All Stories

A inteligência artificial em apoio ao sistema de justiça: Projeto Mandamus.

Desde 2018, com o desenvolvimento do Projeto Victor, a discussão sobre aplicação da inteligência artificial ao Direito vem ganhando espaço no cenário brasileiro. Argumentos contrários e favoráveis permeiam os debates de juristas que se debruçam em examinar as consequências da introdução de novas ferramentas no sistema de justiça brasileiro.

O processo jurisdicional passa a conter novos elementos que buscam otimizar o trabalho dos servidores diminuindo ou acabando com o tempo morto do processo, assim como agregando novas unidades de trabalho.

Nesse sentido, não é suficiente pensar o processo jurisdicional com a visão conservadora e privatista que sempre existiu. Ao lado da introdução de novas tecnologias, o processo e o judiciário ganharam outra roupagem com o CPC/15. Hoje, o ideal é que uma decisão proferida pelas altas Cortes brasileiras seja replicada pelos demais órgãos judiciais e administrativos, formando uma cadeia argumentativa convergente capaz de trazer mais isonomia e previsibilidade aos jurisdicionados. Essa cadeia argumentativa deve possuir um tempo razoável e, para tanto, o judiciário vem investindo em tecnologia para aperfeiçoar e apoiar a prestação da tutela jurisdicional. 

Ao lado dessa visão aberta é preciso incorporar, em seus conceitos, definições e natureza jurídica, elementos como vulnerabilidade digital, acesso às Cortes e atuação universalizável da decisão.

A inteligência artificial vem contribuindo muito para a aproximação da tecnologia ao Direito. E as mudanças são surpreendentes! O que dizer sobre a exponencial exposição que tem-se sobre informações (dados) que podem significar encaminhamentos estratégicos em atividades profissionais. Uma pesquisa em desenvolvimento, no MIT-CSAIL, mostra um inovador sistema de ativação de cores e atualização de imagens em superfícies de objetos pode revolucionar todo um sistema "estável" de designs de objetos de nosso dia-a-dia, com potencial para torná-los - assim como nossas telas de computador, smartphones - objetos fornecedores de informações permanentemente atualizáveis (como uma caneca de chá ou café), que pode apresentar em sua superfície nossa agenda de compromissos, notícias profissionais relevantes, processos de notificações ou redes profissionais/sociais. E o ChromoUpdate é apenas um exemplo do que indica que a era da inteligência artificial propõe em relação a novos paradigmas e desafios.

Este processo de ressignificação de estruturas tradicionais de recebimento de dados, associado à fluidez nos tempos atuais, apresenta novas demandas de velocidade. A construção, comunicação e ajuste da decisão ao tempo em determinada sociedade é um destes processos impactados e fator de profundo estresse e desafios. Neste contexto, há um papel muito interessante da tecnologia, no sentido de incrementar as capacidades humanas, ampliando sua percepção, atenção ao detalhamento, robustez, coerência, agilidade, entre outras.

A reflexão aqui exposta pretende apresentar alguns elementos para contribuir para este debate, pois a ideia de volatilidade, incerteza e especialmente insegurança e instabilidade estão na base das maiores preocupações sobre a inter-relação do Direito com a tecnologia. Por outro lado, a tecnologia também se perfila como instrumento de apoio, de racionalidade sistêmica e de estabilidade coerente.

Nesses último anos, as pesquisas e o desenvolvimento de ferramentas de IA para o Judiciário realizados por diferentes patrocinadores confirma a necessidade de revisão de conceitos clássicos ao processo e traduz concretamente o apoio ao desenvolvimento comportamental. Entre os projetos que demonstram essa necessidade de revisão destacam-se: a) Projeto Victor (STF), b) Projeto Mandamus (TJ/RR), c) Projeto COnFIA (certificação ética em IA), d) Projeto JuLIA-IA  na logística jurisdicional, e) Projeto PNUD/CNJ/UnB (IA aplicada a precedentes), f) Projeto PG/DF ( IA aplicada à execução fiscal), g) Projeto JF/DF (IA aplicada a precedentes para JF do DF), h) Projeto Sabiá  (IA aplicada a precedentes para TST) , i) FAP/DF - Projeto Centro de Inteligência Artificial do DF. Todos esses projetos foram ou estão ocorrendo em parceria com o laboratório DR.IA da Universidade de Brasília.

Especificamente, o projeto de pesquisa e desenvolvimento denominado Mandamus busca aplicação de machine learning em dataset formado por dados de processo judicial, constituindo apoio à prestação jurisdicional.1

No Mandamus, a aplicação de machine learning foi utilizada para aprimorar a comunicação dos atos processuais via mandados, atuando diretamente nas varas e na central de mandados do TJRR. O projeto buscou fazer um apoio na identificação de mandados, estruturação de formatos considerados adequados pelo Tribunal e a distribuição das intimações mais recorrentes dos processos para o cumprimento da diligência prevista no mandado, com ganho de eficiência e em associação a um sistema de localização do agente e da pessoa que vai receber o mandado.

Esse projeto surgiu da identificação do tempo consumido nos fluxos de processamento do processo judicial, que dificulta a concretização de compromissos na administração da prestação jurisdicional. Mandados sem cumprimento, mandados com cumprimento equivocado, muito trabalho para a produção do mandado e muito tempo consumido nestes procedimentos acabavam por dificultar a rotina e a gestão das varas e do Tribunal no cumprimento de suas respectivas metas e compromissos.

O Mandamus foi desenvolvido para processamento e classificação de textos processuais e informações, podendo ser enquadrado como um classificador complexo para apoiar a execução do mandado e, com isso, contribui para a estruturação de dados2 judiciais, a identificação de padrões, a otimização do tempo de cumprimento (agilidade), a eficiência no cumprimento (qualidade de documentos/certidões) e aprimoramento dos recursos humanos envolvidos (estratégia para recursos humanos).

O projeto Mandamus, a partir do tagueamento de decisões e mandados do banco de dados disponibilizado pelo TJRR, permite associar tipos de decisão geradora de mandado a documentos construídos a partir de templates e referenciais estabelecidos e validados pelo próprio tribunal. Desta forma, o robô de geração de mandado atua sobre dados textuais de decisões jurisdicionais, identificando e associando as classes prioritárias definidas por critério de frequência e oportunidade. Os mandados gerados integram a central e o robô de distribuição, que a partir de outros referenciais estabelecidos ao corpo de oficiais e respectiva geolocalização, otimizam e auxiliam o cumprimento.

Na busca de um equilíbrio entre o potencial de velocidade de ações dado pela inteligência artificial com a estabilidade, coerência e compromissos axiológicos do sistema de justiça, o foco de interesse das investigações e desenvolvimento realizados pelo Laboratório de pesquisa DR.IA da UnB, foi a perspectiva de otimização e apoio impactada pelo contexto de aperfeiçoamento da compreensão de racionalidade sistêmica e pelas possibilidades de enfrentamento de grandes desafios sistêmicos postos.

Esta é a linha de pensamento que se desenvolve no DR.IA, um laboratório de aplicação, a partir do grupo de pesquisa e constitui um ambiente de investigações e aplicações de inteligência artificial voltada ao Direito. Inspirado nas redes neurais concebidas por McCullock e Pitts (1943) e reconcebidas por Fukushima (1975) ao estabelecer com a ideia de pesquisas, projetos, produtos e cursos em redes e interconexões, agrupando conhecimentos em formatos de multicamadas com a proposta de melhorar continuamente.

_____

1 Para maiores informações sobre o projeto consultar aqui e aqui.

2 Uma ideia da complexidade do sistema de governança de dados e das possibilidades especialmente em face da LGPD foi abordado no artigo Governança de dados aplicada a Big Data analytics (CARVALHO, et al., 2020).

3 ACKERMAN, Dan. With a zap light, system switche object's colors and patterns. Reportagem CSAIL-MIT. Disponível aqui.

4 BONAT, Debora; HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. Inteligência Artificial e Precedentes Coleção Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial. 1 ed. v. 3. Curitiba: ed. Alteridade, 2020. ISBN 978-65-991155-0-9.

5 DEZAN, Matheus Lopes; HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. Soluções de inteligência artificial como forma de ampliar a segurança jurídica das decisões jurídicas. Revista Democracia Digital e Governo Eletrônico, v. 1, n. 18, 2019. Disponível aqui.

6 HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. Inteligência Artificial e Direito: convergência ética e estratégica. Coleção Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial. 1.ed. v. 5. 2020. Curitiba: ed. Alteridade. ISBN 978-65-990587-2-1.

7 LAGE, Fernanda de Carvalho; HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. A Inteligência Artificial nos Tribunais brasileiros: princípios éticos para o uso de IA nos sistemas judiciais. In: GUEDES, Jefferson Carús; PINTO, Henrique Alves; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira. Inteligência artificial aplicada ao processo de tomada de decisões. 1.ed. Belo Horizonte, São Paulo: Editora D'Plácido, 2020. ISBN 9786555890945

8 MOZETIC, Vinícius Almada. Os sistemas jurídicos inteligentes e o caminho perigoso até a teoria da argumentação de Robert Alexy. Revista Brasileira de Direito, IMED, v. 3, n. 3, 2017. Disponível aqui.

SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. A inteligência artificial aplicada à criação de uma central de jurisprudência administrativa: o uso das novas tecnologias no âmbito da gestão de informações sobre precedentes em matéria administrativa. Revista do Direito UNISC, v. 3, n. 50, 2020. Disponível aqui.

10 ZHONG, Haoxi et al. How Does NLP Benefit Legal System: A Summary of Legal Artificial Intelligence. Disponível aqui.

O provérbio hindu e o PL 6204/2019: Novos caminhos para a execução

"Há vários caminhos até a montanha". A expressão, oriunda de um provérbio hindu, lembra-nos que o mesmo objetivo pode ser alcançado de várias formas e por diversos caminhos1. Diz o provérbio que "o único que perde tempo é aquele que corre ao redor da montanha, apontando a todos que o caminho deste ou desta pessoa é errado".

É exatamente o que ocorre com a desjudicialização da execução civil (PL 6204/2019). Por que, em vez de sermos refratários a esta inovação, não a consideramos como um marco que nos convida a pensar em outros caminhos (portas) para a execução?

Nosso sistema convive com modelos executivos extrajudiciais e desjurisdicionalizados desde a década de 60. Assim ocorreu com a recuperação de créditos ou de imóveis vendidos sob a égide do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) por meio da lei 4.380/1964. Como a própria estrutura do SFH planejava a reinserção do capital financiado, gerando novas operações de financiamento e novos empreendimentos imobiliários, em 21 de novembro de 1966, foi publicado o decreto-lei (DL) 70, criando um procedimento extrajudicial de recuperação de créditos2. De acordo com os artigos 31 e 32 dessa norma, não havendo o pagamento da dívida hipotecária, no todo ou em parte, ficaria a critério do credor comunicar os fatos ao agente fiduciário, solicitando a execução da dívida; permanecendo a inadimplência, esse agente privado poderia promover, de forma autônoma e sem qualquer intervenção judicial, o leilão do imóvel hipotecado3.

Três anos depois, o decreto-lei 911/1969 alterou o artigo 66 da lei 4.728/1965, fazendo constar expressamente, no § 4.º desse dispositivo, que, no caso de inadimplência de obrigações contratuais garantidas por alienação fiduciária de bens imóveis, o proprietário fiduciário poderia vender a coisa a terceiros e aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da cobrança, entregando ao devedor o saldo porventura apurado, se houver.

Há mais de 50 anos, portanto, o ordenamento jurídico brasileiro já previa a possibilidade de venda de imóvel em razão de dívida contratual, sem qualquer intervenção judicial ou extrajudicial, por iniciativa única e exclusiva do credor, como forma de desafogar o Poder Judiciário, dar maior celeridade ao procedimento e segurança jurídica aos contratos firmados mediante alienação fiduciária.

A partir daí, há vários outros exemplos. Quinze anos depois, a lei 6.766/1979, que regula loteamentos e parcelamentos de terrenos urbanos - mais tarde alterada pela lei 13.786/2018 -, veio a permitir que, caso o devedor não pague as prestações, seja constituído em mora e tenha a averbação do loteamento cancelada (art. 32 e parágrafos), procedimento feito todo mediante o cartório de registro de imóveis, sem qualquer intervenção judicial. Em 1997, a Lei n.º 9.514 previu o procedimento extrajudicial de execução, ao dispor acerca da alienação fiduciária de imóvel, permitindo a constituição do devedor em mora e a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, sem a instauração do contraditório entre as partes. Portanto, há a transferência da propriedade do bem, feita diretamente pelo cartório de registro de imóveis, sem qualquer interferência ou análise do Poder Judiciário.

Em movimentos mais recentes sobre a desjudicialização de atos para os cartórios brasileiros, pode-se citar a lei 10.931/2004, que trata da retificação do registro imobiliário. Apontam-se ainda: lei 11.441/2007, que alterou dispositivos da lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa; lei 13.484/2017, que alterou a lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos, permitindo a retificação de registro civil; CPC/2015, que institui o usucapião extrajudicial no seu artigo 1.071, alterando o Capítulo III do Título V da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos).

Assim, é possível perceber como a proposta de desjudicialização contida no PL 6.204/2019, para além de constituir uma novidade, apresenta-se como um novo e relevante passo nesse movimento de "extrajudicialização" de atos como forma de aprimorar a atividade jurisdicional.

O sistema multiportas iniciou-se com os olhos voltados para a fase cognitiva do processo, na qual o jurisdicionado opta pelo meio mais adequado de resolução do seu problema, conforme as peculiaridades do caso concreto. Na estrutura da Multi-Door Courthouse, há uma forma de solução adequada para cada situação. Deve-se, portanto, dar um passo a mais e levar o sistema multiportas para a fase de satisfação do direito - a fase executiva -, conjugando-se o tradicional meio do processo estatal, com os demais mecanismos predispostos pelo ordenamento jurídico, para adequar-se às diferentes formas e especificidades da pretensão executiva, admitindo-se a coexistência de outras portas além de estatal: a descentralização, a desjudicialização e a desjurisdicionalização.

Por que não se permitir uma abertura para a livre iniciativa4, por meio da participação de agentes de execução privados, como incentivo à livre concorrência? O agente de execução poderia ser tanto público quanto privado, de livre nomeação pelas partes, por convenção processual, ou nomeado pelo juiz,  podendo praticar todos os atos executivos que não estivessem atribuídos às serventias judiciárias ou que não fossem de competência exclusiva do juiz.

Enfim, pode-se admitir que os atos executivos sejam realizados por agentes do próprio Estado (oficiais de justiça), por aqueles vinculados ao Poder Público por delegação (tabeliães de notas), ou mesmo por agentes privados sem qualquer ligação com o sistema estatal de justiça.

Mas ainda há outras portas a serem abertas.

Os negócios jurídicos processuais na execução também podem ser explorados no âmbito da extrajudicialização de atos, com a possibilidade das partes definirem quem desempenhará a função de agente de execução. Pode-se conjecturar a realização de convenções ou negócios jurídicos para que seja permitido às partes escolher quem figurará na condição de agente de execução, se um agente privado, público ou misto. Ora, se ao credor é dada a possibilidade de desistir da totalidade do seu crédito e da execução já ajuizada, sem precisar, via de regra, nem sequer da oitiva do devedor, pode-se admitir que as partes optem pelo agente responsável pelos atos executivos que lhes pareça mais adequado, por questões de custo, de eficiência, de proximidade geográfica etc., à semelhança do que já acontece em outros países5.

E nem se trataria de uma novidade.

Além de já termos exemplos em nosso sistema (DL 911/1969, lei 9.514/1997 e DL 70/1966), a ideia não é nova, tem seu embrião na própria Lei de Arbitragem6. Afinal, se o ordenamento jurídico brasileiro já admite a possibilidade de as partes escolherem um terceiro para conduzir totalmente o processo de conhecimento e proferir decisão de mérito, equiparável à decisão judicial, por que não se permitir ao exequente a escolha do agente de execução?

É interessante lembrar que o Grupo de Trabalho, instituído pela Portaria 272/2020, do Conselho Nacional de Justiça, para diagnosticar e apresentar medidas voltadas para a efetividade da execução, no seu relatório final, concluído em 20227, recomendou procedimentos de execução mais eficientes e sistemas com base de dados integrados, que permitam uma melhor busca e localização de bens e recuperação de ativos de devedores.

Por que, então, não se dar mais um passo e admitir, também, a possibilidade da implementação de novas ferramentas tecnológicas que transfiram para os sistemas automatizados ou mesmo de inteligência artificial a responsabilidade pela prática dos atos executivos?

Nesse sentido, destaca-se os avanços já feitos nas relações negociais que utilizam as inovações tecnológicas como forma de efetivação material de direitos e praticam atos de execução e invasão patrimonial, como os smart contracts ou "contratos inteligentes". Tais "protocolos de transação computadorizada" executam os termos de um contrato (possuem autoexecutoriedade), inclusive a cláusula penal, por meio de um código de programação que é inserido em uma plataforma chamada Ethereum. Desse modo, todos os atos necessários para a implementação e a execução das cláusulas contratuais são realizados de forma automatizada via blockchain8.

As inovações decorrentes dos smart contracts podem ser uma outra porta, no sistema multiportas de execução, inclusive com a possibilidade de reformular todo o sistema legal executivo9. A automatização e a transferência da competência dos atos executivos para uma ferramenta tecnológica tornam o inadimplemento contratual muito mais custoso para as partes, na medida em que, em vez de se discutir o descumprimento de uma obrigação, elas serão obrigadas a buscar a reversão de transações que já foram finalizadas10.

Enfim, o PL 6204/2019 deve ser visto não como a única via de extrajudicialização dos atos executivos, mas como um marco para a coexistência de várias outras formas de extrajudicialização dos atos executivos, até mesmo com a possibilidade de o agente de execução ser uma ferramenta tecnológica, segura, transparente e automatizada.

Em suma, devemos abrir outras portas para a execução - um sistema multiportas de execução amplo-, não apenas com a extrajudicialização de atos por agentes físicos (judiciais, extrajudiciais e privados), mas também com o uso de ferramentas tecnológicas. Afinal, "há vários caminhos até a montanha"11.

__________

1 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022.

2 CETRARO, José Antonio. A execução extrajudicial no SFH: do Decreto-Lei 70/66 à Lei 9.514/97. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 41, n. 84, jan./jun. 2018, p. 428.

3 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022.

4 ANDRADE, Juliana Melazzi; CABRAL, Antonio do Passo; PARIZIO, André; DUARTE, Larissa Carrasqueira; BOISSON, Eduarda. Anteprojeto de lei. Atribuição da prática de atos executivos para agentes de execução no cumprimento de sentença ou no processo de execução. Proposta de alterações ao Código de Processo Civil e à Lei de Execuções Fiscais. Civil Procedure Review, [s.l.], v. 12, n. 1, p. 207-234, jan./abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 3 dez. 2022.

5 Sobre as experiências e os modelos da atividade executiva em outros países, consultar: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Execução e desjudicialização: modelos, procedimento extrajudicial pré-executivo e o PL 6204/2019. Revista de Processo, São Paulo, v. 45, n. 306, p. 151-175, 2020.

6 A lei 9.307/1996, que dispõe sobre a arbitragem, prevê a possibilidade de as partes optarem, mediante convenção específica (art. 3.º), por um procedimento totalmente conduzido, instruído e julgado por um agente privado, que tenha a confiança das partes (art. 13.º) para dirimir seus litígios, desde que relativos a direitos patrimoniais disponíveis (art. 1.º). A sentença proferida pelo árbitro vincula as partes e seus sucessores, constituindo ainda título executivo judicial (art. 31 da Lei de Arbitragem e art. 515, VII, do CPC/2015).

7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Reunião do GT de Execução Civil: leitura do Relatório Final do GT de Execução Civil. Transmitido ao vivo em 15 de fevereiro de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 4 mar. 2022.

8 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022; PIMENTEL, Letícia de Carvalho. Os smart contracts como ferramenta de efetividade e fomento da execução extrajudicial de multas contratuais. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, São Paulo, n. 10, ano 4, jan./mar. 2021, p. 11-12. Disponível aqui. Acesso em: 25 out. 2021.

9 NUNES, Dierle; VIANA, Antônio Aurélio de Souza; PAOLINELLI, Camilla. Um olhar iconoclasta aos rumos da execução civil e novos e-designs: como os smart contracts e as online dispute enforcements podem revelar inovações para a desjudicialização da execução. In: BELLIZZE, Marco Aurélio; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; ALVIM, Teresa Arruda; CABRAL, Trícia Navarro Xavier (coord.). Execução civil - novas tendências: estudos em homenagem ao professor Arruda Alvim. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 231-232.

10 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022.

11 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022.

__________

Tema repetitivo 1.076 do STJ: Honorário equitativo em causa de valor elevado

 A Corte Especial do STJ retoma o julgamento do tema 1.076, no qual se analisa a obrigatoriedade da observância dos percentuais previstos nos §§ 2º e 3º do art. 85 do CPC.

O tema repetitivo 1.0761 do STJ envolve o debate sobre a possibilidade de fixação dos honorários de sucumbência por apreciação equitativa quando o valor da condenação ou proveito econômico for elevado.

A discussão em si tem origem na interpretação elástica - pelos magistrados - da norma prevista no inciso 8º do art. 85 do CPC, que estipula que os honorários devem ser arbitrados utilizando-se a apreciação equitativa nas hipóteses de valor inestimável ou irrisório do proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo. Tal elasticidade ocorre diante da enorme preocupação do Poder Judiciário com a fixação de honorários elevados nos casos em que a Fazenda Pública é derrotada.

A matéria já havia sido pacificada na 2ª seção do STJ2, para quem os honorários devem ser fixados no patamar de 10 a 20%, "concorde-se ou não", conforme o art. 85, parágrafo 2º, CPC, independentemente da parte sucumbente, mas agora o tema será decidido sob a forma dos repetitivos e formação de precedente vinculante, nos termos do disposto 927, III do CPC, em razão da verificação de inúmeros casos de afastamento da norma legal.

Há de se observar que a CF/88 estabelece que o advogado é essencial à administração da justiça e que as verbas arbitradas a título de honorários de sucumbência possuem natureza alimentar, o que demonstra a necessidade de que sejam fixadas de modo justo e compatível com a importância que reveste a causa.

Além disso, o atual diploma processual alterou substancialmente a disciplina dos honorários sucumbenciais no ordenamento jurídico pátrio, certamente com vistas a coibir a prática tão recorrente de se fixar honorários sucumbenciais em valores módicos, sem critérios e parâmetros.

Dentre as modificações e inovações, destaca-se o fato de que agora, sem qualquer margem para interpretação diversa, os honorários somente podem ser fixados por equidade de forma subsidiária, quando não for possível o arbitramento pela regra geral ou quando inestimável ou irrisório o valor da causa. Sobre o tema, leciona Rogerio Licastro Torres de Mello: "Há, de vez por todas, e concorde-se ou não com tal orientação, a tomada de posição acerca da regra elementar de fixação da honorária sucumbencial: os honorários de sucumbência devem ser fixados em percentuais (10% a 20%) sobre determinada expressão econômica da causa, sendo expressamente subsidiária a estipulação por equidade"3.

Como bem registra Ronaldo Cramer4, os dezenoves parágrafos do artigo 85 do CPC apresentam respostas para grande parte dos problemas envolvendo honorários de sucumbência, definindo-se como regra a fixação de honorários sobre o valor da condenação principal, do proveito econômico ou do valor atualizado da causa. Com isso, o arbitramento por equidade passou a ser exceção, sendo permitido apenas quando for "inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo" (art. 85, §8º do CPC).

Diante da clareza da norma processual, não remanesce qualquer dúvida de que, em havendo valor de condenação, proveito econômico imediatamente auferível, que não se mostre irrisório ou que o valor da causa não seja muito baixo, os honorários sucumbenciais devem necessariamente ser fixados entre 10% e 20%, nos exatos termos do disposto nos artigos 85, §2º, do CPC.

Sendo referida norma categórica e o rol para arbitramento de honorários por equidade taxativo, o esforço em defender aplicação diversa é evidentemente contrária a mens legis, negando reconhecimento, valorização e proporcional remuneração ao advogado da parte que se logrou vencedora na ação judicial. Não se pode tolerar o aviltamento dos honorários em nenhuma hipótese, merecendo ainda mais repúdio o arbitramento por equidade em valores módicos quando os honorários, em consonância com texto expresso de lei, obrigatoriamente deveriam ser calculados sobre a condenação, o proveito econômico ou o valor da causa - que resultaria, ao final, em quantia muito superior ao fixado por equidade.

Em que pese a redação clara da norma e a interpretação dada pela doutrina, ainda há vozes dissonantes dentro do Poder Judiciário, razão pela qual surgiu a necessidade de unificação de entendimento.

Na última semana do ano judiciário de 2021 foi iniciado o julgamento do tema 1076. O ministro relator Og Fernandes fez registrar em seu voto que a questão interessa a um milhão de advogados.

Em seu voto, o Ministro registrou que não é "facultado" ao julgador aplicar o parágrafo 3º ou 8º do art. 85 do CPC. Além disso, o Relator fez importante apontamento sobre a alteração do novo CPC quanto ao ponto em discussão, que superou a jurisprudência do STJ quanto à possibilidade de arbitramento por equidade nas causas em que a Fazenda Pública fosse vencida: "o fato de a nova legislação ter surgido como uma reação capitaneada pelas associações de advogados à postura dos tribunais de fixar honorários em valores irrisórios, quando a demanda tinha a Fazenda Pública como parte, não torna a norma inconstitucional nem autoriza o seu descarte".

Nesse passo, acertadamente, o ministro Og Fernandes, em seu voto - que se espera seja acompanhando pelos demais ministros que compõem a Corte Especial -, propõe as seguintes teses:

"1) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação ou da causa, ou o proveito econômico da demanda, forem elevados. É obrigatória, nesses casos, a observância dos percentuais previstos nos parágrafos 2º ou 3º do art. 85 do CPC - a depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa.
2) Apenas se admite o arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo."5 

Os ministros Jorge Mussi e Mauro Campbell Marques acompanharam o relator, tendo sido o julgamento suspenso por pedido de vista da Ministra Nancy Andrighi.

Espera-se assim que a Corte Especial ratifique o entendimento já assentado até então, e agora nos exatos temos do voto do ministro Og Fernandes, vindo a reconhecer a evidente vontade legislativa no sentido que, via de regra, os honorários sucumbências devem ser fixados na proporção de 10% a 20% da condenação ou proveito econômico, em respeito à norma processual e segurança jurídica.

_____

1 Resp 1.850.512, Resp 1.877.883, Resp 1.906.623 e Resp 1.906.618.

2 STJ. Resp 1.746.072/PR. Segunda seção. min. rel. do voto vencedor RAU ARAÚJO. j. 13/2/19.

3 MELLO, Licastro Torres de. Honorários advocatícios: sucumbenciais e por arbitramento. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

4 CRAMER, Ronaldo. Comentários ao CPC - volume 1 (arts. 1º a 317). Cassio Scarpinella Bueno [coordenador]. São Paulo: Saraiva, 2017.

5 Disponível aqui.

O cabimento das ações possessórias de bens digitais

Em meio às eleições de 2022 percebeu-se um número cada vez mais crescente de decisões judiciais determinando a suspensão de perfis em redes sociais pelo Supremo Tribunal Federal. Além da repercussão política gerada por estas decisões, instaurou-se uma discussão na doutrina e na jurisprudência acerca desses bens digitais.

Embora a maioria das decisões tenha sido proferida em sede de juízo criminal, por meio de inquéritos instaurados pela Corte1, abre-se espaço para uma discussão mais ampla, em âmbito cível, referente ao cabimento de ações possessórias para a retomada da posse dos perfis em redes sociais. Os perfis em redes sociais estão enquadrados no conceito de bens digitais.

Este conceito é relativamente novo no Brasil e pode ser definido como o conjunto de informações virtualmente registradas por alguém, com ou sem conteúdo econômico.2

Segundo Bruno Zampier, os bens digitais podem se apresentar sob a forma de: a) um correio eletrônico (todos os serviços de e-mail, tais como Yahoo, Gmail e Hotmail); b) uma rede social (Facebook, LinkedIn, Google+, MySpace, Instagram, Orkut, etc); c) um site de compras ou pagamentos (eBay e PayPal); d) um blog (Blogger ou Wordpress); e) uma plataforma de compartilhamento de fotos ou vídeos (Flickr, Picasa ou Youtube); f) contas para aquisição de músicas, filmes e livros digitais (iTunes, GooglePlay e Pandora); g) contas para jogos online (como o World of Warcraft ou Second Life) ou mesmo em contas para armazenamento de dados (serviços em nuvem, como Dropbox, iCloud ou OneDrive).3

Uma pesquisa realizada pelo blog SignalFire constatou que mais de 50 milhões de pessoas no mundo se consideram influenciadores digitais4 (termo utilizado para definir pessoas que se utilizam das mídias sociais para influenciar pessoas a adquirirem produtos ou serviços).

O Brasil ocupa a segunda posição em número de influenciadores digitais no mundo, contendo mais de 14 milhões, perdendo, apenas, para os Estados Unidos, segundo pesquisa realizada pela plataforma Nielsen.5

Considerada como uma profissão, atualmente, os influenciadores digitais podem faturar muito com seus perfis em redes sociais. A título de exemplificação, a remuneração média por post no perfil do jogador de futebol Neymar é, em média, 4,12 milhões de reais no Instagram.6

Percebe-se, portanto, que a suspensão dos perfis em redes sociais pode causar enormes prejuízos aos usuários, de natureza material, inclusive. Porém, como o tema ainda é novo, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, ainda há pouco estudo sobre o cabimento de mecanismos para a retomada da posse destes bens digitais.

O Código Civil de 2002 adotou a teoria objetiva em relação à posse, dispondo em seu art. 1.196: Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Assim, considera-se possuidor aquele que tenha o exercício de fato da coisa e possua algum dos elementos inerentes à propriedade (faculdade de usar, gozar, dispor ou reivindicar).

As políticas para o uso das mídias sociais incluem, entre outros serviços, oferecer oportunidades personalizadas de criar, conectar, comunicar, descobrir e compartilhar7, ou seja, a utilização da mídia como um bem digital, em que o usuário seria seu possuidor, conforme as condições e termos de uso da empresa.

Neste raciocínio, a empresa fornecedora da mídia social (Instagram, Facebook, WhatsApp, Twitter, YouTube...) é proprietária dos perfis e cede o uso da plataforma em um perfil ao usuário, segundo o contrato de adesão de seus usuários, considerados possuidores.

Tradicionalmente, o ordenamento jurídico brasileiro adotou o posicionamento de que somente poderiam ser objeto da posse os bens corpóreos que tivessem materialidade e que fossem suscetíveis de valor econômico. Assim, não poderiam ser considerados objeto da posse os bens imateriais e intangíveis, como os direitos autorais, patentes e softwares.

Entretanto, a doutrina vem defendendo a extensão da proteção possessória sobre os bens imateriais (incorpóreos e semicorpóreos). Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald argumentam:

Vimos que o Código Civil vigente adota a teoria objetiva de Ihering. Por essa trilha a posse não implica necessariamente na apreensão material do bem, mas na exteriorização da propriedade, ou seja, na adoção pelo possuidor de um comportamento sobre o bem análogo àquele que ordinariamente qualquer proprietário assumiria. O que releva, portanto, não é o aspecto corpóreo, mas o elemento externo e objetivamente perceptível da destinação econômica imprimida ao bem.8

O STJ já reconheceu como objeto de posse o sinal de TV à cabo na esfera criminal:

FURTO DE SINAL DE TV A CABO. TIPICIDADE DA CONDUTA. FORMA DE ENERGIA ENQUADRÁVEL NO TIPO PENAL. I. O sinal de televisão propaga-se através de ondas, o que na definição técnica se enquadra como energia radiante, que é uma forma de energia associada à radiação eletromagnética. II. Ampliação do rol do item 56 da Exposição de Motivos do Código Penal para abranger formas de energia ali não dispostas, considerando a revolução tecnológica a que o mundo vem sendo submetido nas últimas décadas. III. Tipicidade da conduta do furto de sinal de TV a cabo" (REsp. 1123747/RS, 5a T., Rel. Min. Gilson Dipp, Recurso Especial, DJe 1.2.2011).

Portanto, segundo o ordenamento jurídico, são objeto de posse os bens corpóreos e os incorpóreos suscetíveis de apropriação e comercialidade. O objeto da posse não se identificaria pela materialidade do bem, mas sim pela sua delimitação e determinação.9

Em um mundo cada vez mais digital não há razão para não abranger o objeto da posse aos bens imateriais.

Os bens digitais, como perfis em redes sociais, e-mails, nomes de domínio, são bens que, inclusive, podem ser objeto de direito sucessório e possuem valor econômico.10

Inegável, é, portanto, o cabimento de ações possessórias para a retomada do direito de uso dos perfis em redes sociais por meio de ações possessórias, com todos os seus institutos, inclusive possibilidade de concessão liminar da posse nos casos em que se demonstrarem presentes os seus requisitos.

A doutrina e a jurisprudência precisam urgentemente atualizar seus entendimentos a respeito do tema, bem como promover a sistematização dos novos meios de tutela dos bens digitais.

__________

1 Ver Inquérito das Fake News n° 4.781/DF. Trata-se de inquérito instaurado pela Portaria GP Nº 69, de 14 de março de 2019, do Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente, nos termos do art. 43 do Regimento Interno desta CORTE. O objeto deste inquérito, conforme despacho de 19 de março de 2019, é a investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros. Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022.

2 Zampier, Bruno. Bens Digitais. Edição do Kindle. 2ª Edição. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 74.

3 Zampier, Bruno. Bens Digitais. Edição do Kindle. 2ª Edição. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 76.

4 Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022.

5 Disponível aquiAcesso em 21 dez. 2022.

6 Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022.

7 Ver os termos de uso do Instagram. Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022.

8 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: direitos reais. Salvador: Ed. Jus Podivum, 2020, p. 117.

9 STJ, REsp. 769731/PR, 1a T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ 31.5.2007.

10 TAVEIRA JR, Fernando. Bens digitais (digital assents) e a sua proteção pelos direitos da personalidade: um estudo sob a perspectiva da dogmática civil brasileira. Porto Alegre: Revolução E-Books, 2018.

 

Impactos da medida provisória 1.085/21 na contagem dos prazos nos registros públicos

No dia 28/12/21, foi publicada no Diário Oficial da União a medida provisória 1.085, que tem sido apontada como a MP da modernização dos registros públicos, por ter implementado uma série de modificações na legislação registral e notarial, inclusive na LRP - Lei de Registros Públicos, 6.015/73.

Por ter força de lei, a MP 1.085/21 se encontra em pleno vigor, até que eventualmente venha a perder a sua eficácia, nos termos do art. 62, §3º, da CF/88, de modo que suas disposições devem ser interpretadas para que sejam adequadamente cumpridas por seus destinatários, notadamente os delegatários dos serviços notariais e de registros.

No presente texto, serão abordadas as alterações promovidas no art. 9º da LRP, com a inserção de três parágrafos que versam sobre a contagem dos prazos nos registros públicos, dada a sua relação com o direito processual civil.

Prefacialmente, cumpre destacar que, antes da vigência do atual CPC, não havia qualquer dúvida acerca da contagem dos prazos nas serventias extrajudiciais em dias corridos, exceto se a legislação expressamente estabelecesse forma diversa. Não havia qualquer disposição sobre o tema na LRP e era pacífica a aplicação subsidiária ao procedimento notarial e registral das regras contidas no CPC anterior (CPC/73), no qual a contagem dos prazos se dava de forma contínua.

O art. 219 do CPC, no entanto, passou a dispor que, na contagem dos prazos em dias, fixados pela lei ou pelo juiz, devem ser computados apenas os úteis, ressaltando-se, no parágrafo único, que essa regra se aplica exclusivamente aos prazos de natureza processual.

A partir da premissa de que as normas do CPC se aplicam supletiva e subsidiariamente aos processos1 que tramitam nas serventias notariais e de registros, por força do seu art. 152, bem como diante da lacuna normativa sobre a matéria na LRP, passou-se a discutir se o art. 219 do CPC tem ou não incidência no tocante aos prazos prescritos na legislação notarial e registral.

Para Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi, com a vigência do CPC/15, os prazos notariais e registrais, relativos aos processos que tramitam nas serventias extrajudiciais, devem ser contados em dias úteis, dada a aplicação subsidiária prevista no art. 15. Como exemplo, mencionam o prazo para afixação do edital de proclamas para fins de habilitação para o casamento (15 dias), que, segundo os autores, tem natureza de processo administrativo3.

João Pedro Lamana Paiva sugere que, tendo em vista a aplicação subsidiária do CPC ao Registro de Imóveis, a contagem em dias úteis deveria incidir nos seguintes procedimentos: retificações administrativas (arts. 212 e 213 da LRP), usucapião extrajudicial, procedimento de dúvida, registro de loteamento (art. 167, I, 19, da LRP), instituição de bem de família (art. 260 e seguintes da LRP), intimação para consolidação de propriedade na garantia de alienação fiduciária (lei 9.514/97)4.

A questão foi submetida à apreciação de algumas Corregedorias Gerais de Justiça estaduais, órgãos responsáveis pela fiscalização e normatização dos serviços notarias e de registros, e ensejaram, inclusive, a alteração das respectivas consolidações normativas.

Em São Paulo/SP, no ano de 2017, a ARISP - Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo formulou consulta à Corregedoria a respeito da forma de contagem dos prazos relacionados à prática de atos registrais, considerando a vigência do CPC5. Caso a resposta fosse afirmativa quanto à contagem em dias úteis, questionou-se também se o art. 219 incidiria sobre todos os prazos previstos na LRP incluindo prenotações, ou apenas em relação aos prazos fixados para a prática de ato em típicos procedimentos administrativos.

No parecer exarado pelos juízes assessores da Corregedoria, inicialmente, entendeu-se que o debate deveria girar apenas em torno dos prazos concernentes aos procedimentos administrativos, não havendo que se falar na aplicação do art. 219 do CPC aos prazos registrais e notariais de natureza material.

Em seguida, destacou-se a existência de divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da distinção entre prazos de direito material e de direito processual, tendo em vista a dificuldade de fixar conceitos que segreguem uns de outros de forma segura.

Também se argumentou que os prazos contidos na legislação notarial e registral foram fixados a partir do pressuposto da sua contagem de forma contínua e que a contagem em dias úteis resultaria numa ampliação desnecessária desses prazos. Além disso, a regulamentação do processo eletrônico facilitou toda a sistemática relativa aos atos processuais, com a consequente redução do tempo a ser dispendido para a sua prática. Destarte, seria um contrassenso o prolongamento dos prazos da legislação notarial e registral a partir da sua contagem em dias úteis.

Com isso, concluiu-se pela necessidade de normatização do tema, tendo-se promovido a modificação das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais de São Paulo, que, em seu item 19.16 passou a dispor que "Contam-se em dias corridos todos os prazos relativos à prática de atos registrários e notariais, quer de direito material, quer de direito processual, aí incluídas, exemplificativamente, as retificações em geral, a intimação de devedores fiduciantes, o registro de bem de família, a usucapião extrajudicial, as dúvidas e os procedimentos verificatórios"7.

Outras consolidações normativas extrajudiciais, no entanto, não contêm qualquer regra geral relativa à contagem dos prazos, mantendo uma espécie de regramento misto, com algumas disposições prevendo contagem em dias úteis, outras em dias corridos e outras fazendo menção apenas ao termo "dias", cabendo ao delegatário interpretar a norma e definir se a contagem se dará em dias corridos ou úteis8, o que, indiscutivelmente, enseja orientações divergentes e põe em risco a segurança jurídica.

Revela-se, pois, salutar, a fixação de regras na própria legislação notarial e registral que versem sobre a forma da contagem dos prazos. É o que se propôs a fazer a MP 1.085/21, ao alterar o art. 9º da LRP. Segue a redação atual do referido dispositivo:

"Art. 9º Será nulo o registro lavrado fora das horas regulamentares ou em dias em que não houver expediente, sendo civil e criminalmente responsável o oficial que der causa à nulidade.

§ 1º Serão contados em dias e horas úteis os prazos estabelecidos para a vigência da prenotação, para os pagamentos de emolumentos e para a prática de atos pelos oficiais dos registros de imóveis, de títulos e documentos e civil de pessoas jurídicas, incluída a emissão de certidões, exceto nos casos previstos em lei e naqueles contados em meses e anos.

§ 2º Para fins do disposto no § 1º, consideram-se:      

I - dias úteis - aqueles em que houver expediente; e  

II - horas úteis - as horas regulamentares do expediente.     

§ 3º A contagem dos prazos nos registros públicos observará os critérios estabelecidos na legislação processual civil."

De proêmio, deve-se registrar que a MP 1.085/21, nesse ponto, revela-se inconstitucional. Nos termos do art. 62, §1º, inciso I, alínea "b", da CF/88, é vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria relativa a direito processual civil, que fica reservada à lei federal ordinária (art. 22, inciso I, da CF/88).

Não é a primeira medida provisória, entrementes, que promove alterações na legislação processual civil e algumas delas foram convertidas em lei, hipótese que não deve ser descartada no caso da MP 1.085/21.

Ademais, como já dito, suas disposições já se encontram em vigor, devendo ser implementadas de imediato, de modo que devem ser objeto de análise pela doutrina especializada.

Ultrapassada, pois, essa advertência, e passando-se à análise dos parágrafos do art. 9º da LRP, vê-se que houve, em seu §1º, expressa menção à contagem em dias úteis do prazo de vigência da prenotação - critério diverso daquele até então empregado habitualmente nas serventias, qual seja, em dias corridos. Nos termos do art. 205 da LRP, também alterado pela MP 1.085/21, "cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos vinte dias da data do seu lançamento no protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais". Assim, o prazo foi reduzido de 30 para 20 dias, considerando-se agora apenas os úteis. Tratando-se de procedimentos de regularização fundiária de interesse social, o prazo será de 40 dias úteis (art. 205, parágrafo único, da LRP).

Ainda de acordo com o parágrafo primeiro, no tocante aos atos praticados pelos oficiais de registros de imóveis, de títulos e documentos e civil das pessoas jurídicas, todos os prazos serão contados em dias e horas úteis, considerando-se como dias úteis aqueles em que houver expediente e como horas úteis, aquelas regulamentares do expediente (art. 9º, §2º, da LRP).

Note-se que não houve distinção, no art. 9º, §1º, da LRP, entre prazos materiais e processuais9. A exceção fica para os prazos contados em meses e anos e para aqueles com previsão diversa na lei.

Entende-se que o termo "lei" deve ser interpretado de forma ampla, a fim de designar toda a legislação registral, inclusive atos normativos expedidos pelas Corregedorias Gerais de Justiça estaduais, geralmente contidas em suas respectivas consolidações normativas.

Claro que tais consolidações deverão ser adaptadas ao texto da LRP, com as alterações decorrentes da MP 1.085/21, porém se espera que essa adaptação advenha somente após a sua conversão em lei, caso esta venha efetivamente ocorrer.

Quanto aos prazos relativos aos atos praticados pelos usuários dos serviços, a regulamentação expressa restringiu-se ao pagamento dos emolumentos, cuja contagem deve se dar em dias úteis.

No que pertine aos demais atos, deve ter incidência o §3º do art. 9º, da LRP, segundo o qual a contagem dos prazos nos registros públicos observará os critérios estabelecidos na legislação processual civil, os quais estão definidos no CPC de 2015 e os principais são os seguintes: a) na contagem de prazo processual em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis (art. 219); b) salvo disposição em contrário, os prazos serão contados excluindo o dia do começo e incluindo o dia do vencimento (art. 224, caput); c) os dias do começo e do vencimento do prazo serão protraídos para o primeiro dia útil seguinte, se coincidirem com dia em que o expediente da serventia for encerrado antes ou iniciado depois da hora normal ou houver indisponibilidade da comunicação eletrônica (art. 224, §1º10).

De se ressaltar que o teor do art. 9º, §1º, da LRP, trazido pela MP, destoa, inclusive, do disposto no art. 219 do CPC, tendo em vista que o diploma processual prevê a contagem apenas dos dias úteis, conduzindo a doutrina a considerar que os prazos, mesmo os processuais, fixados em minutos, horas, meses ou anos devam ser contados continuamente11-12. Humberto Theodoro Junior esclarece que os prazos processuais fixados em meses ou anos serão contados na forma do artigo 132, §3º, do CC/02, expirando, portanto, no mesmo dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência13.

Na realidade, o §3º do art. 9º da MP deverá servir como norte interpretativo para todas as situações não previstas no §1º do referido artigo, incluindo os atos praticados pelos oficiais do registro civil das pessoas naturais, os quais não foram mencionados no texto da MP 1.085/21. Terá havido esquecimento ou silêncio eloquente? Será mesmo que a ideia, em relação aos atos praticados pelos registradores civis das pessoas naturais, é a de deixar sempre ao crivo do delegatário decidir se os prazos devem ser contados em dias úteis ou corridos, a partir da interpretação da legislação processual civil?

Entende-se - não sem lamentar - que, de acordo com a redação dada ao art. 9º, §1º, os prazos relativos ao registro civil de pessoas naturais mantêm-se inalterados, em razão da regra hermenêutica "ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit", ou seja, "quando a lei quis, determinou; sobre o que não quis, guardou silêncio"14.

Critica-se, contudo, o perigo de se perpetuarem as divergências, a indefinição e a insegurança jurídica, especialmente no tocante aos atos cujos prazos ensejem dúvidas quanto ao seu enquadramento em materiais ou processuais, a exemplo dos prazos para fornecimento de certidões e para promover averbações, a pedido do usuário. Ademais, a contagem em dias úteis pode ensejar um aumento considerável dos prazos, o que demanda adequação normativa, como ocorreu em relação à prenotação dos títulos no registro de imóveis.

Considera-se, por exemplo, que a habilitação para o casamento se caracteriza como processo extrajudicial, de modo que seus prazos devem ser contados em dias úteis. Em sendo assim, afigura-se imprescindível a revisão dos prazos previstos na LRP e no CC15, com a redução de alguns deles, para que não haja um prolongamento desnecessário, como decorrência da contagem em dias úteis.

Não se pode também olvidar que no RCPN - registro civil das pessoas naturais tramitam diversos outros processos, cujos prazos devem ser contados em dias úteis: retificações, restaurações, reconhecimento de filiação socioafetiva, registro tardio, alteração de prenome e gênero, averiguação oficiosa de paternidade etc.

Não há, pois, qualquer motivação razoável para a não inclusão do RCPN no §1º do art. 9º.

Espera-se que o problema seja corrigido em caso de conversão da MP 1.085/21 em lei16, com a definição de critérios objetivos para a contagem dos prazos dos atos praticados pelos oficiais dos RCPN ou a sua inclusão no §1º do art. 9º da LRP.

Por fim, deve-se dizer que, embora a LRP verse sobre registros públicos, as regras contidas nos parágrafos do art. 9º devem incidir, no que couber, à prática dos atos notariais pelos tabeliães de notas e de protestos, dada a falta de lei específica regulamentando a atividade, no primeiro caso, e a lacuna sobre o tema na lei 9.492/97, no segundo.

_____

1 Chamados usualmente de procedimentos administrativos. As autoras, porém, consideram tratar-se de processos extrajudiciais.

2 Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

3 A contagem dos prazos no novo CPC e sua repercussão para a atividade de registro. Disponível aqui.

4 O novo CPC e as repercussões nas atividades notariais e registrais. Disponível aqui.

5 Processo 2017/49880, Parecer 137/2017-E. Disponível aqui.

6 Trata-se do item 13.1, na verdade.

7 Norma de igual teor pode ser encontrada também no Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Mato Grosso do Sul (art.  765). O Código de Normas da Bahia também prevê a contagem dos prazos em dias corridos, mas contém várias disposições determinando a contagem em dias úteis, a exemplo do procedimento da usucapião extrajudicial (art. 27, §11 e art. 1.429-O).

8 É o caso, por exemplo, das consolidações normativas extrajudiciais do Rio de Janeiro, de Santa Catarina e de Pernambuco.

9 Segundo Wambier e Talamini, prazo processual é o período máximo de tempo dentro do qual se admite a realização do ato processual. Para os autores, ato processual, por sua vez, consiste em "toda manifestação da vontade humana que tem por fim criar, modificar, conservar ou extinguir posições jurídicas (direitos, deveres, ônus, poderes etc) integrantes de uma relação jurídica processual presente ou futura". WAMBIER, Luiz Rodrigues. TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. Volume 1. 16. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2016. pp. 578 e 483, respectivamente. Para Marco Aurélio Ventura Peixoto, "prazo processual é o intervalo temporal de que se dispõe para a prática de um ato processual ou que acarreta consequências de ordem processual, distinguindo-se assim do prazo material, que é o lapso que se tem para a prática de um ato não qualificado como processual, mesmo que previsto no Código de Processo Civil". PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura. A advocacia pública e a prerrogativa da contagem em dobro para os prazos fixados pelo juiz. In: Publicações da Escola da AGU: O Código de Processo Civil de 2015 e a Advocacia Pública Federal. Questões Práticas e Controvertidas. Escola da Advocacia-Geral da União Ministro Victor Nunes Leal - volume 9, n. 4 (out/dez 2017), p. 166. Para Teresa Arruda Alvim e Arthur Mendes Lobo, a interpretação mais adequada e condizente com a segurança jurídica é a que considera prazos processuais aqueles "fixados em lei ou em decisão judicial que determinam "quando" e "como" devem ocorrer situações jurídicas que geram efeitos processuais. São atos que marcam as fases do processo e impulsionam o feito para a fase seguinte". ALVIM, Teresa Arruda e LOBO, Arthur Mendes. Prazos processuais devem ser contados em dias úteis com novo CPC. Disponível aqui. A dificuldade concreta na classificação do prazo como processual ou material pode ser identificada, por exemplo, no que tange à contagem do lapso temporal para que a parte cumpra com obrigação fixada pelo juiz. Enquanto, em sede doutrinária, Daniel Neves entende que o prazo deva ser contado continuamente, a 2ª Turma do STJ entendeu, em julgado recente, que se trata de prazo processual, razão pela qual a sua contagem deve se dar em dias úteis, na forma do artigo 219 do CPC/2015. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume Único. 8. Ed. Salvador JusPodivm. 2016. p. 359. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1778885-Df. Rel. Min. Og Fernandes. Decisão unânime. Julgado em 15/06/2021.

10 Os parágrafos segundo e terceiro não têm incidência quanto aos atos notariais e registrais, porquanto não há, como regra, sua publicação no Diário de Justiça eletrônico.

11 "Observe que o art. 219 se refere aos prazos processuais contados em dias". PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Manual de Direito Processual Civil Contemporâneo. São Paulo: Saraiva. 2019. P. 455.

12 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op. Cit. P. 359.

13 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 58. Ed. Rio de Janeiro: GEN Forense. 2017. P. 529.

14 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. Ed. Rio de Janeiro: Forense. 2006. P. 198.

15 Prazo de publicação do edital de proclamas, prazos para manifestação do Ministério Público do Juiz e das partes em caso de arguição de causas impeditivas ou suspensivas, prazo de vigência da habilitação etc.

16 O presente artigo não se propõe a analisar outros pontos sensíveis contemplados na referida MP, tais como o controverso modelo de criação e manutenção do SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos previsto na referida norma, frente ao paradigma constitucional da prestação, em caráter privado, dos serviços extrajudiciais, por delegação (art. 236, CF/88), a consequente autonomia gerencial e a independência dos delegatários das serventias extrajudiciais (art. 28, da lei Federal 8.935/94) e, ainda, a potencial fragilização da observância da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados diante da detenção dos dados atinentes aos serviços públicos delegados por pessoa jurídica de direito privado que não os delegatários das serventias extrajudiciais previstos na CF/88.

A relevância da questão federal no recurso especial: Quando menos é mais

"O homem a quem é negada a oportunidade de tomar decisões
relevantes começa a enxergar como relevantes as decisões que pode tomar
".

(Northcote Parkinson. Escritor inglês. Parkinson's Law. 1958)

A Emenda Constitucional n° 125/2022 inseriu os §§ 2º e 3º no artigo 105 da Constituição Federal de 1988, com vistas a exigir a relevância da questão de direito federal infraconstitucional no recurso especial.

Ao tratarmos do tema, a pergunta preliminar que devemos, honestamente, nos fazer é: consideramos salutar haver um filtro de relevância para os recursos especiais?

Em 1995, o Superior Tribunal de Justiça recebeu aproximadamente 80.000 processos e julgou um montante em torno de 60.000. Em 2021, por seu turno, o referido tribunal recebeu 408.770 processos e julgou 427.9061. Os dados revelam que a demanda da corte quintuplicou nesse ínterim, mantendo-se o mesmo contingente de 33 Ministros. Embora a produtividade do Superior Tribunal de Justiça tenha aumentado2, caso seja mantido o modelo atual, não vislumbramos condições para que essa difícil equação seja resolvida.

Cumpre rememorar que o Superior Tribunal de Justiça concentra a competência, no Brasil, em matéria de cooperação jurídica internacional, cabendo-lhe, desde a Emenda Constitucional nº 45/2004, homologar todas as sentenças estrangeiras para que produzam efeitos no Brasil e conceder exequatur a todas as cartas rogatórias, sejam de 1ª ou de 2ª categoria. O volume de pedidos de cooperação jurídica internacional envolvendo o Brasil correspondia a 2.892 casos no ano de 2004, tendo aumentado para 6.396 em 2021, segundo dados do Ministério da Justiça3, significando que o volume mais que dobrou no período. Tais dados revelam o crescente afluxo de demandas para aquele tribunal superior em razão do incremento do volume de litígios com elemento de estraneidade na contemporaneidade. A título comparativo, na Itália, que conta com 59 milhões de habitantes, os tribunais locais possuem competência para cooperação jurídica internacional, enquanto, no Brasil, que conta com 215 milhões de habitantes, a competência está concentrada no Superior Tribunal de Justiça.

Portanto, os próprios dados indicam a inviabilidade de o Superior Tribunal de Justiça assimilar o contingente gigantesco (e crescente) de demandas que lhe são dirigidas.

Por ora, o Superior Tribunal de Justiça cria projetos de gestão estratégica, como o "Plano Estratégico Superior Tribunal de Justiça 2021-2026"4, voltado a incrementar a celeridade processual, e adota o sistema Athos para auxiliar no exame de admissibilidade recursal5, mas se trata, em verdade, de paliativos, que não possuem o condão de realmente solucionar a questão em sua origem.

De tempos em tempos cogita-se aumentar o número de Ministros do Superior Tribunal de Justiça. Cremos, pessoalmente, que essa não seria a melhor solução, pois envolveria a alocação de recursos públicos vultosos, em um país em desenvolvimento, com grandes demandas de investimentos em diferentes setores, sendo certo que, a se manter o cenário atual, o volume de processos seguiria uma trajetória de incremento, o que, em tese, exigiria um aumento contínuo e proporcional do número de Ministros indefinidamente.

Uma brevíssima notícia de direito comparado se mostra, a nosso ver, elucidativa.

Dentre os Princípios de Direito Processual Civil Transnacional do American Law Institute e do Unidroit6, o artigo 27 prevê, como "estado da arte" da ciência processual, o cabimento de apenas um recurso para instância superior à prolatora da sentença, que permita tanto a análise de questões de direito quanto o reexame de provas.

De modo semelhante, as European Rules of Civil Procedure7 dispõem, no artigo 157, a necessidade de haver um "first appeal", com ampla devolutividade e que propicie a revisão de questões de fato e de direito por instância superior. No artigo 158, prevê-se como meramente eventual um "second appeal", recurso com cabimento mais restrito do que o "first appeal" ("the scope of second appeal proceedings is narrower than that of a first appeal") e voltado apenas a rever questões de direito (material e processual).

Traçadas tais balizas, entendemos que a exigência, no ordenamento jurídico brasileiro, da relevância com vistas a permitir o julgamento do recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça não nos parece violar a noção de acesso à justiça na contemporaneidade, considerando-se a previsão contida no artigo 1012 do CPC/2015, que dispõe sobre o cabimento do recurso de apelação, inclusive ostentando efeito suspensivo ope legis como regra.

A exigência da relevância para acessar o Superior Tribunal de Justiça tem como suas finalidades:

a) racionalizar a prestação jurisdicional, permitindo que a corte se debruce sobre um volume menor de recursos e, assim, aprimore a prestação jurisdicional;

b) fortalecer o sistema de precedentes; e

c) prestigiar a duração razoável do processo, com a redução do volume de recursos a serem julgados pelo tribunal e, dessa forma, permitir que sejam julgados mais rapidamente.

Eduardo Arruda Alvim e Igor Martins da Cunha entendem que a adoção da relevância "terá grandes e positivas repercussões na atuação do órgão", garantindo que "possa efetivamente fixar, com atributos de alta qualificação, o último entendimento a respeito da lei federal, proferindo decisões efetivamente paradigmáticas que orientam a jurisprudência em âmbito federal"8.

Em sentido semelhante, reconhecendo que a relevância traria impactos positivos sobre o perfil do Superior Tribunal de Justiça, estudo da Fundação Getúlio Vargas9 afirma que o tribunal tende a deixar de ser "corte de varejo", passando a apreciar teses, leading cases, com função nomofilática, ou seja, voltada a revestir o direito federal infraconstitucional de coerência e previsibilidade.

Daniel Mitidiero ratifica que, com a relevância, o Superior Tribunal de Justiça deixa de ser corte de controle e passa a ser corte de interpretação, visando precipuamente à unidade do direito10.

Considerando-se que ainda não foi editada, até o momento, lei regulamentadora da relevância, tendo sido apenas apresentado Anteprojeto pelo Superior Tribunal de Justiça11, discute-se qual modelo deveria ser adotado em nosso país. Um primeiro modelo possível seria aquele da repercussão geral do recurso extraordinário da competência do Supremo Tribunal Federal, que foi originalmente concebido como um filtro recursal individual, a ser analisado caso a caso, mas, atualmente, segundo o mencionado relatório da FGV, integra o microssistema dos recursos repetitivos. O Supremo Tribunal Federal aplica a técnica da suspensão dos processos que versam sobre a questão que envolva repercussão geral e, uma vez julgado o tema, este é aplicado aos casos suspensos. Daí por que se diz que a repercussão geral consiste, em verdade, em um filtro pluri-individual, pois, após a definição da matéria pelo Supremo Tribunal Federal, de forma concentrada, não há mais análise caso a caso.

Outro modelo possível seria avizinhar-se da transcendência, exigida para a admissibilidade do recurso de revista da competência do Tribunal Superior do Trabalho, que é analisada pontualmente, caso a caso, sendo, por isso, considerado um filtro genuinamente individual12.

Em nossa avaliação, consideramos que haja maior probabilidade de que a regulamentação da relevância se aproxime do modelo da repercussão geral13. O Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça14 sinaliza nesse sentido em diversas passagens, como, por exemplo, ao prever, na redação proposta para o §7º do artigo 1035-A do CPC/2015, que o relator no Superior Tribunal de Justiça poderá determinar "a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional", bem como ao contemplar que o Presidente ou Vice-Presidente do tribunal local deverá negar seguimento ao recurso especial que discuta questão infraconstitucional federal cuja relevância já tenha sido rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça (proposta de redação a ser dada ao artigo 1030, inciso I, alínea c, do CPC/2015) e encaminhar o processo ao órgão julgador para realização do juízo de retratação, caso o acórdão recorrido divirja do entendimento do Superior Tribunal de Justiça a respeito da relevância da questão federal (proposta de redação para o artigo 1030, inciso II, do CPC/2015).

Se assim for, consideramos desejável que a regulamentação do tema preveja expressamente a possibilidade de a parte arguir a distinção e requerer o prosseguimento do feito, o que, infelizmente, não está contemplado no Anteprojeto apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Uma vez negada a existência da relevância, o Anteprojeto de Lei15 propõe, na nova redação a ser dada ao parágrafo único do artigo 1039 do CPC/2015, que todos os recursos especiais sobrestados sejam automaticamente considerados inadmitidos, aproximando, mais uma vez, a relevância do modelo da repercussão geral.

De igual modo, o artigo 5º do Anteprojeto16 dispõe que, reconhecida ou recusada a relevância, todos os efeitos do julgamento incidirão nos processos em andamento no tribunal superior e nas instâncias de origem, providência que tende a prestigiar a isonomia, a uniformidade interpretativa e racionalizar o estoque de demandas em curso no Superior Tribunal de Justiça.

Um ponto positivo do Anteprojeto, que merece ser aplaudido, consiste na expressa previsão, no §5º do artigo 1035-A, da possibilidade de o relator, na análise da relevância da questão de direito federal infraconstitucional, admitir a manifestação de terceiros subscrita por procurador habilitado. Entendemos que a manifestação de terceiros, como é o caso da intervenção de amici curiae, favorece o contraditório ampliado, sendo um importante fator de legitimação e de aprimoramento qualitativo da decisão do Superior Tribunal de Justiça, mormente considerando-se o modelo de filtro pluri-individual adotado pelo Anteprojeto.

De igual modo, entendemos oportuno que o Superior Tribunal de Justiça divulgue amplamente, em seu site, os seus julgamentos relativos à relevância, a fim de que toda a comunidade, conhecendo-os, evite incorrer na incabível interposição de recurso especial17, o que já vínhamos defendendo desde a edição da Emenda Constitucional e, em boa hora, está contemplado na proposta de nova redação para o §3º do artigo 979 do CPC/2015, prevista no Anteprojeto de Lei18.

O Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça propõe a inclusão do inciso III-A no artigo 927 do CPC/2015, com a finalidade de prever expressamente o acórdão proferido em julgamento de recurso especial submetido ao regime da relevância da questão de direito federal infraconstitucional como uma das hipóteses de padrão decisório a serem observadas por juízes e tribunais19.

Cabe cogitar se caberá reclamação em caso de inobservância do julgamento do Superior Tribunal de Justiça quanto à questão relevante, o que nos soa improvável, seja em razão do silêncio do Anteprojeto nesse particular, seja diante do entendimento restritivo que vem sendo adotado por esse tribunal20.

Outro ponto que merece reflexão consiste na previsão, pelo constituinte derivado, nos incisos do artigo 105, §3º, da Constituição, de hipóteses de relevância presumida. Concordamos com Rodrigo Salomão, ao elogiar a relevância presumida para o recurso especial, ao argumento de que "a relevância da questão de direito não pode ser um filtro de seleção político e absolutamente discricionário", sendo interessante "a inserção de alguns critérios minimamente objetivos para melhor caracterização da relevância"21.

Nesses casos, entendemos que, verificando-se que o recurso se enquadra em qualquer dos incisos, o requisito da relevância será tido como satisfeito, tratando-se de presunção absoluta22-23.

Admitimos que, em tese, lei infraconstitucional possa trazer outras hipóteses além daquelas elencadas no §3º, sendo este um rol meramente exemplificativo, o que é, inclusive, ressalvado no seu inciso VI. No entanto, consideramos que o legislador infraconstitucional não poderá restringir as hipóteses de relevância presumida previstas na Constituição, visto que atentaria contra a amplitude do acesso à justiça definida legítima e textualmente na Carta Magna, e padeceria, portanto, de inconstitucionalidade.

Os incisos do §3º trazem, por conseguinte, as hipóteses mínimas de relevância presumida, podendo haver ampliação a partir da legislação infraconstitucional que venha a regular o tema.

De se consignar que o Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça não contempla outras hipóteses de relevância presumida, restringindo-se a se reportar àquelas previstas no artigo 105, §3º, da Constituição.

Para além das hipóteses de relevância presumida previstas na Constituição Federal - e, eventualmente, na legislação infraconstitucional -, haverá, ainda, a possibilidade de relevância demonstrada, ou seja, poderá o recorrente, em seu recurso, demonstrar, no caso concreto24, que a matéria nele debatida ostenta relevância econômica, social, política ou jurídica que transcende os interesses subjetivos das partes diretamente envolvidas no processo, à semelhança do que dispõe o artigo 1035, §1º, CPC/15 para a repercussão geral junto ao Supremo Tribunal Federal e o artigo 896-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para a transcendência junto ao Tribunal Superior do Trabalho. Nesse caso, pairará sobre o recorrente um ônus argumentativo a mais.

Embora a Emenda Constitucional n° 125/2022 não exija expressamente, José Rogério Cruz e Tucci entende, ad cautelam, que a relevância deveria ser arguida formalmente como preliminar do recurso25, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, por vezes, exige esse requisito formal para fins de arguição da repercussão geral em recurso extraordinário26. A propósito, cumpre consignar que o Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça27 prevê, no texto proposto para o §2º do artigo 1035-A, a ser inserido no CPC/2015, que o recorrente deva demonstrar a existência de relevância da questão de direito federal infraconstitucional em tópico específico e fundamentado.

Tendo em vista que alguns tribunais já vinham exigindo a arguição de relevância nos recursos especiais imediatamente após a edição da Emenda Constitucional28, o Pleno do Superior Tribunal de Justiça adotou a salutar iniciativa de editar, em 19/10/2022, o Enunciado Administrativo 8, que dispõe que "a indicação, no recurso especial, dos fundamentos da relevância da questão de direito federal infraconstitucional somente será exigida em recursos interpostos contra acórdãos publicados após a data da entrada em vigor da lei regulamentadora prevista no artigo 105, §2º, da CF".

O artigo 4º do Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça29, por sua vez, ratifica o teor do Enunciado Administrativo, sepultando quaisquer dúvidas sobre o descabimento de tal exigência imediatamente.

A seguir, analisaremos brevemente - diante dos estreitos limites do presente artigo - as hipóteses de relevância presumida elencadas nos incisos do §3º, artigo 105 da Constituição Federal.

Quanto ao inciso I, que contempla as ações penais, cumpre consignar que a Constituição não distingue ações penais públicas condicionadas, incondicionadas ou privadas, nem tampouco considera o potencial ofensivo, razão pela qual todas estão abarcadas neste inciso, inclusive os juizados especiais criminais, não podendo a lei infraconstitucional restringir. Com efeito, inciso I parece-nos assaz abrangente, pois, a rigor, admite a presunção de relevância de recurso especial que eventualmente nem sequer discuta propriamente questão penal, como, por exemplo, aquele que verse sobre honorários advocatícios em ação penal privada, apenas por ter sido interposto nos autos de uma ação penal. De se consignar que, segundo dados apurados por Ravi Peixoto, a maior parte dos processos dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça no período compreendido entre 2017 e 2021 versavam sobre matéria penal30, a indicar que, de fato, a presunção contida no inciso I pode representar forte impacto no volume de recursos que afluirão para julgamento pela corte superior.

O inciso II, por sua vez, contempla as ações de improbidade administrativa. Há quem critique a ausência de previsão das ações coletivas lato sensu no inciso em comento. Entendemos, contudo, o recorrente tenderá a lograr demonstrar o preenchimento da relevância in concreto, por haver impacto social e, por vezes, político nas ações coletivas lato sensu. Sendo assim, embora não seja o caso de relevância presumida, há grandes chances de o recurso especial ser admitido em razão da relevância demonstrada concretamente.

O inciso III prevê as ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos. Ao contrário da repercussão geral e da transcendência, que, quanto ao critério econômico, apenas preveem que incumbe ao recorrente demonstrar que o recurso trata de questão relevante do ponto de vista econômico, sem predefinir um valor mínimo estanque e deixando, portanto, ao tribunal superior analisar o conteúdo econômico no contexto do caso concreto, aqui, o constituinte derivado fixou um valor predefinido para fins de presunção de relevância, o que não nos parece acertado. Isso porque a hipótese acaba por chancelar desvios, como o caso em que o valor da causa, embora superior a 500 salários mínimos, seja até mesmo irrisório sob a perspectiva das partes litigantes e a ação tampouco ostente relevância jurídica, social ou política, sendo que, nesse caso, mesmo assim, será considerada preenchida a relevância31.

O atrelamento ao valor da causa também deixa descoberto o caso em que o proveito econômico pretendido no recurso especial for muito inferior ao valor da causa em si.

As causas que tenham valor igual ou inferior a 500 salários mínimos poderão sim ter a sua relevância reconhecida, apenas não estarão abarcadas pela presunção, cabendo ao recorrente demonstrar a relevância no caso concreto (relevância demonstrada). Pode-se criticar o fato de que o inciso III considera individualmente o processo no qual o recurso especial foi interposto, alheando-se de observar se a matéria ocorre em múltiplos processos que, se somados, alcançariam valor da causa superior a 500 salários mínimos, como é o caso de relações de consumo. No entanto, entendemos que tais hipóteses acabam por caracterizar impacto social que, uma vez demonstrado in casu, justifica a admissão do recurso (relevância demonstrada), embora, com efeito, não estejam abarcadas pela presunção de relevância.

Há que se ter cuidado com eventuais condutas ardilosas da parte autora, que pretenda atribuir valor da causa superior a 500 salários mínimos especificamente com o propósito de garantir, desde já, estar abarcada pela presunção de relevância em um futuro recurso especial - o que pode lhe interessar, especialmente se tiver a intenção de ensejar a formação de um padrão decisório que possa ser ventilado em outros casos futuros de que também seja parte. Nessas circunstâncias, verificando o magistrado haver descompasso entre conteúdo econômico e valor da causa, cumpre-lhe corrigir de ofício o valor da causa, conforme artigo 292, §3º, do CPC/2015, e, até mesmo, condenar o autor por litigância de má-fé, com fulcro no artigo 80, inciso V, do CPC/2015.

De se destacar que o inciso em comento não contempla a hipótese em que o valor da causa é reduzido, mas a condenação e o proveito econômico pretendido com o recurso especial são superiores a 500 salários mínimos32, razão pela qual, nesse caso, o recurso estaria fora do espectro de abrangência da presunção absoluta, exigindo demonstração pelo recorrente no caso concreto (relevância demonstrada, não presumida).

O inciso IV prevê, de forma abrangente, as ações que possam gerar inelegibilidade, seja qual espécie de ação for.

O inciso V, por seu turno, contempla as hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. Critica-se a expressão "jurisprudência dominante", por ser demasiadamente vaga, de difícil conceituação33, que, portanto, traria insegurança jurídica. Entendemos que seria recomendável que a regulamentação do tema densificasse melhor o conteúdo dessa expressão, por exemplo, reportando-se às hipóteses dos incisos I a V do artigo 927, CPC/15 ou definisse que se trata de um entendimento firmado em um número mínimo de julgados reiterados. José Henrique Mouta pondera que seria desejável que o legislador infraconstitucional preveja, ainda, a presunção de relevância quando o recorrente demonstrar haver conflito entre tribunais locais relacionado à interpretação da lei federal, o que nos parece, de fato, oportuno34. No entanto, tais questões não foram contempladas no Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça.

O estudo da FGV, antes mencionado, apurou que o número de Recursos Especiais que se enquadram nas hipóteses de relevância presumida dos incisos I a IV corresponde a 15,33% do total de recursos especiais interpostos. Por conseguinte, ao menos esse percentual já teria a relevância considerada preenchida, o que começa a jogar luz sobre o potencial impacto do §3º para o volume de recursos especiais a ser absorvido pelo Superior Tribunal de Justiça.

Cremos que questões relativas a políticas públicas, direitos de pessoas com deficiência, indígenas e meio ambiente, embora não estejam arroladas nos incisos do §3º do artigo 105 da Constituição Federal nem tampouco no Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça como hipóteses de relevância presumida, tendem a ser consideradas, quando arguidas, como preenchedoras do requisito, na análise do caso concreto pelo Superior Tribunal de Justiça (relevância demonstrada).

A respeito da competência, de acordo com a Emenda Constitucional, compete ao próprio Superior Tribunal de Justiça examinar a relevância, não podendo, pois, as Vice-presidências dos tribunais locais se imiscuir no tema.

No entanto, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, qual seria o órgão competente?

Partindo-se da redação do artigo 105, trazida pela Emenda Constitucional n° 125/2022, que dispõe que a relevância só pode ser afastada pela manifestação de 2/3 dos membros "do órgão competente para o julgamento"35, entendemos que o órgão interno do Superior Tribunal de Justiça que seja competente para julgar o respectivo recurso especial que será igualmente competente para examinar a relevância. Eduardo Arruda Alvim e Igor Martins concordam que "ao contrário do Supremo Tribunal Federal, em que a repercussão geral é analisada pelo Pleno (Plenário Virtual)", o exame da relevância vai depender de qual é o órgão competente para o julgamento do recurso em si36-37. Ousamos afirmar que qualquer previsão infraconstitucional dissonante, que cinda a competência para a verificação da relevância da competência para o julgamento do recurso especial, no nosso entender, afrontaria previsão constitucional expressa.

De se consignar que a relevância somente poderá ser afastada pelo quórum qualificado de 2/3. Ou seja, a regra é que o recurso especial ostentará relevância, salvo se esta for afastada por 2/3 do órgão competente para o julgamento do respectivo recurso. Não poderá, contudo, haver afastamento da relevância, se o caso estiver enquadrado em uma das hipóteses de presunção elencadas no §3º do artigo 105 da Constituição Federal, por se tratar de presunção absoluta.

A versão atual do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça prevê, no artigo 13, inciso VI, que a turma é competente para julgar os recursos especiais e o artigo 11, inciso XVI, prevê que o recurso repetitivo é da competência da Corte Especial. O artigo 14 do referido Regimento Interno, por seu turno, autoriza que a turma remeta o julgamento do recurso à Seção se houver relevância da questão e para prevenir divergência entre as turmas da mesma Seção.

Parte da doutrina considera desejável que o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça passe a prever a competência da Seção ou da Corte Especial para o exame da relevância, a fim de evitar divergência entre as turmas ou, até mesmo, que se considere que a negativa de relevância por parte de uma turma vincula todo o Superior Tribunal de Justiça38. Por outro lado, há quem externe preocupação de que seja atribuída a competência para a apreciação da relevância à Seção ou à Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por entender que esvaziaria as turmas e exigiria maiores esforços daqueles órgãos39. Trata-se, portanto, de questão delicada, para a qual não há solução perfeita.

Acompanhemos as modificações no Regimento Interno que decerto virão. Seja como for, mantemos a ressalva antes feita, a respeito da inconstitucionalidade de eventual cisão da competência para o exame da relevância daquela para o julgamento do recurso.

O Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça40 propõe, na nova redação a ser dada ao artigo 1042 do CPC/2015, a irrecorribilidade da decisão do STJ que não conhecer do recurso especial em razão da ausência de relevância da questão de direito federal nele debatida, medida que decerto contribuiria para corroborar a racionalização do volume de recursos no referido tribunal, com a contenção do número de agravos.

De se indagar se poderá o relator apreciar a relevância monocraticamente e, no caso de vir a negá-la, se caberia ao colegiado, por 2/3, apenas confirmar a negativa de relevância. Nesse caso, cremos que caberia, antes de mais nada, perguntar: será que não haveria um "retrabalho"? Em qual medida seria realmente produtiva essa previsão?

Além disso, ainda que o relator considere preenchida a relevância - o que tornaria, em tese, despicienda a submissão da questão ao colegiado -, tal sistemática jamais nos permitiria saber se o colegiado, caso tivesse se debruçado sobre o tema, teria considerado a relevância ausente por 2/3 de seus membros, restando vencido o relator. Por tais razões, em apertada síntese, tendemos a sustentar que não seria adequado atribuir ao relator a competência para, monocraticamente, examinar a relevância41.

O Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, não atribui ao relator a competência para a análise da relevância, cingindo-se a, na proposta de redação do artigo 932, inciso IV, alínea b e inciso V, alínea b, do CPC/2015, lhe autorizar a admitir ou inadmitir o recurso especial cuja relevância da questão de direito federal infraconstitucional já tenha sido previamente reconhecida pela corte superior, o que nos parece adequado, visto que se harmoniza com as atividades desempenhadas pelo relator e não afronta o texto constitucional.

O aludido Anteprojeto de Lei propõe, na nova redação a ser dada ao parágrafo único do artigo 998 do CPC/2015, que, à semelhança do recurso extraordinário cuja repercussão geral tenha sido reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, a desistência do recuso especial com relevância reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça não impeça a análise da questão. Isso indica que o STJ efetivamente pretende aproximar a relevância do modelo da repercussão geral e salientar que o julgamento do mérito do recurso especial que ostenta relevância transcende o interesse individual da parte recorrente, até mesmo porque, conforme aventado no §7º do artigo 1035-A do Anteprojeto de Lei, o reconhecimento da relevância da questão de direito federal poderá ter ensejado, por determinação do relator, a suspensão de uma multiplicidade de processos país afora que versem sobre a mesma questão.

Por todo o exposto, entendemos que o saldo, até o momento, parece-nos positivo. A relevância, estando expressa e claramente prevista na Constituição e regulamentada no âmbito infraconstitucional, logra racionalizar a prestação jurisdicional pelo Superior Tribunal de Justiça, com deferência à isonomia e à segurança jurídica, com um modelo bifronte, composto por relevância presumida (presunção absoluta) e relevância demonstrada.

A relevância se adequa, como visto ao início deste trabalho, aos parâmetros internacionais de acesso à justiça, que preconizam o cabimento de apenas um recurso com ampla devolutividade, permitindo reexame de questões de fato e de direito por tribunal hierarquicamente superior ao prolator da decisão recorrida, o que é garantido em nosso ordenamento jurídico-processual no artigo 1012 do CPC/2015, com a previsão do recurso de apelação.

A médio prazo, entendemos que a relevância pode ter o condão de valorizar o julgamento dos tribunais locais42-43 e ensejar maior cobrança, por parte da própria sociedade, em relação à qualidade da função jurisdicional prestada no âmbito local, embora, não sem razão, se tema o risco à unidade de interpretação da legislação infraconstitucional em nosso país.

A título ilustrativo, Rodrigo Salomão esclarece que, no Brasil, há "baixo índice de reforma das decisões dos tribunais de segundo grau", gravitando em torno de 14% apenas44, o que acaba por mitigar o receito de muitos a respeito da alegada redução do acesso ao Superior Tribunal de Justiça em decorrência da exigência de relevância.

Por fim, não poderíamos encerrar a abordagem do tema sem consignar o alerta sobre a importância da criação de mecanismos, na legislação regulamentadora, que permitam a revisão ou superação do entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça quanto à relevância, com vistas a evitar o seu engessamento - que seria antidemocrático e, por isso, altamente indesejável.

Aproveitemos a oportunidade surgida com a edição da Emenda Constitucional n° 125/2022 para que possamos debater a melhor forma de regulamentar a relevância no recurso especial e, assim, avançar mais um passo rumo a uma prestação jurisdicional, pelo Superior Tribunal de Justiça, que seja, tanto quanto possível, a um só tempo, eficiente, com legitimidade democrática e de elevada qualidade.

Que a exigência formal da relevância, ao reduzir o volume de recursos especiais julgados pelo Superior Tribunal de Justiça, conduza à crescente relevância, sob o prisma qualitativo, das decisões proferidas por esse tribunal superior. Talvez, aqui, como em tantas outras searas, menos é mais.

__________

1 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. "STJ ultrapassa 2 milhões de recursos especiais em meio a esforço para resgatar sua missão constitucional". Disponível aqui. Consulta realizada em 01/11/2022.

2 Rodrigo Salomão salienta que "Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça fez história ao julgar mais de meio milhão de processos. De acordo com notícia publicada no final daquele ano, ao todo, foram julgados 511.761 processos em 2018, média de 15.508 para cada um dos 33 ministros, ou 1.402 julgamentos por dia, ou ainda 58 por hora. Isto é, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA julgou praticamente um processo por minuto no ano de 2018. Por óbvio, a enorme quantidade de decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça contraria a sua real função no ordenamento jurídico brasileiro, pois é inconcebível que uma corte de uniformização profira em torno de 400 mil decisões monocráticas e 100 mil colegiadas em um único ano". SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. A relevância da questão de direito no recurso especial. Curitiba: Juruá. 2021. P. 153.

3 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPARTAMENTO DE RECUPERAÇÃO DE ATIVOS E COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. Indicadores DRCI/SENAJUS/MJSP - 2021. Brasília: 2021. Disponível aqui. Consulta realizada em 11/01/2023.

4 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Plano Estratégico 2021-2016. Brasília: 2022. Disponível aqui. Consulta realizada em 01/11/2022.

5 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Iniciativas estratégicas. Disponível aqui. Consulta realizada em 01/11/2021.

6 AMERICAN LAW INSTITUTE. UNIDROIT. Principles of transnational civil procedure. Disponível aqui. Consulta realizada em 01/11/2022.

7 EUROPEAN LAW INSTITUTE. UNIDROIT. European rules of civil procedure. Disponível aqui. Consulta realizada em 02/11/2022.

8 ALVIM, Eduardo Arruda. CUNHA, Igor Martins da. "A relevância da questão federal no recurso especial". Migalhas. Consulta realizada em 21/07/2022.

9 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Relatório preliminar sobre a Relevância da questão de direito federal: histórico, direito comparado, instrumentos semelhantes e impacto legislativo. Coordenador Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília: 2022.

10 MITIDIERO, Daniel. Relevância no recurso especial. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2022. Pp. 46-47.

11 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei, que insere dispositivo à Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a altera, a fim de regulamentar o § 2º do art. 105 da Constituição Federal, e dá outras providências. Disponível aqui. Consulta realizada em 09/01/2023.

12 CÔRTES, Osmar Paixão. "A relevância da questão de direito federal no recurso especial será um filtro individual?". Migalhas. Disponível aqui. Consulta realizada em 03/11/2022.

13 ARAÚJO, José Henrique Mouta. "Relevância da questão federal no recurso especial: observações acerca da emenda constitucional 125". Migalhas. Consulta realizada em 20/07/2022.

14 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei. Op. Cit.

15 Idem, ibidem.

16 Idem, ibidem.

17 Idem, ibidem.

18 Idem, ibidem.

19 Preocupação semelhante é externada por Rodrigo Salomão. SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. Op. Cit. P. 162.

20 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. "STJ reafirma que reclamação não é via adequada para questionar não aplicação de repetitivo". Disponível no site. Consulta realizada em 20/07/2022.

21 SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. Op. Cit. P. 160.

22 PEIXOTO, Ravi. "A relevância da questão de direito federal no recurso especial e o dia depois de amanhã (ou o que fazer na lei regulamentadora". MARQUES, Ministro Mauro Campbell. FUGA, Bruno Augusto Sampaio. TESOLIN, Fabiano da Rosa. LEMOS, Vinicius da Silva (Coords). Relevância da questão federal no recurso especial. Londrina: Thoth. 2023. p. 439.

23 ALVIM, Teresa Alvim. UZEDA, Carolina. MEYER, Ernani. "O funil mais estreito para o recurso especial". Migalhas. Disponível no site: www.migalhas.com.br Consulta realizada em 20/07/2022.

24 ALVIM, Teresa Alvim. UZEDA, Carolina. MEYER, Ernani. Op. cit.

25 TUCCI, José Rogério Cruz e. "Relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do Resp". Consultor Jurídico.

27 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei, que pretende regulamentar o §2º do artigo 105, da Constituição Federal. Op. cit.

28 Entendendo que, no momento, seria desnecessária a abertura de preliminar, ALVIM, Teresa Alvim. UZEDA, Carolina. MEYER, Ernani. Op. Cit.

29 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei. Op. cit.

30 PEIXOTO, Ravi. "A relevância da questão de direito federal no recurso especial e o dia depois de amanhã (ou o que fazer na lei regulamentadora". Op. cit p. 438.

31 Tecendo crítica semelhante, KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. FLUMIGNAN. Silvano José Gomes. "Primeiras reflexões sobre a futura regulamentação da relevância da questão de direito federal". MARQUES, Ministro Mauro Campbell. FUGA, Bruno Augusto Sampaio. TESOLIN, Fabiano da Rosa. LEMOS, Vinicius da Silva (Coords). Relevância da questão federal no recurso especial. Londrina: Thoth. 2023. P. 241.

32 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Op. Cit.

33 Idem, ibidem.

34 Idem, ibidem.

35 De se consignar que o artigo 1035-A, §6º, do Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça ratifica que a competência para a inadmissão do recurso especial em razão da ausência de relevância será "do órgão competente para o julgamento". SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei, que pretende regulamentar o §2º do artigo 105, da Constituição Federal. Op. Cit.

36 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Op. Cit.

37 Idem, ibidem.

38 PEIXOTO, Ravi. "A relevância da questão de direito federal no recurso especial e o dia depois de amanhã (ou o que fazer na lei regulamentadora". Op. cit. p. 439.

39 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Palestra proferida no evento "O instituto da relevância das questões de direito federal infraconstitucional no recurso especial", promovido pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro no dia 04/11/2022. Disponível no endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=3dyk6jvftfe&list=plkgnxxdlayqbv1brlyqsz_y28gf2yrx21&index=2 Consulta realizada em 10/11/2022

40 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei, que pretende regulamentar o §2º do artigo 105, da Constituição Federal. Op. Cit.

41 Em sentido semelhante, PEIXOTO, Marco Aurélio. BECKER, Rodrigo. O relator pode reconhecer individualmente a ausência de repercussão geral? Jota. 

42 "O posicionamento e função desempenhada pelos tribunais estaduais e regionais federais passam a ter maior destaque e repercussão, considerando que darão a última palavra sobre matérias federais 'sem relevância', portanto, terão a responsabilidade de determinar a adequada interpretação da lei federal. (...) Tal realidade pode redundar na fragmentação do direito federal, colocando-se em risco a unidade do direito nacional". WELSCH, Gisele. "A relevância no recurso especial: controvérsias e perspectivas para a regulamentação e aplicação do filtro recursal previsto na EC 125/22". MARQUES, Ministro Mauro Campbell. FUGA, Bruno Augusto Sampaio. TESOLIN, Fabiano da Rosa. LEMOS, Vinicius da Silva (Coords). Relevância da questão federal no recurso especial. Londrina: Thoth. 2023. p. 278.

43 Em sentido semelhante, opina Garcia Medina: "Ao fim e ao cabo, tudo dependerá da interação que se der entre o STJ e os tribunais locais. Quanto maior a restrição ao cabimento do recurso especial, mais os tribunais locais se sentirão à vontade para dar à lei federal um sentido próprio, em seu âmbito de atuação, ainda que distante do dado por outros tribunais locais. O direito federal poderá restar, com o passar do tempo, bastante fragmentado, e limites haverão de ser levados em consideração, para não se colocar em risco a unidade do direito nacional. De todo modo, a limitação do âmbito de atuação do STJ implicará o inevitável redimensionamento do papel desempenhado pelos tribunais locais". MEDINA, José Miguel Garcia. "Alteração do desenho institucional dos tribunais após relevância para Resp". Consultor Jurídico

44 SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. Op. Cit. P. 165.

A importância dos Enunciados da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de litígios do CJF para a implementação da Justiça Multiportas no Brasil

A noção de acesso à justiça precisa transpor os muros do Poder Judiciário, de modo que o jurisdicionado brasileiro, no século XXI, não seja compelido a acionar os tribunais para que consiga ter os seus litígios solucionados1. Essa frase é entoada, quase que como em uníssono, nos dias atuais. Não obstante, verifica-se desconfortável discrepância entre teoria e prática2.

O Relatório Justiça em Números de 2021, elaborado pelo CNJ, noticia o abarrotamento do Poder Judiciário, que ostenta taxa de congestionamento bruta na ordem de 75%3.

Os índices relativos à solução consensual tampouco despertam otimismo. Havia, na justiça estadual, ao final de 2020, 1.382 CEJUSCs - Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania4 - responsáveis pela promoção da justiça coexistencial junto aos tribunais brasileiros -, número efetivamente maior do que o apurado no ano anterior, mas flagrantemente insuficiente para abarcar todo o país, que é atualmente composto por 5.568 municípios, segundo o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística5.

Em 2020, apenas 9,9% das sentenças judiciais foram homologatórias de acordo, seja na fase de conhecimento ou de cumprimento/execução6. Trata-se de indicador extremamente tímido para fazer jus à afirmação de abertura do presente trabalho, mais ainda para concretizar o paradigma traçado pelo legislador no art.3º do CPC, ao privilegiar a solução consensual (negociação, conciliação e mediação) em detrimento da solução adjudicada (processo judicial ou arbitral).

Por outro lado, se, até alguns anos atrás, seria possível - ao menos em tese - que o operador do direito creditasse o problema à ausência de regulamentação legal, hoje isso não é mais viável, diante do advento da lei Federal 13.140/15, que regulamentou a mediação, e do CPC, que previu a mediação e a conciliação em diversas passagens.

A análise conjugada de tais dados permite concluir que não basta a existência de um marco legal da mediação no Brasil, nem tampouco que o legislador reconheça expressamente a importância das soluções consensuais de resolução de conflitos para que automaticamente a realidade de nosso sistema de justiça seja alterada.

A concretização da Justiça Multiportas em nosso país depende de múltiplos esforços e iniciativas que, somados, tenham o condão de reverter a tradição secular de relegar a solução dos conflitos indistintamente ao Poder Judiciário. Não se trata, pois, de uma solução mágica, mas da conjugação de esforços surgidos em diferentes frentes deste país continental.

Nesse contexto, merece aplauso a precursora iniciativa do Conselho da Justiça Federal no sentido de promover, em 2021, a segunda edição da Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de litígios, que, sob a Coordenação Científica dos ministros do STJ Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino, desenvolveu os seus trabalhos em quatro Comissões, a saber: arbitragem, mediação, desjudicialização e novas formas de solução de conflitos e novas tecnologias.

Foram recebidas dezenas de propostas de enunciados vindas de todo o Brasil, as quais foram meticulosamente analisadas pelos membros da respectiva comissão temática. As propostas pré-aprovadas pela Comissão foram submetidas à reunião plenária, que congregou os membros de todas as quatro Comissões, bem como os autores das propostas pré-aprovadas. Na Reunião Plenária, foram debatidas, uma a uma, cada qual das propostas pré-aprovadas pelas Comissões e, após cada debate, a respectiva proposta foi submetida a votação eletrônica.

Compuseram a reunião plenária dezenas de especialistas de diferentes partes do país e que atuam em diversas carreiras jurídicas, a saber, magistratura, advocacia pública e privada, MP, serventias extrajudiciais, etc.

A abertura para o recebimento de propostas da comunidade jurídica em geral, a acuidade em seu exame pela comissão temática e o amplo debate na reunião plenária a que foram submetidas as propostas revelam o lastro acadêmico das Jornadas e, por conseguinte, a relevância dos Enunciados aprovados7.

O engajamento de dezenas de profissionais e juristas em torno da pauta de efetivamente cunhar soluções factíveis para incrementar a prevenção e a solução extrajudicial de conflitos no Brasil, sem descurar da fundamental garantia insculpida no art. 5°, XXXV da CF/88, representa uma iniciativa séria, que merece estudo e análise, para que o seu conteúdo seja conhecido pela comunidade jurídica brasileira e, a partir de então, possa ser concretamente aplicada diuturnamente em todo o país.

Os Enunciados aprovados na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de litígios do CJF consistem em um importante passo para tornar a Justiça Multiportas realidade, pois congregam não apenas a melhor base teórica, mas, acima de tudo, oferecem grande aptidão para a sua aplicabilidade prática. Compõem um ferramental indispensável para a confecção de um sistema de justiça plural, que abarque, mas não se esgote no Poder Judiciário, que coordene sadia e democraticamente as diferentes carreiras jurídicas previstas na Constituição Federal, de modo que cada qual delas se enxergue como protagonista de um novo paradigma de justiça coexistencial, plasmada no diálogo como eixo central.

Os Enunciados da II Jornada do CJF emanaram de uma composição plural, o que lhes confere particular legitimidade, visto que a sua aplicabilidade se dará por uma composição diversificada de operadores do direito, com a finalidade precisamente de sedimentar um sistema de justiça cada vez mais atento à alteridade, em que o acesso à justiça seja possível por meio de diferentes mecanismos de solução de conflitos, diferentes entre si - e é desejável que assim seja, devendo-se nortear a escolha pelo princípio da adequação -, mas nem por isso hierarquizados ou com graus díspares de legitimidade democrática ou mesmo dissonantes da observância ao devido processo legal8.

A imediata intervenção do Poder Judiciário deixa de ser uma condição sine qua non para o acesso à ordem jurídica justa e os Enunciados da II Jornada do CJF oferecem um precioso mapa para que se logre encontrar o caminho para a Justiça Multiportas.

Inúmeros seriam os Enunciados aprovados que mereceriam destaque - e consigna-se aqui o convite para que o leitor acesse a íntegra do documento9 -, mas, a fim de não transpor os limites do presente trabalho, destacam-se alguns Enunciados oriundos da Comissão de Mediação e da Comissão de Desjudicialização, que honrosamente os autores compuseram.

Quanto à Comissão de Desjudicialização, presidida pelos professores Humberto Theodoro Junior e Helena Lanna e que teve como relatores os professores Trícia Navarro e Heitor Sica, destacam-se, em primeiro lugar, os Enunciados 120 e 127, que reconhecem a admissibilidade da retomada ao nome de solteiro e a inclusão do sobrenome do cônjuge a qualquer tempo, na constância da sociedade conjugal ou depois de decretado o divórcio, por requerimento ao registro civil de pessoas naturais, independentemente de autorização judicial. Isso porque, conforme reconhecido pelo STJ10, o nome consiste em direito da personalidade, cabendo, pois, ao próprio sujeito manifestar, perante o registrador civil, a sua vontade de alterar o seu patronímico, sendo certo que essa informação será prestada, pelos cartórios extrajudiciais, aos órgãos públicos, como sói ocorrer nas alterações de nome realizadas no âmbito extrajudicial em geral.

O Enunciado 125, por seu turno, sublinha a possibilidade de a cooperação interinstitucional ser realizada entre órgãos judiciais e serventias extrajudiciais, com vistas à prática dos mais diversos atos previstos no art. 6º da Resolução 350 do CNJ, dentre os quais atos de comunicação e atos de produção de provas. A cooperação interinstitucional entre o Poder Judiciário e as serventias extrajudiciais contribui para a economia processual, visto que promove a coordenação de esforços e o melhor aproveitamento de atos praticados na esfera extrajudicial.

O Enunciado 128 reconhece a admissibilidade de formalização da união estável por meio de registro, no livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais, de instrumento particular que preencha os requisitos do art. 1.723 do CC/02, tendo em vista que, em homenagem à autonomia da vontade e à liberdade das formas, podem os interessados, facultativamente, conferir publicidade e segurança jurídica à união estável diretamente perante o oficial registrador, cabendo-lhe promover o respectivo registro do ato no livro previsto em lei (art. 33, § único, da lei de Registros Públicos), dispensando-se, assim, a intervenção judicial.

O Enunciado 130 contempla a admissibilidade do requerimento pelo interessado "de alteração de seu prenome, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, diretamente perante o registro civil de pessoas naturais, independentemente de decisão judicial, na forma do art. 56 da lei 6.015/73". Com efeito, o pouco conhecido, mas muito útil art. 56 da lei de Registros Públicos autoriza à pessoa natural, estritamente no primeiro ano após atingida a maioridade civil, requerer a alteração de seu nome, sendo desnecessário, segundo a lei, nesse lapso temporal, apresentar motivação. A norma em comento em momento algum exige a intervenção judicial para tanto, razão pela qual se mostra correto admitir que o interessado acesse diretamente o registro civil de Pessoas naturais que, uma vez reconhecendo a sua identidade e a sua livre manifestação de vontade, possa, no prazo previsto em lei, providenciar a averbação legalmente autorizada, prescindindo, nessa hipótese, da intervenção do Poder Judiciário, conforme, a propósito, já se encontra previsto em normas da Corregedoria de alguns entes federativos, como São Paulo.

No que tange à Comissão de Mediação, presidida pelo ministro Marco Buzzi e pelos Professores Kazuo Watanabe e Flavio Tartuce, e que teve como Relatores os Professores Juliana Loss e Humberto Dalla, destaca-se, primeiramente, o Enunciado 161, ao chamar a atenção para que o conceito de acesso à justiça, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da CF/88, "não se esgota no acesso formal ao Poder Judiciário, compreendendo a existência de um sistema organizado e efetivo destinado à garanti de direitos, prevenção de conflitos e resolução pacífica das controvérsias", o que se coaduna, à perfeição, com a principal premissa do presente trabalho. Aferrar-se ao limitado conceito de acesso à justiça como sinônimo de acesso ao Poder Judiciário, gerando a equivocada percepção de que o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional se esgota na jurisdição estatal enquanto prima ratio consiste no primeiro grande óbice à concretização da Justiça Multiportas que precisa ser superado. É, na verdade, uma questão cultural que passou a ostentar o status de política pública de tratamento adequado de conflitos, como bem anota o Prof. Kazuo Watanabe11.

O Enunciado 163 traz proveitosa sugestão, no sentido de que seja celebrada convenção processual que preveja cláusulas escalonadas de produção antecipada de prova seguida de mediação ou negociação entre as partes. Isso porque os litigantes, devidamente esclarecidos a partir das provas produzidas, terão melhores condições para dialogar em bases sólidas com vistas a encetar um acordo que efetivamente lhes pareça justo e atenda a seus legítimos interesses. Não raro, as informações obtidas na produção de provas serão fulcrais para que os litigantes se sintam seguros e confortáveis para celebrar um acordo.

O Enunciado 165, por seu turno, propala a salutar possibilidade do emprego de meios de autocomposição na fase de cumprimento de sentença, em caso de inadimplemento total ou parcial da obrigação prevista no título executivo judicial. Sabendo-se que a taxa de congestionamento na execução alcança patamares ainda mais dramáticos do que na fase de conhecimento, afigura-se de todo benfazeja a iniciativa de conclamar os operadores do Direito a se valer dos métodos autocompositivos inclusive e especialmente na fase de cumprimento/execução, desmistificando a ideia de que o acordo seria adequado para promover o acertamento da relação jurídica e não para regular a forma de cumprimento da obrigação em caso de inadimplemento.

O Enunciado 167, com propriedade, destaca a adequação da mediação extrajudicial para fins de planejamento sucessório sobre conteúdo patrimonial e extrapatrimonial, tendo em vista o seu potencial de prevenção dos conflitos entre herdeiros. Com efeito, a relação entre os herdeiros é de trato sucessivo, sendo, no mais das vezes, parentes, e envolvendo grande carga emocional. Sendo assim, a mediação, mais do que qualquer outro método, se predispõe a lidar com todas as variáveis, de modo a perfazer um planejamento sucessório que efetivamente condiga com os interesses e as peculiaridades de cada herdeiro.

A II Jornada promovida pelo CJF representa a corajosa iniciativa de demonstrar ser possível adotar medidas concretas que, paulatinamente, construam um sistema de justiça mais plural, amplo, coordenado e democrático, que não se limite ao Poder Judiciário ou tenha nele o seu protagonista, mas que efetivamente disponibilize ao jurisdicionado mecanismos extrajudiciais adequados para solucionar os seus litígios e exercer a cidadania. Trata-se de um importante aceno a uma Justiça Multiportas sólida, concreta e acessível. Oxalá as ideias debatidas na Jornada se espraiem e se multipliquem. E que venha a III Jornada!

_____

1 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. "A releitura do princípio do acesso à justiça e o necessário redimensionamento da intervenção judicial na resolução dos conflitos na contemporaneidade". In Revista Jurídica Luso-brasileira. Ano 5. Número 3. 2019. pp. 791- 830.

2 HILL, Flávia Pereira. "Utopia e realidade: o CPC/2015 e o novo perfil de atuação dos operadores do Direito". Empório do Direito. Disponível aqui

3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório Justiça em Números 2021. P. 57.

4 Idem, p. 191.

5 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Áreas Territoriais. Disponível aqui

6 CNJ. Relatório Justiça em Números 2021. P. 192.

7 Como bem anotou o Min. Luis Felipe Salomão, no prefácio da publicação oficial, "os enunciados são fórmulas que sintetizam e apresentam a` comunidade jurídica o entendimento de determinada fonte: um tribunal, um fórum de discussão, uma classe de operadores do Direito. No caso das Jornadas, os enunciados têm natureza doutrinária - servindo de orientação para advogados e juízes sobre temas controvertidos - e são fruto dos intensos debates realizados ao longo de meses nas reuniões prévias e na Plenária, com a participação dos Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Marco Buzzi, Ricardo Villas Bôas Cueva e doutrinadores de renome nacional e internacional". CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciados aprovados na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Disponível aqui

8 HILL, Flávia Pereira. "Desjudicialização e acesso à justiça além dos tribunais: pela concepção de um devido processo legal extrajudicial". Revista Eletrônica de Direito Processual. Volume 22, número 1. Jan-abril 2021. Pp. 379-408.

9 Íntegra da publicação referida na nota vii

10 STJ. 3ª Turma. Resp 1648858/SP. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 20/08/2019. DjE 28/08/2019.

11 WATANABE, Kazuo. Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses - Utilização dos meios alternativos de resolução de controvérsias. In SILVEIRA, João José Custodio da e NEVES AMORIM, Jose Roberto. A Nova ordem das soluções alternativas de conflitos e o Conselho Nacional de Justiça/Ada Pellegrini Grinover... [et al.]. 1 ed. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013, p. 227.

Mediação familiar: Acordo extrajudicial pós sentença

No Código de Processo Civil (CPC) de 2015 foi inserido, nos procedimentos especiais, um capítulo próprio referente às ações de famíliai. Percebe-se, pela leitura dos dispositivos, que o legislador se preocupou em solucionar os conflitos da área de família de forma consensual.

O procedimento especial das ações de família, previsto nos arts. 693 e ss. do CPC, aplica-se aos processos contenciosos de divórcio, separação, de reconhecimento e de extinção de união estável, de guarda, visitação e filiação. Já no caso da ação de alimentos, o procedimento especial é regulado pela lei 5.478/68.

Nesse sentido, a recomendação legislativa é a de que sejam dispostos, pelo juiz, mecanismos de solução consensual de conflitos, como a mediação e a conciliação, ou até mesmo as próprias partes podem requerer ao juiz a suspensão do processo para buscar a mediação extrajudicial, por exemplo.

A questão a ser refletida é se há a possibilidade de um acordo extrajudicial após sentença homologatória nas relações do direito de família.

De acordo com o CPC, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execuçãoii. No entanto, nos casos de acordo extrajudicial, o encerramento de um processo em curso é realizado por meio de uma sentença homologatória da transação com resolução do méritoiii.

Nas ações de família, em especial nas de alimentos, as relações jurídicas são continuativas. Como explica Câmara, "São [...] de natureza obrigacional que se protraem no tempo de um modo tal que o pagamento das prestações não é capaz de extinguir a relação obrigacional. Uma vez efetuado o pagamento, nova prestação surge para ser paga, e assim sucessivamente"iv.

Assim, em ações de alimentos com acordo entre as partes e posteriormente homologado pelo juiz, em que pese tratar-se de sentença de mérito e, portanto, sujeita à coisa julgada, é possível readequar a qualquer tempo, as prestações alimentaresv.

Diante disso, as partes em comum acordo e desde que não haja dano para nenhuma delas, podem buscar nova autocomposição para ajustar os valores das prestações alimentícias, por exemplo.

O STJ confirma o incentivo à autocomposição, pois já reconheceu acordo extrajudicial que foi homologado pelo juiz coordenador do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC), embora houvesse ação de alimentos decidida em sentença homologatória de acordovi.

Nesse caso, o STJ, no REsp 1531131/AC, entendeu que não há nulidade do ato conciliatório posterior à sentença homologatória proferida pelo juiz do processo de família e estimulou outras formas de acesso à justiça. 

É certo que o procedimento não deve seguir o formalismo exacerbado, assim, atos que não seguiram o que estava previsto em lei, mas alcançaram a finalidade, sem causar prejuízo a ninguém, não têm o condão de gerar nulidade.

Cássio Scarpinella Bueno entende que tanto a doutrina como a jurisprudência "são assentes no sentido de que a forma não pode querer se sobrepor ao conteúdo do ato processual quando, ainda que de outra forma, sua finalidade foi atingida"vii..

Destaque-se que a superação do formalismo processual está presente no STJ desde o CPC/73, pois a referida Corte tem entendimento sedimentado de que a nulidade do ato ocorre desde que haja prejuízo para as partes, como demonstrado no Recurso Especial em comentoviii.

No referido REsp 1531131/AC, restou clara a ausência de nulidade da conciliação realizada pelo CEJUSC mesmo que houvesse sentença proferida na ação de alimentos homologada pelo juiz da vara de família.

Importante esclarecer que o CEJUSC é a unidade responsável pela realização ou gestão das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão"ix.

Assim, em cada CEJUSC haverá um juiz-coordenador com competência para homologar os acordos entabulados pelas partes e conduzidos pelo conciliador ou mediadorx. Portanto, caso as partes busquem o Centro Judiciário de Solução de Conflitos, mesmo que haja processos tramitando ou já finalizados em vara de família, não haverá violação à prevenção do juízo de família.

Nesse sentido, o STJ no REsp 1531131/AC entendeu que (...) "O papel desempenhado pelo juiz-coordenador do CEJUSC tão-somente favoreceu a materialização do direito dos pais de decidirem, em comum acordo, sobre a guarda de seus filhos e a necessidade ou não do pagamento de pensão, razão pela qual, passados mais de três anos da homologação da convenção extrajudicial entre os genitores no âmbito do CEJUSC, sem a notícia nos autos de qualquer problema dela decorrente, revela-se inapropriada a cogitação de nulidade do ato conciliatório em face de eventual reconhecimento de desrespeito à prevenção pelo juízo de família".

Dessa maneira, não há nulidade quando as partes buscam acordo extrajudicial mesmo que já tenha uma sentença, visto que os envolvidos, de forma espontânea e em comum acordo, alcançaram a finalidade pretendida, sem sofrerem qualquer prejuízo.

Outra passagem importante do julgado é sobre o acesso à justiça, o qual deve ser compreendido de forma ampla, isto é, não se restringir o acesso à solução de conflitos somente pela via do Judiciário. Em seus estudos, Cappelletti e Garth já observavam que o Judiciário nem sempre é a melhor opção para resolver conflitosxi.

Nesse sentido, surge o chamado Fórum Multiportas que é uma política pública que surgiu nos EUA como instrumento de tratamento de conflitos fora do âmbito do Judiciário. Esse modelo de Fórum foi proposto pelo Emérito Professor Frank Sander da Universidade de Havard, que abordou o tema pela primeira vez na Pound Conferencexii.

Segundo Frank Sander, o conceito de Fórum Multiportas parte da ideia inicial de examinar as diferentes formas de resolução de conflitos, quais sejam: a mediação, a conciliação, a arbitragem e a negociaçãoxiii.

No Brasil, o modelo do sistema multiportas previsto na justiça norte americana foi fonte de inspiração para a Resolução 125/10 do Conselho Nacional de Justiça, que impulsionou a autocomposição.

Dessa maneira, fica à disposição da sociedade civil a escolha de um dos métodos consensuais de solução de conflitos como, por exemplo, a conciliação e a mediação, como formas adequadas de resolver conflitos de interesses.

Observa-se que o STJ, ao admitir o acordo extrajudicial após sentença homologatória, destacou que a sentença judicial não pode ser a única forma de resolver conflitos de interesses e alertou para a necessidade de verificar a política pública do judiciário prevista na Resolução 125/10 do CNJ: "É inadiável a mudança de mentalidade por parte da nossa sociedade, quanto à busca da sentença judicial, como única forma de se resolver controvérsias, uma vez que a Resolução CNJ 125/10 deflagrou uma política pública nacional a ser seguida por todos os juízes e tribunais da federação, confirmada pelo atual Código de Processo Civil, consistente na promoção e efetivação dos meios mais adequados de resolução de litígios, dentre eles a conciliação, por representar a solução mais adequada aos conflitos de interesses, em razão da participação decisiva de ambas as partes na busca do resultado que satisfaça sobejamente os seus anseios".

Ademais, o REsp 1531131/AC demonstra que, mesmo antes de o CPC de 2015 entrar em vigor, o STJ já incentivava a utilização de métodos consensuais de solução de conflitos, com base na Resolução 125/10 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um dos marcos regulatórios da autocomposição. O STJ reconheceu o protagonismo das partes na busca de solução para os próprios conflitos de interesses.

Portanto, a nova era do processo civil permite e estimula, sempre que possível, os procedimentos da conciliação e da mediação, uma vez que a utilização desses instrumentos traz celeridade e economia processual, além do sentido de pacificação entre as partes.

 __________________

i Capítulo X, Art. 693 e seguintes do CPC/15. Disponível aqui. Acesso em: 28 de nov. 2021.

ii CPC.  Art. 203, § 1º Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução. Disponível aqui. Acesso em: 30 de nov. 21.

iii CPC. Art. 487. Haverá resolução de mérito quando o juiz: III - homologar b) a transação [...].

iv CAMARA, Alexandre Freitas. O novo Processo Civil Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 333.

v Maria Berenice Dias explica que nas ações de alimentos cabem qualquer tempo revisão de alimentos desde que observe o princípio da proporcionalidade (...) "Assim, ainda que ocorra coisa julgada em sede de alimentos, prevalece o princípio da proporcionalidade. Estipulado o valor do encargo alimentar, quer por acordo, quer por decisão judicial, possível é a revisão do valor quando houver o desatendimento do parâmetro possibilidade-necessidade. Mesmo que não tenha ocorrido alteração, quer das possibilidades do alimentante, quer das necessidades do alimentado, possível a adequação a qualquer tempo." (Coisa julgada no processo de família. Disponível em: http://www.berenicedias.com.br/manager/ arq/(cod2_569)13__coisa_julgada_ no_processo_de_familia.pdf. Acesso em: 30 nov 2021).

vi REsp 1531131/AC, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 07/12/2017, DJe 15/12/2017.

vii BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

viii "O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento, à luz do princípio constitucional da prestação jurisdicional justa e tempestiva (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF/1988), que, em respeito ao princípio da instrumentalidade das formas (art. 244 do CPC/1973), somente se reconhece eventual nulidade de atos processuais caso haja a demonstração efetiva de prejuízo pelas partes envolvidas".

ix Resolução 125/2010 - Art. 8º Os tribunais deverão criar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Centros ou Cejuscs), unidades do Poder Judiciário, preferencialmente, responsáveis pela realização ou gestão das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão.

x Resolução 125/2010 - Art. 9º Os Centros contarão com um juiz coordenador e, se necessário, com um adjunto, aos quais caberá:

I - administrar o Centro;

II - homologar os acordos entabulados;

III - supervisionar o serviço de conciliadores e mediadores.

xi "[...] certas áreas ou espécies de litígios, a solução normal - o tradicional processo litigioso em juízo - pode não ser o melhor caminho para entender a vindicação efetiva dos direitos". CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 83.

xii Em 1976, lançou o documento de sua autoria denominado Varieties of dispute processing (Variedades do processamento de conflitos), na Pound Conference. Nele o professor Sander lançou o conceito do Tribunal Multiportas - modelo multifacetado de resolução de conflitos em uso atualmente em vários setores dos Estados Unidos e outros países. CRESPO, Mariana Hernandez.Diálogo entre os professores Frank Sander e Mariana Hernandez Crespo: explorando a evolução do Tribunal Multiportas. In Tribunal Multiportas: Investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. (orgs) ALMEIDA, Rafael Alves de, ALMEIDA,Tânia e CRESPO, Mariana Hernandez. Rio de Janeiro: FGV, p. 27.

xiii Idem, p. 32.

Desnecessidade de tentativas consensuais prévias para configuração do interesse de agir*

Na gestão de conflitos, a substituição gradual da mentalidade contenciosa por olhares que contemplam meios consensuais passa, decididamente, pela vivência de experiências proveitosas. Oportunidades não faltam: diversas iniciativas vêm sendo engendradas no país para que desenlaces produtivos tenham lugar a partir da construção de consensos.

Dado o incremento nas estruturas disponíveis para viabilizar meios negociais, é possível conceber a existência de efetivo interesse de agir em juízo apenas quando a parte tiver comprovado tentativas de findar a disputa consensualmente?

A resposta positiva é defendida por alguns estudiosos para quem, antes de procurar o Poder Judiciário, a parte deve demonstrar a efetiva impossibilidade de obter, por si própria, a situação almejada.

Um argumento técnico invocado para justificar essa visão é a exigência de interesse processual, condição da ação essencial para que o feito avance rumo à solução de mérito. O interesse de agir é tradicionalmente compreendido sob duplo aspecto: pela imprescindibilidade de invocar a tutela jurisdicional ("interesse-necessidade") e por ser a via eleita apropriada para a obtenção da medida, que deve ser útil no caso concreto ("interesse-adequação")I.

Apesar de compreensível o posicionamento embasado na falta de interesse de agir, sua prevalência não se consolidou no cenário brasileiro. A tentativa prévia de estabelecer consenso entre as partes, porquanto atrelada à demonstração do interesse de ir a juízo, já esteve presente em alguns dispositivos normativosII.

Com a Proclamação da República, veio a lume em 1890 o Decreto 359, que revogou normas até então existentes sobre a obrigatoriedade da conciliação como procedimento prévio/ essencial na condução das causas comerciais e cíveis; entendeu-se que tal exigência não se harmonizava com a liberdade inerente aos direitos individuais e a experiência teria demonstrado a inutilidade da tentativa conciliatória - além disso, as despesas, as dificuldades e a procrastinação resultantes da iniciativa teriam levantado o clamor geral e levado vários países a modificar ou abolir tal institutoIII.

Como destaca Marco Lorencini, o instituto "interesse de agir", sob o aspecto da necessidade de demandar, perdeu-se no tempo: o Estado-Juiz deixou de exigir "demonstração concreta de que se tentou resolver o conflito de forma diferente da solução adjudicada proposta pelo ente estatal"IV.

Estaríamos voltando agora à visão de outrora?

O prestígio à autocomposição decididamente prevaleceu nas recentes mudanças legislativas: a realização de uma sessão consensual inicial está prevista tanto no Código de Processo Civil como na Lei de Mediação, mas o legislador não chegou a condicionar o ingresso no Poder Judiciário à demonstração de prévia tentativa consensual.

O sistema engendrado por ambas as leis prevê que, proposta a ação, o juiz, ao verificar a presença dos "requisitos essenciais" e não constatando ser caso de improcedência liminar do pedido, mande citar o réu para comparecer à sessão consensualV.

A tentativa de autocomposição não foi eleita como elemento essencial do "interesse de agir"; seu fomento se dará a partir do estabelecimento da sessão consensual como etapa prioritária do processo. Além disso, o CPC contempla exceções à designação da audiência, destacando que ela não ocorrerá (i) se ambas as partes manifestarem expressamente seu desinteresseVI ou (ii) se não for admissível a autocomposiçãoVII.

Outra indicação de que as alterações legislativas não vincularam a tentativa de autocomposição como parte do interesse de agir é o fato de que a ausência do autor à sessão consensual não gera a extinção do processo sem resolução de mérito. A falta injustificada à audiência conciliatória é considerada ato atentatório à dignidade da justiça e gera como sanção, tanto para o autor como para o réu, a incidência de multa de até 2% da vantagem econômica pretendida ou do valor da causaVIII.

Vale também destacar que providenciar a adequada filtragem das disputas para encaminhá-las à composição por meios consensuais é muito importante. A ponderação sobre a efetiva possibilidade negocial em cada caso concreto é primordial para a proveitosa adoção de meios consensuais. Se na petição inicial houver resistência à autocomposição, por exemplo, embasada no descumprimento de acordos anteriores, não poderá ser apropriado afastar desde logo a designação da sessão consensual? A falta de intenção negocial e a concreta sinalização de má-fé indicam que sim; afinal, a autonomia da vontade e a boa-fé são princípios inerentes à conciliação e à mediaçãoIX.

Como se nota, fatores diversificados podem levar à conclusão sobre não ser adequado concentrar esforços nos meios consensuais em certo momento. Se uma parte, por exemplo, atuou reiteradamente de má-fé e violou pactos anteriores, a outra reputará essencial contar com uma decisão impositiva da autoridade estatal. Revela-se crucial que os meios consensuais sejam usados de modo adequado na administração das controvérsias, sob pena de passarem a ser vistos como geradores de uma fase inútil que apenas prejudica a duração razoável do processoX.

Esse entendimento, porém, pode ser questionado nos tempos atuais. Diante de tamanho fomento à adoção de meios extrajudiciais de composição de conflitos, será que a obrigatoriedade de tentativas consensuais prévias à provocação da jurisdição não se revela a melhor iniciativa?

A pergunta evoca outra, já que é comum questionar a maneira apropriada de inserir a mediação no contexto geral de tratamento de conflitos: deve a legislação exigir que as pessoas se submetam a um procedimento consensual prévio ou compete ao juiz, caso a caso, incentivar sua utilização, respeitando a liberdade das partesXI?

A obrigatoriedade se revela consentânea com a autodeterminação das partes? Certamente não. Além disso, há dúvidas quanto à eficácia da mediação compulsória: havendo obrigatoriedade, as partes não têm motivação suficiente para chegar a uma solução negociada, sendo a fase consensual apenas mais uma etapa a ser superada; a partir do momento em que há voluntariedade, as partes consideram a mediação atraente por fatores como o fato de poderem controlar o procedimento e assumir a responsabilidade de resolver os próprios problemasXII.

A voluntariedade é nota essencial da mediação porque negociações não podem prescindir da aceitação expressa dos participantes: eles devem escolher o caminho negocial e se engajar na conversação durante o procedimentoXIII.

Vale ressaltar que, mesmo nos ordenamentos jurídicos em que se exige a realização de sessão consensual como requisito à apreciação da demanda, a obrigatoriedade não ultrapassa o primeiro encontro: neste, as partes podem manifestar sua negativa em participar das negociações facilitadas pelo terceiro imparcial, optando por interrompê-las quando desejaremXIV.

E não poderia ser mesmo diferente: como a disposição de participar é crucial para que haja tratativas eficientes, a imposição é incompatível com a mediação. Para que as sessões consensuais sejam proveitosas, sua ocorrência deve se verificar de maneira não impositiva, sob pena de comprometimento da livre manifestação de vontade e da obtenção de consensos reaisXV.

Além disso, impor a adoção de meios consensuais é medida que tende a gerar antipatia quanto às iniciativas negociais e enseja efeito contrário ao pretendido. Não há como impor a vontade de conversar e negociar: o engajamento precisa ser genuíno para que o diálogo possa avançar de forma proveitosa.

Quando a autocomposição é imposta ela perde sua legitimidade, já que as partes não são propriamente estimuladas a compor seus conflitos, mas coagidas a tanto; essa situação, que pode ser denominada "pseudoautocomposiçãoXVI" - ou, em um neologismo, "coerciliação" - é altamente criticável.

Como bem destaca Fabiana Spengler, "o risco de introduzir a mediação no sistema jurisdicional é reduzi-la à condição de um mero instrumento a serviço de um Sistema Judiciário em crise, mais do que da paz social"XVII.

Por fim, exigir a demonstração da tentativa negocial ensejará um obstáculo para as pessoas necessitadas de acesso à justiça: a falta de colaboração da pessoa resistente ao meio consensual terá como recorrente efeito a recusa em deixar registrada sua negativa. Como alguém poderá provar que tentou negociar se o outro lado não disponibilizar instrumentos aptos a atestar a rejeição?

O caminho mais condizente com os meios consensuais é providenciar e divulgar, ao máximo, iniciativas profícuas, além de incentivar partes e advogados/defensores a conhecê-losXVIII.

Para que a mediação e outros meios consensuais sejam prestigiados, é preciso investir em iniciativas de conscientização, informação e disponibilização de oportunidadesXIX com pleno respeito aos princípios inerentes aos meios consensuais. Quanto mais iniciativas proveitosas e respeitosas forem vivenciadas, mais as pessoas escolherão a mediação como trilha a ser percorrida na construção de valiosos consensos.

 _____________

I TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6ª ed. São Paulo: Método, 2021, p. 116.

II TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6ª ed. São Paulo: Método, 2021, p. 118.

III BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado de Direito judiciário do trabalho. São Paulo: LTr, 1995, p. 70.

IV LORENCINI, Marco Antônio Garcia Lopes. "Sistema multiportas: opções para tratamento de conflitos de forma adequada". In SALLES, Carlos Alberto de; LORENCINI, Marco Antônio Garcia Lopes; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (coords.). Negociação, mediação e arbitragem: curso de métodos adequados de solução de controvérsias. v. 1, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 43.

v CPC, art. 334; Lei n. 13.140/2015, art. 27.

VI CPC, art. 334, §2º, I, e §5º.

VII CPC, art. 334, §4º, II.

VIII CPC, art. 334, §8º.

IX TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6ª ed. São Paulo: Método, 2021, p. 127.

X TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6ª ed. São Paulo: Método, 2021, p. 127-128.

XI TARTUCE, Fernanda. Op. cit., p. 326.

XII LOPES, Dulce; PATRÃO, Afonso. Lei da Mediação comentada. Coimbra: Almedina, 2014 (edição eletrônica - comentário ao art. 4.º).

XIII TARTUCE, Fernanda. Op. cit., p. 328.

XIV TARTUCE, Fernanda. Op. cit., p. 329.

XV TARTUCE, Fernanda. Op. cit., p. 330.

XVI TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6ª ed. São Paulo: Método, 2021, p. 90.

XVII SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação de conflitos: da teoria à prática. 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 27.

XVIII TARTUCE, Fernanda. Op. cit., p. 330.

XIX TARTUCE, Fernanda. Op. cit., p. 336.

A efetividade da utilização do Visual Law como técnica facilitadora da comunicação jurídica

Em sua clássica obra, Tim Brown1 desenvolve sua teoria sobre o Design Thinking: uma metodologia que se utiliza do design para desenvolver soluções inovadoras para todas as áreas do pensamento. Segundo Tim Brown, design possui um conceito muito mais amplo que estética: design é, sobretudo, desenvolver produtos inovadores atendendo às necessidades humanas com os recursos técnicos disponíveis, considerando as restrições práticas dos negócios, integrando o desejável do ponto de vista humano ao tecnológico e economicamente viável.2

Design Thinking, portanto, seria uma metodologia para se encontrar soluções inovadoras a uma variedade de problemas, explorando as capacidades intuitivas das pessoas, reconhecendo padrões e desenvolvendo ideias que tenham um significado emocional além do funcional.3

Focando-se em alguns dos seus conceitos fundamentais, tais como simplicidade, foco na pessoa, experiência do usuário e inovação, qualquer profissional pode encontrar melhores soluções aos problemas de seus clientes.4

A metodologia do Design Thinking passa por 5 etapas:5 a) empatia: entendendo melhor as necessidades do cliente a partir do processo de se olhar a situação pela  perspectiva dele; b) definição dos problemas: após se colocar no lugar do cliente, é possível definir de forma clara os problemas a serem solucionados; c) criação de ideias: por intermédio de uma equipe multidisciplinar será possível imaginar possíveis soluções inovadoras para o caso; d) prototipagem: concretiza-se as melhores ideias imaginadas na fase anterior; e) testagem: os protótipos são submetidos ao cliente para que sejam identificadas possíveis melhorias a serem incorporadas.

 (Imagem: Divulgação)

Fonte: autoria própria(Imagem: Divulgação)

 

Como o Design Thinking trouxe a possibilidade de se utilizar a metodologia do design a qualquer área, juristas desenvolveram o chamado Legal Design.

A Universidade de Stanford, nos Estados Unidos da América, foi quem primeiro associou o Design Thinking ao Direito, por intermédio de seu Legal Design Lab. O Legal Design Lab (Laboratório de Legal Design) foi fundado em 2013, reunindo designers, advogados e tecnólogos com o objetivo de promover inovação jurídica e o acesso à justiça.6

 (Imagem: Divulgação)

Fonte: The Legal Design Lab(Imagem: Divulgação)

 

A missão do Legal Design Lab é, por meio do design exploratório e da pesquisa empírica centrada no ser humano, desenvolver soluções inovadoras para serviços jurídicos.7

Diversas soluções já foram desenvolvidas pelo laboratório de Stanford, como a Navocado8, uma plataforma virtual para criar e publicar melhores guias para processos judiciais, com triagem passo a passo visual e interativa e guias de processo.

 (Imagem: Divulgação)

Fonte: Legal Design Lab (tradução própria)(Imagem: Divulgação)

 

Legal Design é, portanto, o Design Thinking aplicado ao Direito, que considera as pessoas usuárias da lei (advogados, juízes, cidadãos, consumidores, gestores) como centro para o desenvolvimento de soluções jurídicas.9

Um método utilizado no Legal Design é o Visual Law (Direito Visual), que tem como objetivo a simplificação do jargão jurídico, facilitando a comunicação entre advogado e cliente e, também, entre advogado e julgador.10

Segundo Dierle Nunes e Larissa Holanda Andrade Rodrigues11, a técnica do Visual Law:

[...] se altera diante do usuário do documento jurídico. Petições: possuem como destinatários juízes; contratos: partes que geralmente são leigas no assunto; pareceres: indivíduos interessados em obter uma opinião jurídica ou informação sobre o tema sem que para isso tenha que dominar termos técnicos, dentre inúmeras outras possibilidades. A técnica do design determina que para a utilização dos meios audiovisuais, antes de se pleitear a estética, é preciso atingir a efetividade da informação conforme o destinatário.

A técnica do Visual Law é de suma importância na advocacia, pois: a) simplifica a linguagem jurídica para os clientes/jurisdicionados e; b) garante a efetivação do contraditório, já que a facilitação da linguagem por meio de recursos de áudio e vídeo permite que os advogados exerçam maior influência na decisão judicial.12

Em 23 de abril de 2021, Bernardo Azevedo e Ingrid Barbosa13 publicaram interessante pesquisa empírica em que se verificou qual a visão da magistratura federal acerca da utilização de elementos visuais nas petições dos advogados.

Na pesquisa, foram entrevistados 147 magistrados e magistradas federais, que responderam ao questionário enviado pelos pesquisadores no período compreendido entre maio e novembro de 2020.

Segundo a pesquisa, para 77,12% dos participantes, os elementos visuais facilitam a análise da petição, desde que utilizados com moderação.

Embora estudiosos do Visual Law apontem a utilização dos QR Codes como forma de facilitação da comunicação com os magistrados14, 39,2% responderam que estes estão entre os recursos que os juízes federais menos apreciam em petições. Além deles, 34,6% dos participantes responderam não apreciar vídeos.

Quando perguntados acerca da preferência de petição para a análise, 49% dos magistrados selecionaram o modelo tradicional de petição como sendo o mais agradável para leitura, na qual só havia texto.

Segundo Cristiane Iwakura, o Visual Law é compreendido, muitas vezes, de forma reduzida e equivocada atribuindo-se tal fato a três principais fatores: 1) pouco aprofundamento sobre a técnica, seus conceitos e fundamentos; 2) conhecimento restrito sobre modelos de manifestações jurídicas com um inadequado uso da técnica do Visual Law: peças "carnavalescas", mal estruturadas, desarmônicas, e/ou com o uso excessivo de recursos visuais; 3) crenças limitantes que geram uma forte barreira cultural em relação à introdução das novas tecnologias.

Considerações finais

A técnica do Visual Law, embora seja considerada um elemento facilitador da comunicação entre advogados e magistrados, ainda não está sendo bem aceita pelos magistrados brasileiros.

Tal fato se deve ao parco conhecimento dos advogados acerca da aplicação da técnica, aliado à resistência por parte dos magistrados em relação aos elementos visuais, bem como ao tempo adicional gasto na interpretação destes.

A zona de conforto acerca da utilização de modelos tradicionais de petições prejudica a exploração da potencialidade dos elementos visuais no âmbito do Poder Judiciário brasileiro e representa um obstáculo a ser enfrentado pelos aplicadores do direito.

O caminho para o alcance da plenitude da utilização de técnicas efetivas de Visual Law está na transformação da mentalidade dos operadores do direito por meio da capacitação dos sujeitos do processo para tanto.

*Lucélia de Sena Alves é mestre em Direitos Fundamentais, da linha de Direito Processual Coletivo, pela Universidade de Itaúna (2014). Professora da Escola Superior da Advocacia de Minas Gerais. Professora do curso de Pós-graduação da PUC Minas. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro da Comissão de Processo Civil da OABMG. Advogada no escritório Sena & Alves Advocacia.

__________

1 BROWN. Tim. Design Thinking [recurso eletrônico]: uma metodologia poderosa para decretar o fim das velhas ideias. Tradução de Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.

2 BROWN. Tim. Design Thinking [recurso eletrônico]: uma metodologia poderosa para decretar o fim das velhas ideias. Tradução de Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018, p. 19-20.

3 BROWN. Tim. Design Thinking [recurso eletrônico]: uma metodologia poderosa para decretar o fim das velhas ideias. Tradução de Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018, p. 20.

4 PEREIRA, Filipe; MONTEIRO, Marisa. Legal Design: instrumento de inovação legal e de acesso à justiça. In MALDONADO, Viviane Nóbrega; FEIGELSON, Bruno. Advocacia 4.0. [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 2608.

5 PEREIRA, Filipe; MONTEIRO, Marisa. Legal Design: instrumento de inovação legal e de acesso à justiça. In MALDONADO, Viviane Nóbrega; FEIGELSON, Bruno. Advocacia 4.0. [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 2630-61.

6 GABEL, Kathleen. Law + Design- Summit. Disponível aqui. Acesso em 05 out. 2020.

7 LEGAL DESIGN LAB. Our Mission. Disponível aqui. Acesso em 05 out. 2020.

8 Disponível aqui. Acesso em 05 out. 2021.

9 PEREIRA, Filipe; MONTEIRO, Marisa. Legal Design: instrumento de inovação legal e de acesso à justiça. In MALDONADO, Viviane Nóbrega; FEIGELSON, Bruno. Advocacia 4.0. [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 2752.

10 NUNES, Dierle; RODRIGUES, Larissa Holanda Andrade. O contraditório e sua implementação pelo design: design thinking, legal design e visual law como abordagens de implementação efetiva da influência. In. NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique dos Santos; WOLKART, Erik Navarro. Inteligência Artificial e Direito Processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 239.

11 NUNES, Dierle; RODRIGUES, Larissa Holanda Andrade. O contraditório e sua implementação pelo design: design thinking, legal design e visual law como abordagens de implementação efetiva da influência. In. NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique dos Santos; WOLKART, Erik Navarro. Inteligência Artificial e Direito Processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 241.

12 NUNES, Dierle; RODRIGUES, Larissa Holanda Andrade. O contraditório e sua implementação pelo design: design thinking, legal design e visual law como abordagens de implementação efetiva da influência. In. NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique dos Santos; WOLKART, Erik Navarro. Inteligência Artificial e Direito Processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 257.

13 VISUAL LAW. Elementos visuais em petições na visão da magistratura federal. Disponível aqui. Acesso em 30 set 2021.

14 Ver: ROVER, Tadeu. Advogado usa QR Code em petição para facilitar comunicação com juiz. Acesso em 30 set 2021.

Image