Logo, mesmo sendo uma questão de ordem pública, observa-se a ocorrência da preclusão.

 Dito de outra forma, a estabilização própria às matérias que não são objeto de agravo de instrumento não se concretizou neste caso, porque a parte poderia ter manejado o recurso pertinente, mas não o fez.

Outro exemplo vem do Tribunal de Justiça mineiro, também em sede de julgamento de apelação cível número 1.0024.14.344830-6/001[xii] em que foi possível identificar que a parte se absteve de recorrer da decisão que indeferiu a integração de litisconsórcio ao processo, para arguir como fundamento de cerceamento de defesa em sede de apelo, sem êxito portanto em razão da preclusão, mesmo sendo matéria de ordem pública.

Do Tribunal de Justiça gaúcho ilustra-se com o julgamento da apelação cível número 5001699-97.2015.8.21.0019,[xiii] em que ainda foi possível identificar a ressalva feita pela julgadora acerca da operabilidade da preclusão ante a inércia da parte mesmo sendo matéria de ordem pública, corroborando com a ideia do presente ensaio.

 Por último, obviamente sem esgotar a matéria, mas  apenas para não tornar cansativa a leitura, o último caso vem do Tribunal de Justiça catarinense com o julgamento da apelação cível número 0313983-04.2015.8.24.0008[xiv] com a mesma temática, vindo ao encontro dos demais já relatados.

Ressalva-se, apenas, no tocante ao tipo de preclusão. Embora os dois últimos julgados a denominam de preclusão consumativa, entende-se, salvo melhor juízo, em se tratando de inércia da parte, ou seja, quando simplesmente deixou de praticar o ato de interpor o recurso pertinente no momento oportuno, a preclusão que se opera é a temporal, no mesmo sentido da doutrina de Teresa Arruda Alvim[xv].

Conclui-se o presente texto com o intuito de alertar sobre a importância e a atenção que os advogados devem ter com o instituto da preclusão, mesmo em sede de matéria de ordem pública, pois, havendo qualquer decisão no processo, é preciso identificar primeiro se é possível interposição de agravo de instrumento, seja por fundamento no artigo 1.015 do CPC, ou em razão da urgência, conforme precedente do STJ. Se não se encaixar em nenhuma das hipóteses anteriores, necessariamente deverá ser objeto de preliminares de razões ou contrarrazões de apelação. Caso contrário, a preclusão irá incidir, a fim de cumprir sua missão dentro do processo.

Notas e Referências

[i] ALVES, Luciana D. Beltrão. SILVEIRA, Bruna Braga da. Breves Considerações acerca das recorribilidades das decisões interlocutórias no CPC/15: Preclusão, agravo de instrumento e apelação. In CORTEZ, Renata. FREITAS, Rosalina. DOURADO, Sabrina (Coord.). Temas Relevantes de Direito Processual Civil: Elas Escrevem. Recife: Armador, 2016. p.303-319.

[ii] ALVIM, Teresa Arruda. Os Agravos no CPC de 2015. 5.ed. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2021. p. 382.

[iii] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil.  Vol.1. 22 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 530.

[iv] Idem.

[v] RUBIN, Fernando. A Redução da técnica preclusiva no novo CPC: balanço de retrocessos e avanços no período 2010-2015. In RUBIN, Fernando. REICHELT, Luis Alberto. (org). Grandes Temas do Novo Código de Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 90.

[vi] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. n. 137, p. 8.

[vii] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol.1. 22 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 531.

[viii] ALVIM, Teresa Arruda. Os Agravos no CPC de 2015. 5.ed. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2021. p. 386.

[ix] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol.1. 22 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 534.

[x] Idem. p.537.

[xi] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INSCRIÇÃO INDEVIDA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO INTERPOSTO PELO DEMANDADO. INSURGÊNCIA QUANTO À INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. MATÉRIA DECIDIDA NO SANEAMENTO, SEM RECURSO OPORTUNO. PRECLUSÃO. NÃO CONHECIMENTO.AUSÊNCIA DE PROVAS DA EXIGIBILIDADE DO DÉBITO. ÔNUS DO REQUERIDO DE COMPROVAR FATO IMPEDITIVO, MODIFICATIVO OU EXTINTIVO DO DIREITO DA AUTORA QUE NÃO RESTOU SATISFEITO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO DEMANDADO. INSCRIÇÃO INDEVIDA DO NOME DA REQUERENTE EM CADASTRO RESTRITIVO DE CRÉDITO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. DANO MORAL “IN RE IPSA”. “QUANTUM” INDENIZATÓRIO. PLEITO DE REDUÇÃO. NÃO ACOLHIMENTO. VALOR FIXADO DE ACORDO COM AS PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO.HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS FIXADOS SOBRE O VALOR DA CONDENAÇÃO. ART. 85, §2º, DO CPC/2015. IMPOSSIBILIDADE, NO CASO, DE ADOTAR O CRITÉRIO DE APRECIAÇÃO EQUITATIVA. PREQUESTIONAMENTO. DESNECESSIDADE DE MENÇÃO EXPRESSA A DISPOSITIVOS LEGAIS SE AS QUESTÕES FORAM DEVIDAMENTE ANALISADAS. SENTENÇA MANTIDA. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS RECURSAIS.APELAÇÃO CÍVEL PARCIALMENTE CONHECIDA E, NA EXTENSÃO, DESPROVIDA. (TJPR - 10ª C.Cível - 0026150-53.2017.8.16.0017 - Maringá -  Rel.: DESEMBARGADOR GUILHERME FREIRE DE BARROS TEIXEIRA -  J. 15.05.2021).

[xii] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS - PEDIDO DE DENUNCIAÇÃO À LIDE EXTEMPORÂNEO - PRECLUSÃO - INDEFERIMENTO – AUSÊNCIA DE RECURSO - CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CONFIGURADO - RECURSO DESPROVIDO. Não há que se falar em cerceamento de defesa quando a parte ré requer a denunciação à lide de forma extemporânea, dando ensejo ao seu indeferimento e tal decisão resta irrecorrida. Recurso desprovido.  (TJMG - Apelação Cível 1.0024.14.344830-6/001, Relator(a): Des.(a) Amorim Siqueira, 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 12/11/2019, publicação da súmula em 27/11/2019).

[xiii] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ILEGITIMIDADE PASSIVA REJEITADA. A ILEGITIMIDADE 'AD CAUSAM' TRATA-SE DE MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA, PASSÍVEL DE ANÁLISE A QUALQUER TEMPO E EM QUALQUER GRAU DE JURISDIÇÃO. NO ENTANTO, SE DECIDIDA EM DESPACHO SANEADOR ESTÁ SUJEITA A RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. CASO NÃO IMPUGNADA NO PRAZO LEGAL, OPERA-SE A PRECLUSÃO CONSUMATIVA (ART. 507 DO CPC). PRECEDENTES DO STJ E DESTA CORTE. APELAÇÃO NÃO CONHECIDA. Apelação Cível, Nº 50016999720158210019, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Beatriz Iser, Julgado em: 14-04-2021). 

[xiv] AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO DE VIDA EM GRUPO. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA DA RÉ. REITERADA A TESE DE ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. PREJUDICIAL ANALISADA EM DECISÃO INTERLOCUTÓRIA IRRECORRIDA. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. EXEGESE DO ART. 507 DO CPC. IMPOSSIBILIDADE DE REDISCUSSÃO, AINDA QUE SE TRATE DE MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DESTA CORTE. NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO. "Ainda que se trate de questão de ordem pública, a existência de decisão anterior a respeito da legitimidade da parte impede nova apreciação do tema, ante a ocorrência da preclusão consumativa."(STJ, AgInt no AREsp 1185653/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/04/2018, DJe 13/04/2018). (...). (TJSC, Apelação n. 0313983-04.2015.8.24.0008, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Haidée Denise Grin, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 15-04-2021). 

[xv] ALVIM, Teresa Arruda. Os Agravos no CPC de 2015. 5.ed. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2021. p. 386.

Exclusão Digital E Acesso À Justiça Em Tempos De Pandemia: Uma Análise Sob A Ótica Dos Juizados Especiais

Nos últimos dois anos, o Poder Judiciário intensificou a implementação de rotinas de trabalho remoto por meio de sistemas informatizados, realizando a transmissão, o armazenamento e a disponibilização de dados via internet.

Este movimento de transformação digital foi impulsionado pela necessidade de uma prestação jurisdicional contínua, ininterrupta, segura e adequada às determinações previstas na Lei nº 13.979/2020, que estabelece as principais medidas restritivas e preventivas para o enfrentamento do COVID-19.

Diante deste novo cenário, no qual o Poder Judiciário passou a disponibilizar diversos serviços de maneira exclusivamente remota, exsurge uma dúvida razoável sobre a observância da garantia do acesso à justiça, tendo em vista que parte da população atendida pelo Poder Judiciário não estaria preparada para a utilização dos meios digitais.

Eventual dificuldade de acesso ao Judiciário pelos meios digitais, em tese, se demonstraria mais evidente nas situações em que se outorga ao jurisdicionado a prerrogativa de ingressar em juízo desassistido de um advogado (jus postulandi), razão pela qual se elegeu, como parâmetro de estudo, a dinâmica dos juizados especiais.

Destarte, pretende-se neste trabalho, fazer uma breve introdução sobre o fenômeno da exclusão digital, e, em um segundo momento, a partir de alguns números coletados pelo Núcleo de Prática Jurídica (NPJ) do Centro Universitário Anhanguera de Leme/SP, desvendar se, de fato, haveria algum impacto sobre a garantia do acesso à justiça nos juizados especiais decorrente desta disponibilização da prestação jurisdicional exclusivamente no meio digital.

A análise se baseia em dados coletados no período de 2019 a 2020, ao longo dos atendimentos realizados no Juizado Especial Cível da Comarca da cidade de Leme, no Estado de São Paulo, que funciona integrado ao Centro Universitário Anhanguera daquela localidade.

Vale dizer que foi estabelecido convênio entre o Poder Judiciário local e a faculdade de Direito para que todos os primeiros atendimentos e a elaboração das petições iniciais dos jurisdicionados sem a assistência de advogados, fossem realizados pelo NPJ, contando com o auxílio de alunos da graduação cursando o 7º ou o 8º período.

Até o dia 16 de março de 2020, os atendimentos eram realizados pelos alunos de Direito, nas instalações físicas, na presença de um advogado orientador. Com a decretação da pandemia, as mesmas atividades foram mantidas por videoconferência, com o uso do aplicativo Microsoft Teams e mediante prévio agendamento por e-mail [1].

Destaque-se que algumas demandas recebidas pelo NPJ representam os casos não solucionados pelo Procon-Leme/SP, que, no intuito de facilitar o acesso à justiça aos consumidores, fazem o seu redirecionamento automático para o atendimento do Juizado Especial.

De acordo com os dados apresentados pelo NPJ, no primeiro semestre de 2019 foram registrados 292 atendimentos, e no segundo semestre, 313 atendimentos. Em contrapartida, no primeiro semestre de 2020, 79 casos foram atendidos, e no segundo semestre, apenas 46 casos. Veja-se o gráfico comparativo a seguir:

 

A partir dos números apresentados, resta evidente que houve uma significativa redução na quantidade de atendimentos nos Juizados Especiais que se intensificou com o avanço da pandemia, a partir do primeiro semestre de 2020. Resta saber qual teria sido o fator determinante desta redução.

Em adição, pode-se extrair do site do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, o diagnóstico dos Juizados Especiais realizado no ano de 2020, a partir do qual podem se extrair as seguintes informações [2]:

a) As maiores dificuldades relatadas nos juizados especiais relacionam-se com a falta de capacitação dos usuários, problemas com a capacidade de rede, a ausência de automação em alguns procedimentos, e a dificuldade de adaptação do fluxo processual à realidade local.

b) Em relação aos impactos da pandemia e providências adotadas, observou-se que mais de 95% dos juizados passaram a adotar o regime de trabalho remoto para a equipe, cerca de 30% realizaram as audiências por videoconferência, e mais de 90% suspenderam audiências e prazos processuais.

c) O atendimento foi reduzido significativamente considerando que as audiências por videoconferência não puderam ser realizadas em sua totalidade, atingindo o percentual máximo de 30,9% dos casos, sendo que o restante não foi absorvido pelos atendimentos presenciais em rodízio, que aconteceram em 24,2% nas cidades do interior e em 16,8% nas capitais.

d) As dificuldades enfrentadas durante o período da pandemia, em sua maior parte, relacionam-se, em primeiro lugar, com a falta de disponibilidade de equipamentos de TI adequados para o trabalho remoto (63% dos juizados); em segundo lugar, com o acúmulo de processos em razão da suspensão dos prazos processuais (54% dos juizados); e, em terceiro lugar, com a ausência de estrutura física e gestão de pessoal adequada para a realização do trabalho remoto.

Outro dado muito importante extraído do diagnóstico em apreço, refere-se aos representantes legais e assistência jurídica durante a pandemia. Vejam-se a seguir algumas conclusões interessantes que se conectam com a redução no acesso à justiça em sede de juizados especiais a partir de 2020:

a) O setor de atermação dos juizados especiais absorve boa parte dos primeiros atendimentos aos jurisdicionados, representando 61% das demandas recebidas nos juizados adjuntos e 71,3% nos juizados autônomos.

b) os Núcleos de prática jurídica mantidos por instituições de ensino públicas ou privadas possuem uma relevante participação sobre os atendimentos iniciais nos juizados, sendo de 17,5% nos juizados da capital e 9,4% nos juizados do interior; na prestação de assistência jurídica gratuita, chegam ao maior índice de 26,5% na capital, e 16,1% no interior.

Isto revela a importância dos dados extraídos do caso concreto em apreço, que são coletados a partir da dinâmica de trabalho de um Núcleo de prática jurídica, que, como pode se ver, representa uma considerável parcela dos atendimentos realizados em sede de juizados especiais.

Com relação ao número de novos casos levados aos Juizados Especiais, não foram localizados relatórios com dados estatísticos no ano de 2020.

Entretanto, nota-se que, a partir dos impactos da pandemia sobre a prestação jurisdicional, o acesso à justiça passou a ser mais discutido pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, que neste ano, criou o Índice de Acesso à Justiça – IAJ, exatamente como forma de mensurar a evolução do direito em questão.

Segundo a parte introdutória do relatório sobre o IAJ, o acesso à justiça não pode ser medido apenas a partir do Judiciário, sendo igualmente relevantes as características regionais e populacionais, que são capazes de revelar de que maneira as vulnerabilidades sociais podem ser manifestar [3].

Neste mesmo sentido, Leonardo Greco destaca que acima do acesso à justiça, está o acesso ao direito, que por sua vez, depende de inúmeros pressupostos, vários deles extrajurídicos, tais como: a) a educação básica, pois aquele que não tem consciência não pode ter acesso ao direito; b) o oferecimento a todos os cidadãos de condições mínimas de sobrevivência e de existência condignas; c) o aconselhamento jurídico às pessoas economicamente hipossuficientes a respeito dos seus direitos; e, por fim, o acesso à justiça propriamente dito [4].

Portanto, até que se tenha um diagnóstico com base no IAJ, não será possível dimensionar de maneira precisa quais seriam as dificuldades para o acesso à justiça na sociedade contemporânea, desvendando se a inserção das novas tecnologias em todo o território nacional seria um destes fatores propulsores.

Por esta razão, delimitam-se as conclusões acerca da temática proposta com base no estudo de caso apresentado.

Especificamente em relação aos Juizados Especiais, observa-se no ano de 2020, a publicação da Lei nº 13.994, que, ao promover alteração nos arts. 22 e 23 da Lei nº 9.099/95, fez constar expressamente a possibilidade de se realizar a conciliação não presencial, assim entendida como aquela “conduzida pelo Juizado mediante o emprego dos recursos tecnológicos disponíveis de transmissão de sons e imagens em tempo real”. Diante do não-comparecimento ou da recusa para participar da tentativa de conciliação não presencial, o juiz togado fica autorizado a proferir sentença.

A realização de atos processuais no formato on-line já era prevista na lei de processo eletrônico que havia trazido algumas modificações ao Código de Processo Civil de 1973. O Código de 2015, em seu art. 236, parágrafo terceiro, fez previsão expressa da prática de atos processuais por videoconferência. O art. 1.982 dispõe sobre o dever de disponibilidade de equipamentos para a prática de atos processuais nas unidades do Poder Judiciário.

Em que pese a autorização para que os jurisdicionados possam exercer o seu jus postulandi nos Juizados Especiais Cíveis, nas causas de até 20 salários-mínimos, constata-se que o Poder Judiciário até hoje não disponibilizou equipamentos em todas as Comarcas, dificultando às partes o exercício deste direito que lhes é conferido.

Este obstáculo de ordem burocrática, traduzido pelo desaparelhamento da máquina judiciária [5], decorrente da inadequação de diversos fatores estruturais, se reflete nas dificuldades registradas pelo Diagnóstico dos Juizados Especiais apresentado no início deste trabalho.

Ao mesmo tempo que se permitiu a realização de atos processuais não presenciais, valendo-se exclusivamente dos meios digitais, não foram disponibilizados aos usuários os equipamentos necessários para tanto.

Os obstáculos para o acesso à justiça preocupam há tempos os estudiosos do tema. Mauro Cappelletti e Bryant Garth, na década de 1970, a partir de estudos realizados no Projeto Florença, publicaram a clássica obra acerca do acesso à justiça [6]. Nela, consagraram as três ondas de acesso à justiça, cada qual como uma forma de superação dos obstáculos encontrados: (i) na primeira onda, a assistência judiciária para os pobres; (ii) na segunda onda, a representação dos direitos difusos; e, por fim, iii) na terceira onda, o acesso à representação em juízo a uma concepção mais ampla de acesso à justiça [7].

Na atualidade, ainda se verificam problemas de acesso à justiça que fazem parte da primeira onda apontada por Cappelletti e Garth [8]. Em pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, em 2012, verificou-se que a procura pelo Poder Judiciário ainda se concentra entre pessoas com maior nível de renda e de escolaridade [9].

Novamente se faz presente a reflexão sobre a necessidade de um acesso ao direito que antecede o acesso à justiça.

Para que a porta do Poder Judiciário esteja aberta, e assim se tenha o efetivo acesso à justiça, a pessoa deveria reconhecer a existência de um direito, juridicamente exigível; teria que ter conhecimento de como ajuizar uma demanda; teria que ter disposição psicológica para ingressar na justiça [10].

Sabendo-se que parte da população ainda é analfabeta [11], pode-se concluir que para esta parcela, o acesso ao mundo digital é ainda mais distante.

Estima-se que aproximadamente 26% da população brasileira não tenha acesso a internet e que menos da metade dos que têm acesso à internet não o façam por um computador [12]. Esses dados são confirmados pela pesquisa de Índice de Inclusão da Internet, onde o Brasil ocupa a trigésima sexta posição geral, com índice de 77,9%. Porém, quando se analisa isoladamente o índice de disponibilidade é possível verificar que o Brasil ocupa a quadragésima oitava posição, com apenas 71,2% dos brasileiros com acesso à internet [13].

Com a existência de muitas atividades da sociedade sendo realizadas exclusivamente ou preferencialmente por meios digitais, a exclusão digital pode inclusive ofender a previsão do art. XXVII da Declaração dos Direitos Humanos de 1948 que estabelece: “todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios [14]."

A exclusão digital, portanto, acentua a desigualdade social já existente no país e é necessário que haja um incentivo governamental para a implementação das Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação (TDICs), para que se possa transformar a sociedade [15].

A exclusão digital como um obstáculo ao acesso à justiça – garantia constitucionalmente assegurada pelo art. 5º, inciso XXXV – não se refere propriamente à adoção exclusiva de mecanismos informatizados para a sua veiculação, pois o movimento de digitalização é inevitável e imprescindível para o desenvolvimento do país.

Ademais, as benesses trazidas pelas novas tecnologias são inúmeras, portanto, o problema não é a transformação tecnológica da sociedade, mas sim, a ausência de políticas públicas que sejam capazes de promover a inclusão digital de todos os seus membros.

O acesso à internet, no atual contexto, poderia ser visto como um direito fundamental assegurado a todos os indivíduos, na medida em que grande parte dos serviços públicos essenciais passaram a ser disponibilizados, exclusivamente, pelos meios digitais – à exemplo da prestação jurisdicional, diante das diversas restrições impostas pelas medidas de combate à pandemia.

Quando da análise do processo judicial eletrônico já se falava em mitigação do amplo acesso à justiça enquanto não houvesse a implementação de políticas públicas para atender todos os jurisdicionados, dentre elas, a inclusão judicial [16].

O relatório Justiça em números do CNJ publicado em 2020, traz a informação de que durante o ano de 2019, apenas 10% do total de processos novos ingressou na forma física. Em apenas um ano, entraram 23 milhões de casos novos eletrônicos [17].

Assim, evidencia-se que há uma grande preocupação para se digitalizarem os meios, que se contrapõe a um certo desapreço para que se propicie o efetivo acesso dos jurisdicionados aos meios digitalizados.

Do mesmo modo, pode-se concluir que a dificuldade de acesso à justiça se torna ainda mais cristalina quando se pensa na capacidade postulatória outorgada em sede de juizados, em relação às pessoas que não possuam condições para exercê-lo sem qualquer auxílio de terceiros – seja por serem analfabetas, por não possuírem acesso à internet, ou por não terem conhecimento dos seus direitos.

Sem os atendimentos na modalidade física, essas pessoas ficam à margem da justiça, e isto talvez só venha a ser confirmado a partir dos dados obtidos ao final da pandemia.

Todavia, os números apresentados a partir do caso concreto, revelam um forte indício de que a pandemia, aliada à adoção das rotinas processuais exclusivamente no meio digital, de algum modo impactaram, prejudicialmente, o direito de acesso à justiça por parte da população que se encontre digitalmente excluída.

E como ficará o direito material das pessoas excluídas digitalmente? A Lei 14.010/2020 que disciplinou situações transitórias em razão do enfrentamento à pandemia, suspendeu os prazos prescricionais apenas até dia 30 de outubro de 2020 [18]. Mas não há diploma legal disciplinando o restante do período, e o Brasil passa, atualmente, pela pior fase da crise sanitária – que parece estar longe de terminar.

Por todo o exposto, revela-se imprescindível o acompanhamento e o monitoramento de todas as possíveis dificuldades de acesso ao Poder Judiciário pela via exclusivamente digital, com especial atenção para os juizados especiais, ou em qualquer procedimento no qual se contemple a figura do jurisdicionado que possa ingressar em juízo desassistido por um advogado.

Notas e Referências

[1] O fluxo do atendimento iniciava-se com o encaminhamento de e-mail da pessoa interessada ao cartório, que repassava às informações ao orientador de estágio que organizava as datas, horários de atendimento, corrigia e dava feedback nas petições apresentadas pelos alunos, compilando todo o realizado em um único documento, dando seguimento ao protocolo da petição inicial daquela pessoa fosse protocolada e dando seguimento para o agendamento das audiências de conciliação.

[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnóstico dos Juizados Especiais. Juizados Especiais na Justiça Estadual, p. 59.

[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Índice de acesso à justiça. Brasília, CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/02/Relatorio_Indice-de-Acesso-a-Justica_LIODS_22-2-2021.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.

[4] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Introdução ao Direito Processual Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 10-17.

[5] Idem, p. 16.

[6] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 6-9.

[7] Idem, p. 12-27.

[8] Idem, p. 6-9

[9] SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à justiça: um direito e seus obstáculos. Revista USP, (101), 55-66, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i101p55-66. Acesso em: 02 abr. 2021, p. 60.

[10] Idem, p. 58.

[11] Relatório INAF de 2018 aponta que apenas 12% da população brasileira é proficiente na leitura e que são analfabetos funcionais 29%. ( INAF Brasil 2018: pesquisa gera conhecimento, o conhecimento transforma. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1ez-6jrlrRRUm9JJ3MkwxEUffltjCTEI6/view. Acesso em: 29 fev. 2021.)

[12] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/17270-pnad-continua.html?edicao=27138&t=downloads. Acesso em: 29 out. 2020.

[13] The inclusive Internet: Mapping Progress 2021. Disponível em: https://theinclusiveinternet.eiu.com/explore/countries/performance. Acesso em 15 abr. 2021.

[14] ONU. Declaração universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 20 de jan. 2021.

[15] GROSSI, Márcia Gorett Ribeiro Grossi; COSTA, José Wilson da Costa; SANTOS, Ademir José dos Santos. A exclusão digital: o reflexo da desigualdade social no Brasil. Unesp. Disponível em: http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v24i2.2480. Acesso em: 14 abr. 2021.

[16] SILVA, Romulo Pinheiro Bezerra da; FIGUEIREDO, Patrícia de Camargo. A garantia do acesso democrático à justiça por meio das políticas públicas de inclusão digital. Boletim Jurídico, 2018. Disponível em: https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direitos-humanos/3835/a-garantia-acesso-democratico-justica-meio-politicas-publicas-inclusao-digital. Acesso em: 13 abr. 2021.

[17]  CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números, 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acesso em: 14 abr. 2021.

[18] BRASIL. Lei 14.010 de 10 de junho de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14010.htm#:~:text=Art.,coronav%C3%ADrus%20(Covid%2D19).&text=2%C2%BA%20A%20suspens%C3%A3o%20da%20aplica%C3%A7%C3%A3o,implica%20sua%20revoga%C3%A7%C3%A3o%20ou%20altera%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 13 abr. 2021.

Imagem Ilustrativa do Post: Albert V Bryan Federal District Courthouse – Alexandria Va – 0011 – 2012-03-10 / // Foto de: Tim Evanson // Sem alterações

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O Agravo Em Recurso Extraordinário E O Princípio Da Igualdade Material

No dia 16 de abril deste ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal - STF, Ministro Luiz Fux, proveu agravo em recurso extraordinário nº 1.307.386 entendendo haver repercussão geral sobre a matéria aventada, qual seja, a licitude da divulgação por provedor de aplicações de internet, de conteúdos de processos judiciais - em andamento ou findos – que não tramitem em segredo de justiça, passando o mesmo a ser designado tema 1141:

Ex positis, PROVEJO o agravo para exame do recurso extraordinário e, nos termos do artigo 1.035 do Código de Processo Civil e artigo 323 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, manifesto-me pela EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL SUSCITADA e submeto a matéria à apreciação dos demais Ministros da Corte.

A decisão citada no agravo (ARE 1307386) segue a disciplina do art. 1.042  do Código de Processo Civil, segundo o qual “cabe agravo contra decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal recorrido que inadmitir recurso extraordinário ou recurso especial, salvo quando fundada na aplicação de entendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos”, com redação trazida pela Lei nº 13.256, de 2016. Até aqui, portanto, não houve inovação, uma vez que, ao tratar de recurso interposto contra acórdão proferido em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR, o STF já havia se manifestado, reconhecendo a repercussão geral da matéria constitucional discutida no Recurso Extraordinário (RE 1.293.453)2.

Entretanto, o que atribui caráter estupefaciente, para alguns, à decisão que proveu o agravo para admitir o recurso extraordinário, é o fato de o recurso ter sido interposto pela parte “vencedora” da tese. Inclusive a Terceira Vice-Presidência do Tribunal a quo reconheceu a existência de repercussão geral e negou seguimento ao recurso extraordinário, nos seguintes termos:

O recurso não reúne condições de trânsito. No caso em tela, a parte recorrente resultou vitoriosa no julgamento de causa-piloto de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) no qual restou fixada seguinte tese jurídica: é lícita a divulgação por provedor de aplicações de internet, de conteúdos de processos judiciais (em andamento ou findos) que não tramitem em segredo de justiça, e não existe obrigação jurídica de removê-los. A pretensão deduzida no presente recurso extraordinário é de apreciação do mérito da tese jurídica discutida, viabilizando, assim, que seja firmada uma tese sobre esta temática com alcance sobre todo o território nacional, na forma do art. 985 do Código de Processo Civil. Consideradas as hipóteses estritas versadas no art. 102 da Lei Maior, na esteira da jurisprudência exarada pela Suprema Corte, o pedido não encontra respaldo legal.

Havendo, portanto, repercussão geral e como se demonstrará a seguir, efetivo interesse recursal, uma vez que a parte recorrente intenta o melhor aproveitamento da prestação jurisdicional, o acolhimento do recurso era medida que se impunha.

Primeiramente, cabe-nos definir propriamente o conceito de “recurso” e, para isso, utilizaremos a conceituação proposta por Carolina Uzeda3 em seu livro sobre Interesse Recursal, para quem recurso é

instrumento idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a correção de erro material, esclarecimento, integração, reforma, invalidação e reconhecimento de inexistência - da decisão judicial que se impugna-, o julgamento diretamente pelo tribunal e a formação de precedente vinculante, nas hipóteses previstas em lei.

Deste ponto em diante, analisaremos os requisitos que autorizam a admissibilidade do recurso extraordinário proposto pela parte “vencedora”, com base nesta definição, muito embora o presidente do STF tenha provido o recurso, dentre outras alegações, homenageando o “princípio da eficiência jurisdicional”.

Comumente, quanto aos recursos, faz-se necessário demonstrar o cabimento ou adequação da via eleita, a legitimidade, o interesse, a regularidade formal, a tempestividade, o preparo e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer.

O recurso extraordinário viabiliza a análise de questões constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, III)4. Entretanto, é necessário que sua interposição se dê tempestivamente (art.1003, § 5º)5, dentro do prazo de 15 dias, e ainda, conforme a EC nº 45/2004, em seu parágrafo 3º, o recorrente deve demonstrar a repercussão geral (regulamentada pela Lei n° 11.418/06) da questão a ser debatida, bem como o prequestionamento da questão em instâncias inferiores.

A legitimidade é regida pelo art. 996 do CPC6, que determina:

O recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público, como parte ou como fiscal da ordem jurídica. Parágrafo único. Cumpre ao terceiro demonstrar a possibilidade de a decisão sobre a relação jurídica submetida à apreciação judicial atingir direito de que se afirme titular ou que possa discutir em juízo como substituto processual.

Daniel Assumpção Neves7, a respeito da legitimidade, esclarece que “as partes terão sempre legitimidade para recorrer, independente de terem sido vencidas ou vencedoras na demanda, aspecto que, ao exigir a análise do conteúdo da decisão no caso concreto, diz respeito, quando muito, ao interesse recursal”.

Teresa Arruda Alvimnos aponta que têm legitimidade para recorrer, “as partes, o terceiro ligado indiretamente ao processo e o Ministério público, seja parte ou fiscal da lei”. E, acrescenta, “interesse tem a parte vencida, sucumbente, no todo ou em parte; tem o terceiro efetivamente atingido por decisão proferida em processo alheio (ou seja, prejudicado) e o Ministério Público.”

Como veremos, a sucumbência pode ser formal ou material. Ao caso em estudo, embora não tenha sido a questão observada pelo Ministro Fux, entendemos que se trata de sucumbência material, e por isso nos cabe diferenciá-las.

SUCUMBÊNCIA FORMAL E SUCUMBÊNCIA MATERIAL

Daniel Assumpção Neves define como sucumbência formal a ausência de procedência ou improcedência total dos pedidos, ou seja, “ a frustração da parte em termos processuais, ou seja, a não obtenção por meio da decisão judicial de tudo aquilo que poderia ter processualmente obtido em virtude do pedido formulado ao órgão jurisdicional.”9

Noutro giro, a sucumbência material decorre daquilo que a parte, de fato, deixou de obter no mundo dos fatos.

Neste caso, apesar de uma tese “vencedora”, a parte não obteve tudo aquilo que poderia obter processualmente, que seria a abrangência nacional da tese que lhe aproveitava, gerando insegurança jurídica e desrespeitando o princípio da isonomia. Restou, portanto, nestes termos, sucumbente materialmente.

Não nos parece razoável que uma atuação “x” seja permitida e tida como lícita em determinada região geográfica (Estado), enquanto em outras esta mesma situação possa vir a ser encarada como uma atuação ilícita.

Prudente, como bem salientado pelo Ministro Fux, que, em última instância, essa situação seja uniformizada em todo território nacional, de modo a tratar todos os jurisdicionados de maneira equânime e isonômica.

Vimos, ainda, que a sucumbência autoriza, dentre outros requisitos, a interposição de recurso. Quer seja formal, portanto, mais facilmente perceptível, quer seja, material. A parte será sucumbente e, desse modo, terá legitimidade recursal, toda vez que o provimento de seu recurso possa “trazer alguma utilidade jurídica prática para o recorrente, ou seja, uma situação jurídica objetivamente melhor do que a que ele tinha com a decisão recorrida”10 (utilidade/necessidade). Logo, o interesse é determinado pelo binômio utilidade/necessidade.

Como bem pontua, Gabriela Kazue11:

recursos (especialmente os que se dirigem  aos tribunais de sobreposição) se prestam a uniformizar entendimentos, de modo que situações semelhantes não venham a receber tratamentos discrepantes - o que reduziria a confiança no processo, gerando problema de legitimidade das decisões.

Em mesmo sentido, Carolina Uzeda, nos esclarece que o objetivo principal dos recursos é “qualificar e aperfeiçoar a tutela jurisdicional, entregando à parte tudo quanto for possível, em prol da justiça e da paz social.”12

A ABRANGÊNCIA NACIONAL E A OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Pacificar a sociedade através de uma decisão justa só é possível se todos aqueles que se submeterem ao sistema de justiça forem tratados igualmente. O princípio da igualdade encontra-se inserto no caput do art. 5º da Constituição Federal, mas se materializa (igualdade material, equilíbrio processual) de fato, quando as desigualdades/igualdades concretas são pesadas e avaliadas, de modo a permitir uma atuação que trate de maneira desigual situações desiguais e igual, situações iguais.

 O tratamento isonômico aos jurisdicionados tem como objetivo legitimar a atuação estatal por meio da justiça, uma vez que os cidadãos se submetem ao pacto social unicamente por entenderem que suas regras são justas e aplicadas igualmente para todos, salvo exceções que se justificam pela máxima do ‘tratamento desigual para os desiguais, na medida exata de sua desigualdade.”13 Logo, a isonomia (igualdade material) objetiva a pacificação social e com isso a legitimação do próprio sistema de justiça.

Como vimos, no caso em análise, o agravo em recurso extraordinário (ARE), interposto quando da inadmissibilidade de recurso extraordinário14, que enfrentava o acórdão proferido em IRDR, antes mesmo da abrangência nacional dos seus termos, buscava obter o melhor resultado possível, que não foi alcançado com a decisão proferida.

Como já exposto, a parte recorrente não obteve do processo tudo aquilo que poderia ter obtido e, portanto, sucumbente, não havendo motivos para que, reconhecida a repercussão geral e presentes os demais requisitos (cabimento prequestionamento, tempestividade), fosse inadmitido o recurso extraordinário.

Contudo, superada a decisão que o inadmitiu, o recurso se mostrou representante legítimo de uma situação que enseja apreciação do Tribunal Supremo, de modo que a abrangência da tese que prevaleça possa tratar todos os jurisdicionados brasileiros de maneira isonômica, permitindo, inclusive, que novas ações com identidade subjetiva ou objetiva, em territórios geográficos distintos, não sejam propostas. Parece-nos que se materializa nesta questão, também, o objetivo maior do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que é “evitar a quebra da isonomia e a ofensa à segurança jurídica.”15

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em última análise, a decisão que admitiu o Recurso Extraordinário que se tornou o tema 1141 concretiza não só a potencialidade de tratamento isonômico a questão de interesse nacional, como nos oportuniza a possibilidade de verificarmos a influência da sucumbência material no descortinamento do interesse do recorrente, que em tese saiu vitorioso, na admissão de seu recurso.

O tema 114116 do Supremo Tribunal Federal ainda não foi julgado, mas a decisão que proveu o Agravo em Recurso Extraordinário já é motivo para que o  olhemos com a devida atenção.

Interposto pela União contra decisão que definia a titularidade municipal das receitas produto de arrecadação do imposto sobre a renda incidente na fonte sobre rendimentos pagos a pessoas físicas ou jurídicas, referentes a contratações de bens ou serviços.

UZEDA, Carolina. Interesse Recursal.Salvador: Editora JusPodivm, 2018. pág: 92.

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

a regra principal é a de que o prazo recursal tem início a partir da intimação, conforme as regras dos arts. 231 e 1003 do CPC/ AI 703269, O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar agravo regimental no Agravo de Instrumento 703269, na sessão de 05 de março de 2015, modificou seu entendimento e concluiu, por unanimidade (nove votos, ausente o Min. Celso de Mello), que o recurso interposto antes do início do prazo é tempestivo.

AREsp 991257 , AREsp 753708

Notas e Referências

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Interesse Recursal e Sucumbência. Disponível em http://www.professordanielneves.com.br/assets/uploads/novidades/201011151803

310.interesseemrecorrer.pdf . Acesso em : 25/04/2021.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Comentários ao art. 996. In: Comentários ao novo Código de Processo Civil/coords. Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer. - 2ª ed.rev.,atual. e ampl.- Rio de Janeiro:  Forense, 2016. págs: 1493-1494.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Interesse Recursal e Sucumbência. Disponível em http://www.professordanielneves.com.br/assets/uploads/novidades/201011151803

310.interesseemrecorrer.pdf . Acesso em : 25/04/2021.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Interesse Recursal e Sucumbência. Disponível em http://www.professordanielneves.com.br/assets/uploads/novidades/201011151803

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FRANCISCO, Gabriela Kazue Ferreira Eberhardt. Comentários ao art. 994. In: Código de processo civil; anotado e comentado/ coords. Luís Antônio Giampaulo Sarro, Luiz Henrique Volpe Camargo, Paulo Henrique dos Santos Lucon. 1 ed. São Paulo: Rideel, 2020.págs: 747-748.

UZEDA, Carolina. Interesse Recursal.Salvador: Editora JusPodivm, 2018. pág: 93.

NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. pág.42.

Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, II, IX, XIV, XXXIII, XXXVI e LX, 37, 93, IX, e 220 da Constituição Federal, a licitude da divulgação por provedor de aplicações de internet de conteúdos de processos judiciais, em andamento ou findos, que não tramitem em segredo de justiça, e nem exista obrigação jurídica de removê-los, de modo ampliar a abrangência territorial de tese firmada por tribunal estadual em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR).

GAIO JR, Antonio Pereira e Mello, Cleyson de Moraes. Novo CPC comentado: lei 13.105, de 16 de março de 2015. Belo Horizonte: Del Rey, 2016. pág.684

Até o presente momento (05/05/2020) acompanham o Ministro Relator, pela existência de Repercussão geral , os Ministros  Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, divergindo apenas o MIN. MARCO AURÉLIO.

Aspectos Constitucionais Do Artigo 16 Da Lei 7.347/85[I]

Retomou-se, recentemente, a discussão acerca do art. 16, Lei 7.347/85, em razão do reconhecimento da repercussão geral do Recurso Extraordinário 1.101.937[ii], tema n. 1.075, com a seguinte questão a ser resolvida: “constitucionalidade do art.16 da Lei 7.347/1985, segundo o qual a sentença na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator”.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, após mudanças de entendimento ao longo dos anos, a tese de inaplicabilidade do referido dispositivo às ações coletivas já havia sido sedimentada, quando do julgamento pela sua Corte Especial do ERESP 1.134.957/SP e dos Recursos Especiais 1.349.188/RJ e 1.315.822/RJ[iii], bem como no Recurso Especial 1.243.887/PR.

A controvérsia envolvendo o art. 16, muito embora faça menção a limites territoriais da coisa julgada, diz respeito, em verdade, à eficácia subjetiva da decisão[iv], isto é, busca-se limitar, tendo o lugar como critério, quem sentirá os seus efeitos.

Ocorre que, por razões fáticas e lógicas, devem sentir os efeitos da decisão, seja em processo coletivo ou individual, todos aqueles que, de algum modo, estão vinculados ao seu objeto, o que se dá de forma direta ou indireta[v]. É dizer, a eficácia da sentença é limitada subjetiva e objetivamente pelo que foi decidido[vi].

Os efeitos nacionais, regionais ou locais da decisão são consequência lógica do caráter/extensão nacional, regional ou local das relações jurídicas sobre as quais o processo incide.

Por sua vez, a coisa julgada é o efeito jurídico[vii]-[viii] que torna imutável e indiscutível uma decisão judicial, quando presentes os seguintes pressupostos de fato: (i) decisão jurisdicional calcada em cognição exauriente; e (ii) seu trânsito em julgado (art. 502, CPC)[ix].

Uma vez formada, tem-se a produção de dois efeitos principais: (i) impede que uma determinada questão seja decidida novamente; e (ii) se a questão for posta em outro processo, como fundamento da demanda, deve-se aplicar a solução alcançada anteriormente. Esses dois efeitos são aplicáveis independentemente da competência territorial do órgão julgador e, no caso do processo coletivo, regula-se pelo disposto no art. 103, Código de Defesa do Consumidor. Também por esse viés a limitação pretendida no dispositivo não se mostra possível.

Dessa breve análise, já se extrai o primeiro aspecto constitucional relativo à questão ora em análise: a inexistência de discussão que envolva violação direta à Constituição[x]-[xi].

Tem-se aí hipótese de questão infraconstitucional, pois voltada a estabelecer a aplicação/interpretação de um dispositivo legal e, em assim sendo, o seu exame, em julgamento de Recurso Extraordinário, constitui uma extrapolação de competência pelo Supremo Tribunal Federal, que, inclusive, já havia firmado posicionamento nesse sentido (tema 715 e reiterados julgados na mesma linha). Era também esse o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, conforme julgados anteriormente citados.

Ora, perceptível, na hipótese, que a discussão posta impõe, necessariamente, a interpretação de um dispositivo infraconstitucional para que se configure a alegada violação à Constituição, o que resulta na conclusão de ocorrência de mera violação reflexa, impeditiva do conhecimento do recurso[xii]

Nada obstante, a análise das normas constitucionais violadas pela atual redação do art. 16, Lei 7.347/85, ainda que reflexamente, mostra-se de suma importância, sobretudo para a compreensão dos efeitos deletérios gerados pela limitação territorial da eficácia da decisão, por critério alheio ao objeto do processo.

Pela perspectiva processual, é necessário destacar três direitos constitucionalmente garantidos que são especialmente afetados: acesso à justiça, igualdade e segurança jurídica.

O conteúdo do acesso à justiça deve ser lido, inicialmente, a partir do art. 5º XXXV, CRFB[xiii], que garante a universalização do acesso à jurisdição[xiv]. Para sua concretização, no entanto, são necessários direitos outros, sob pena de essa universalização não ocorrer de fato[xv].

Conforme bem aponta Virgílio Afonso da Silva, a amplitude do acesso à justiça para ser bem compreendida precisa abranger três momentos, sendo eles o que antecede a chegada ao judiciário, o processo decisório judicial e, por fim, os efeitos das decisões, concebidos como em um processo de retroalimentação contínua[xvi].

No contexto das ações coletivas, o art. 16, Lei 7.347/85, com a limitação por ele imposta, afeta negativamente os três momentos: primeiro, impõe que se busque a entrada inúmeras vezes, pois necessárias demandas em localidades diversas; segundo, ao provocar o aumento quantitativo das ações, na medida em que um problema que seria resolvido com uma ação apenas necessitará de uma multiplicidade delas, sobrecarrega-se o já sobrecarregado sistema de justiça, afetando o tempo de tramitação dos processos, sem alcance de sua duração razoável; e terceiro (e mais evidente), limita o alcance dos efeitos da decisão a sujeitos que estão em idêntica posição perante o ordenamento jurídico em termos de direito.

O conteúdo do acesso à justiça, no processo coletivo, portanto, ganha contornos especiais, dada a quantidade de sujeitos potencialmente atingidos com um único processo, que se reflete, de outro lado, na quantidade daqueles não atingidos caso se entendesse pela possibilidade de limitação da eficácia subjetiva da decisão pelo critério territorial.

A título de exemplo, imagine-se que determinado legitimado coletivo ajuíze ação civil pública contra ato de uma agência reguladora nacional para ampliar o acesso de um grupo a um certo serviço. A tutela de urgência inicialmente pleiteada é deferida, de modo que, em tese, todos os membros do grupo poderiam ter acesso à ampliação do serviço. Todavia, se aplicada a limitação territorial da eficácia da decisão, como pretendido pelo art. 16, Lei 7.347/85, em sua literalidade, somente os membros do grupo residentes no âmbito de abrangência da comarca seriam beneficiados; todos os outros, não. Como explicar, então, a partir da análise do objeto do processo, a distinção de acesso à justiça apenas pela separação espacial por quilômetros? A pergunta é retórica; a resposta, negativa.

A partir do exemplo dado, fica nítida a violação que se opera, também, ao princípio igualdade, que, frise-se, tem papel destacado nos direitos fundamentais previstos na Constituição[xvii]. A incidência da igualdade impõe não se faça desequiparações não fundamentadas (ou fundamentadas em critérios ilegítimos) nem se promova a hierarquização de indivíduos[xviii]. Todavia, a limitação do alcance da decisão à parte de membros do grupo provoca um cenário, no qual pessoas em igual situação têm tratamento jurídico distinto, no acesso aos seus direitos, muitos deles com assento constitucional, como se apontará adiante.

Provoca-se, portanto, diferença nos tratamentos processual e substancial dados aos membros de um mesmo grupo sem que haja fundamento legítimo para a distinção promovida, gerando sentimento de injustiça e inefetividade da norma constitucional.

Nesse contexto, vislumbra-se a ampliação das desigualdades sociais, que já assolam o país, seja porque membros de um mesmo grupo vão ter tratamentos distintos a depender do local, seja porque grupos distintos vão ter o acesso à justiça em níveis distintos de facilidade. O princípio da igualdade já encontra grandes dificuldades à sua efetivação, de modo que não se revela admissível a interpretação de instrumentos que confira maiores entraves a essa concretização, retirando-lhe ou diminuindo-lhe a efetividade vagarosamente conquistada[xix].

Provoca-se, ainda, insegurança jurídica, que vale tanto para a coletividade a ser tutelada, quanto para o demandado, uma vez que ficaria sujeito a decisões distintas, contraditórias, impondo-lhe tratamentos diversos a depender do local em que esteja.

Sobre o princípio da segurança jurídica, Humberto Ávila esclarece se tratar de norma que exige dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a adoção de comportamentos voltados a garantir confiabilidade e calculabilidade jurídica, com base na sua cognoscibilidade[xx]. Constitui-se, assim, como instrumento que permite aos sujeitos “plasmar digna e responsavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do seu futuro”[xxi].

Dessa forma, fica claro que a necessidade de ajuizamento de múltiplas ações coletivas com o mesmo objeto, na intenção de garantir que todos os membros de um grupo o acesso a determinado direito, vai na contramão de qualquer garantia de confiabilidade, na medida em que se abre o leque para decisões distintas sobre a mesma questão. E isso, como dito, afeta o planejamento estratégico juridicamente informado tanto do polo ativo quanto do polo passivo da demanda.

Veja-se, a título de exemplo, o caso citado na Nota Técnica 01/2020 -PRESI do Conselho Nacional do Ministério Público apresentada no bojo do Recurso Extraordinário 1.101.937 (tema 1.075 da Repercussão Geral) a respeito dos critérios de pagamento do benefício de prestação continuada. Noticiou-se que foram ajuizadas 54 ações contra o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS com esse objeto, resultando, pelas decisões distintas, na existência de pessoas que não têm direito ao benefício apenas pelo fato de residirem em determinado município, sendo que há outras, na exata mesma situação (salvo pelo local de residência), que recebem o valor. Ademais, em razão disso, a União e o INSS restam obrigados a adotar critérios distintos na concessão do benefício, o que afeta, inclusive, a eficiência da prestação do serviço público.

O próprio processo coletivo tem amparo constitucional, a impor lhe seja dado tratamento adequado, para garantia de sua máxima efetividade, o que perpassa pela elaboração e interpretação das normas infraconstitucionais que o regulamentam.

A esse respeito, o Procurador-Geral da República, em manifestação no já citado Recurso Extraordinário 1.101.937, defendeu, corretamente, que a interpretação do conjunto de garantias constitucionais processuais “aponta para a existência de um direito fundamental à tutela jurisdicional coletiva adequada, compreendida essa como a que (i) facilite o amplo acesso à Justiça (art. 5º, XXXV); (ii) favoreça a efetiva e eficaz entrega da prestação jurisdicional (arts. 5º, LXXVIII, 37, caput, 127, caput, e 129, caput e III); (iii) dê tratamento isonômico aos jurisdicionados (art. 5º, caput); e (iv) proteja a vulnerabilidade dos detentores do direito coletivo reivindicado (art. 5º, XXXII, XXXV e XXXVI)”.

Pela perspectiva do direito material, são incontáveis os direitos constitucionalmente protegidos que são potencialmente atingidos, pois não adequadamente tutelados: meio ambiente, patrimônio público e social, direitos indígenas e demais comunidades tradicionais, direitos do consumidor, saúde, educação, direitos das pessoas com deficiência. Relativamente a estes últimos, dá-se especial destaque para as normas da Convenção Internacional sobre os direitos da pessoa com deficiência, incorporada com status constitucional, mas que configuram, também, compromisso do Brasil no plano internacional, com todas as consequências daí decorrentes.

Imagine-se, por hipótese, a ocorrência de dano ambiental cuja extensão territorial alcance municípios afetos a seções/subseções ou comarcas distintas, conforme se trate de competência federal ou estadual. A limitação pretendida pela redação literal acabaria por permitir a ocorrência de decisões contraditórias, em que a parcela do dano verificada em determinada localidade seria reparada e a outra, por questões territoriais, não. O exemplo é simples, mas serve muito claramente a demonstrar a inviabilidade da manutenção do art. 16, Lei 7.347/85, nos termos em que posto pelo legislador.

Resta, portanto, inconteste que, mesmo reflexamente, a tentativa de limitação subjetiva da eficácia da decisão, por critério alheio ao objeto do processo, apenas por localização territorial, para além de violar normas constitucionais processuais, afeta, porque impede a tutela adequada, a concretização de normas constitucionais substanciais, nas mais diversas matérias. Afeta, pois, todos os membros de todos os grupos potencialmente protegidos pela tutela coletiva; afeta a todos.

Notas e Referências

[i] Texto-base da apresentação no webinar “O artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública: aspectos jurídicos e interdisciplinares”, promovido pela Escola Superior do Ministério Público da União, em 17/03/2021.

[ii] No momento do envio deste artigo para a publicação, o julgamento ainda não havia sido concluído, estando em curso o julgamento no plenário virtual, embora já formada maioria para acolhimento da tese pela inconstitucionalidade proposta pelo Relator Ministro Alexandre de Moraes; vejamos a transcrição da decisão: “I - É inconstitucional o art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494/1997. II - Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990. Sendo regional o alcance, serão competentes os foros ou circunscrições de capitais do Estado ou do Distrito Federal, desde que inseridos na região em que se projetem os efeitos da decisão; sendo nacional o alcance, será concorrente a competência entre as capitais de Estado e o Distrito Federal. III - Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas”, no que foi acompanhado pelos Ministros Cármen Lúcia, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski; do voto do Ministro Nunes Marques, que declarava a inconstitucionalidade da expressão “nos limites da competência territorial do órgão prolator (...)” constante do art. 16, LACP, e negava provimento aos recursos extraordinários; e do voto do Ministro Edson Fachin, que acompanhava o Relator para negar provimento aos recursos extraordinários, mas dele divergia quanto aos itens 2 e 3 da tese de repercussão geral, pediu vista dos autos o Ministro Gilmar Mendes. Afirmou suspeição o Ministro Roberto Barroso. Ausentes, justificadamente, o Ministro Marco Aurélio e, impedido, o Ministro Dias Toffoli. Presidência do Ministro Luiz Fux. Plenário, 04.03.2021 (Sessão realizada por videoconferência - Resolução 672/2020/STF)”.

[iii] Conferir apanhado cronológico dos julgados do Superior Tribunal de Justiça a respeito da questão em: DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. v. 04, 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 449/451.

[iv] Idem, p. 442.

[v] ARENHART, Sérgio Cruz. O tema 1.075, do STF, e os limites territoriais da coisa julgada coletiva. Disponível em: << https://www.migalhas.com.br/depeso/340811/o-tema-1-075-e-os-limites-territoriais-da-coisa-julgada-coletiva>> Acesso em 28/03/2021.

[vi] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. cit., p. 444.

[vii] DIDIER JR., Fredie, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. BRAGA, Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. ed. 10. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 513. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Eficácia da sentença e autoridade de coisa julgada. Revista brasileira de direito processual. v. 32. 2º bimestre de 1982, p. 48.

[viii] São inúmeras as teorias que buscam determinar a natureza jurídica da coisa julgada, de modo que o aprofundamento a respeito delas foge aos limites deste trabalho. Uma sistematização do tema pode ser conferida em: CABRAL, Antonio do Passo. Coisa Julgada e Preclusões Dinâmicas: ente continuidade, mudança e transição de posições jurídicas processuais estáveis. Salvador: JusPodivm, 2013, p 61 e seguintes.

[ix] DIDIER JR., Fredie, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. BRAGA, Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil. v2. cit., p. 513.

[x] Nesse sentido, têm-se o memorial do Ministério Público do Estado de São Paulo e a Nota Técnica 01/2020 – PRESI do Conselho Nacional do Ministério Público apresentados no bojo do Recurso Extraordinário 1.101.937.

[xi] Em sentido contrário, entendendo se tratar de questão constitucional: ALVIM, Teresa Arruda; e CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins. Razão e sensibilidade - ainda o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública. Disponível: << https://www.migalhas.com.br/coluna/questao-de-direito/337838/razao-e-sensibilidade---ainda-o-art--16-da-lei-de-acao-civil-publica >>. Acesso em 28/03/2021.

[xii] “Há direta ou frontal contrariedade quando se alega violação à Constituição aferível sem a necessidade de interpretação de outro ou outros dispositivos infraconstitucionais. Consequentemente, há contrariedade indireta ou reflexa quando a alegação de violação à Constituição exige para sua configuração o exame de outro ou outros dispositivos infraconstitucionais”. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Recurso extraordinário e recurso especial: do jus litigatoris ao jus constitutionis. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 123.

[xiii] Art. 5º. XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

[xiv] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021, p. 247.

[xv] Idem, p. 249.

[xvi] Idem, ibidem.

[xvii] Idem, p. 131.

[xviii] BARROSO, Luís Roberto; e OSÓRIO, Aline Rezende Peres. “Sabe com quem está falando?”: algumas notas sobre o princípio da igualdade no Brasil contemporâneo. Disponível em: <<http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/09/SELA_Yale_palestra_igualdade_versao_fina.pdf>>. Acesso em: 28/03/2021.

[xix] “Em vários momentos deste livro, a distância entre o texto constitucional e a realidade foi enfatizada. Embora essa não seja uma peculiaridade do constitucionalismo brasileiro, é mesmo assim possível afirmar que, no Brasil, essa distância poderia ser muito menor do que de fato é. A proteção da igualdade é um desses casos. Talvez não haja nenhum outro âmbito em que essa dinâmica seja tão evidente e produza efeitos negativos tão duradouros quanto no da realização da igualdade prevista na Constituição.” SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. cit., p. 131.

[xx] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p.274.

[xxi] Idem, ibidem.

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