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A ação monitória e a Fazenda Pública sob a perspectiva do CPC

Ação monitória foi introduzida no sistema processual brasileiro pela lei 9.079/95, a qual inseriu as letras A a C, no art. 1.102, do CPC/73, sendo repaginada e modernizada através das mudanças trazidas pelo de CPC/15. Dentro desse contexto legal hodierno, foram incluídas normas que ratificam enunciados de algumas súmulas do STJ (282, 292, 399) e entendimentos jurisprudenciais dominantes na vigência do CPC/73, bem como trouxe novas diretrizes procedimentais em harmonia com as normas fundamentais processuais, sintonizadas com os princípios da primazia do mérito, da cooperação, da boa-fé e da efetividade processual.

A ação monitória, que se processa pelo procedimento especial, constitui-se num meio adequado para que o credor possa, de forma mais célere e desburocratizada, alcançar o adimplemento do seu direito de crédito através da emissão de uma ordem judicial de pagamento direcionada ao devedor. Em caso de descumprimento, o credor, por via oblíqua, obterá a formação do título executivo judicial, sem passar pelas morosas fases do procedimento comum.  Ou seja, o objetivo principal do credor, ao propor a ação monitória, é alcançar a efetivação da obrigação assumida pelo devedor e, de forma subsidiária, criar o título executivo judicial e buscar a satisfação através das medidas judiciais executivas1.

A cognição inicial da ação injuntiva está voltada para analisar a idoneidade do conteúdo da prova documentada, momento em que o juiz, ao fazer a sua valoração sumária, irá se manifestar sobre a probabilidade da existência do direito de crédito.  Em caso de evidência desse direito, será determinada a expedição do mandado monitório contendo a ordem de pagamento de uma obrigação de pagar, de entregar coisa móvel ou imóvel (fungível ou infungível); de fazer ou não fazer (art. 700, CPC). Se o devedor não cumprir voluntariamente essa ordem dentro do prazo legal (15 dias) ou não apresentar sua defesa (embargos monitórios), o mandado monitório será convertido automaticamente em título executivo judicial (art. 701, §2º, CPC), independentemente de qualquer formalidade.

É importante registrar que a leitura da redação do art. 700 deve ser conjugada com o teor do art. 785 que permite o empoderamento do credor, portador de um título executivo extrajudicial, de optar pelo processo de conhecimento para obter a formação de um título executivo judicial, podendo utilizar, inclusive, a ação monitória para alcançar esse objetivo2, cuja faculdade já era permita na vigência do CPC/73, por meio do entendimento jurisprudencial do STJ (Informativo 495/12)3.

Diante dessa nova norma processual do art. 785, do CPC, extrai-se um novo conceito do instituto da ação monitória, mais amplo do que o previsto na redação do art. 700.  Portanto, pode-se considerar a ação monitória como meio adequado para o credor buscar a proteção e reconhecimento do seu direito de crédito de forma menos burocratizada, cujo direito poderá estar fundamentado num título executivo extrajudicial ou numa prova escrita sem eficácia de título executivo.4

Para a utilização desse procedimento especial, com vistas à obtenção da ordem de pagamento por meio de um mandado monitório, é preciso que sejam atendidos os seguintes requisitos: a) o devedor deve ser plenamente capaz; b) o autor deve ser portador de uma prova escrita (documental ou documentada); c) demonstração da verossimilhança da alegação autoral quanto à existência do direito de crédito que contenha uma obrigação líquida e exigível. Presentes tais requisitos, o magistrado, em decisão fundamentada, concederá a tutela de evidência sem a prévia ouvida da parte contrária (art. 9º, parágrafo único, III, CPC), expedindo o mandado monitório contendo a ordem de pagamento (art. 701, CPC).

Feitas essas breves considerações iniciais, passa-se a perquirir sobre a utilização da ação monitória no âmbito da Fazenda Pública. Como dito anteriormente, muitas mudanças foram trazidas para a ação monitória através da lei 13.105/15 e dentre elas estão as normas que se referem à Fazenda Pública, inclusive, ratificando o enunciado contido na súmula 339, passando a ser previsto no art. 700, § 6º, CPC, autorizando a propositura da ação monitória em face da Fazenda Pública, essa considerada a União, os Estados, o DF, os municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas.  Por outro lado, os respectivos entes públicos também poderão propor a ação monitória em face dos particulares para buscar a satisfação do seu direito de crédito.

A presença da Fazenda Pública na ação monitória gera alguns questionamentos polêmicos que merecem destaques para gerar debates propícios a uma interpretação sistematizada com outros dispositivos legais presentes na norma processual civil.

Primeiramente, traz-se aqui reflexões sobre a competência do juízo quando a parte for a Fazenda Pública, em que devem ser observadas as regras de competência absoluta quanto ao critério da pessoa. A ação monitória deverá proposta na justiça Federal (art. 109, I, CF/88 e art. 45, CPC) ou na justiça estadual, na vara especializada determinada pelo regimento interno de cada Tribunal de Justiça (art. 44, CPC), quando se tratar de Estado ou Município e suas respectivas autarquias. Também devem ser respeitadas as regras de competência de foro previstas nos arts. 51 e 52, do CPC.

O segundo ponto a ser trazido para análise é quanto à possibilidade da aplicação do art. 785, do CPC quando a Fazenda Pública for a credora do título executivo extrajudicial, representado pela certidão da dívida ativa por ela criado (art. 784, IX, CPC).

A doutrina apresenta ferrenha divergência sobre esse tema. Marcato (2016) afirma que não há razão para a Fazenda Pública utilizar a faculdade prevista no art. 785 diante das várias prerrogativas processuais que possui através das normas previstas na lei de execução fiscal5.  Em sentido contrário, está a interpretação de Cunha (2019), ao afirmar que a Fazenda Pública poderá renunciar a inscrição do crédito em dívida ativa e optar pela propositura da ação monitória para obter a formação de um título executivo judicial.6 Diante dessa inovação processual, o STJ, através da 2ª turma (REsp 1748849 SP 2018), manifestou-se no sentido de que é possível que a Fazenda Pública possa se utilizar da facultatividade na escolha entre o processo de execução fiscal ou processo de conhecimento pela via da ação monitória7.

Todavia, os pontos mais emblemáticos e que necessitam de profundas e cautelas reflexões estão voltados quando a Fazenda Pública for o sujeito passivo da ação monitória. A lei processual civil traz somente duas normas que tratam desse assunto: a possibilidade da sua propositura (art. 700,6º) e a incidência da remessa necessária na decisão que expede o mandado monitório (art. 701, §4º).  Percebe-se, então, que essas normas são insuficientes para acobertar outras situações processuais da ação monitória proposta em face da Fazenda Pública. Por isso, faz-se imprescindível expor algumas considerações para que se busque alcançar, através de uma intepretação sistemática, a intenção do legislador.

O primeiro ponto reflexivo está na seguinte indagação: ao ser deferida a petição inicial da ação monitória proposta em face da Fazenda Pública, com a concessão do mandado monitório, a citação do ente público será para cumprir, desde logo, a ordem de pagamento ou apenas para apresentar os embargos monitórios? Terá a Fazenda Pública o mesmo tratamento isonômico dado a um particular quando estiver no polo passivo?

Para alcançar a resposta, é preciso buscar uma analogia com os dispositivos presentes no capítulo de processo de execução (art. 910, CPC) e de cumprimento de sentença (art. 535, CPC) em face da Fazenda Pública. Pelos dispositivos legais referenciados, a Fazenda Pública será, respectivamente, citada e intimada, para apresentar os embargos à execução ou apresentar impugnação ao cumprimento de sentença.

Verifica-se, por conseguinte, que dentro das normas processuais que regem a tutela executiva em face da Fazenda Pública, o legislador concedeu-lhe tratamento diferenciado, notificando-a para ofertar a sua resistência à tutela executiva, sem qualquer comando de ordem de pagamento. Ainda que o credor seja portador de um título executivo que contém a certeza plena do seu direito de crédito, a satisfação desse direito ficará suspensa, aguardando as atitudes da Fazenda Pública, que poderá ou não resistir.

De tal modo, se essa prerrogativa processual foi concedida para a Fazenda Pública quando estiver no polo passivo de uma execução, quanto mais numa ação monitória, em que a prova que a fundamenta pode não ter a eficácia executiva e o mandado monitório passa apenas por uma cognição sumária de verossimilhança da existência do direito de crédito.

Portanto, pela interpretação sistemática de tais arts. e pela redação do art. 701, §4º, é razoável entender que a citação do ente público não será diretamente para pagar, mas para apresentar, querendo, os embargos monitórios8. Com isso, a eficácia do mandado monitório ficará suspensa, aguardando o escoamento do prazo de 30 dias para a Fazenda Pública embargar, aplicando-se a prerrogativa do prazo em dobro previsto no art. 183, CPC.

Concluindo-se que o mandado monitório será anômalo para a Fazenda Pública, ou seja, a ordem de pagamento estará sob a condição suspensiva, aguardando o comportamento de inércia ou de apresentação de embargos monitórios, surge uma outra indagação diante da redação do art. 701, do CPC: Quando a Fazenda Pública ficar inerte, o juiz arbitrará os honorários de 5% ou será aplicada a tabela contida no art. 85, § 3º, inserida pelo CPC?

Para responder a esse questionamento, faz-se necessário refletir primeiramente qual o intuito desse arbitramento dos honorários advocatícios, logo no despacho inicial.  Estimular o réu a atender de imediato o mandado monitório, realizando o pagamento da quantia e evitar sua majoração posterior? Ou servir como sanção por não ter resolvido extrajudicialmente seu débito?

Sob a perspectiva da natureza híbrida da ação monitória, por possuir características de tutela cognitiva na sua fase inicial, na análise da evidência do direito de crédito, bem como de tutela executiva ao determinar a ordem de pagamento, verifica-se que o arbitramento inicial dos honorários advocatícios será um adiantamento da sucumbência, em caso de inércia do réu e uma sanção pelo não pagamento voluntário na seara extrajudicial.

Assim, quando é deferida essa tutela de evidência, contendo uma ordem de pagamento para o devedor, há, nessa decisão, um conteúdo obrigacional que será acrescido de honorários advocatícios no percentual de 5%, valor fixo, determinado pelo legislador.  Por isso, entende-se, aqui, que essa omissão do legislador quanto ao valor dos honorários da ação monitória proposta em face da Fazenda Pública, leva à uma interpretação sistemática com a regra específica prevista no citado art. 85, §3º, cujo percentual dos honorários irá variar com base no valor líquido contido no comando judicial.  No bojo desse dispositivo legal consta que nas causas em que a Fazenda Pública for parte, a fixação dos honorários deverá ocorrer de forma diferenciada, a depender do valor constante na decisão de conteúdo condenatório. Portanto, ficando inerte a Fazenda Pública, ou seja, não apresentando os embargos monitórios, o mandado monitório será convertido em título executivo judicial contendo o acréscimo dos honorários advocatícios, não na base do art. 701, mas com fulcro no art. 85, §3º, ambos do CPC9.

Outro ponto que também merece destaque é a análise da remessa necessária na ação monitória. O art. 702, §4º prevê que se houver omissão da Fazenda Pública pela não apresentação dos embargos monitórios, deverá ser realizada a remessa necessária da decisão que concedeu a ordem de pagamento, salvo se for caso de dispensa prevista nos §§ 3º e 4º, do art. 496, CPC, possibilitando, nesse caso, a realização imediata do cumprimento de sentença.

Todavia, a aplicação da remessa necessária não poderá ficar restrita somente quando houver omissão da Fazenda Pública. A interpretação deve ser ampla, observando-se o conteúdo do art. 496, do CPC. Se o ente público for réu da ação monitória e apresentar os embargos monitórios, caso sejam esses julgados improcedentes, a sentença que lhe for desfavorável deverá ser objeto da remessa necessária, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 496, caput, II, CPC. O mesmo entendimento deve ser visto quando a Fazenda Pública for parte autora e o réu apresentar embargos monitórios. Se os embargos forem julgados procedentes, o resultado impedirá que o ente público obtenha a efetividade do seu direito de crédito, aplicando-se a redação do art. 496, caput, I, CPC10.

Em ambas as situações, poderá ser afastada a regra da remessa necessária se recaírem nas exceções previstas no § 3º, ou seja, o valor da obrigação ou do proveito econômico for até o teto legal, a depender do ente público ou; no §4º, quando a decisão judicial estiver em harmonia com os precedentes judiciais previstos nos seus incisos.  Por outro lado, quando a Fazenda Pública ajuizar a ação monitória e for extinta sem resolução de mérito, há julgados no sentido de que não deve ser aplicada remessa necessária do art. 496, do CPC, tendo em vista que não houve qualquer prejuízo para o ente público11.

Não sendo caso de remessa necessária ou havendo a remessa necessária com resultado de confirmação da tutela de evidência, o mandado monitório será convertido em título executivo judicial, cujo cumprimento do título seguirá o rito previsto nos arts. 534 e 535 do CPC12.

Dentro desses imbróglios, observa-se que a aplicabilidade da ação monitória em face da Fazenda Pública deverá ser objeto de estudos mais profundos, com interpretação prudente, observando-se todas as normatizações específicas que envolvem o ente público, sendo normas cogentes, pautadas no interesse público13.

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1 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/15. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021.

2 Nesse sentido, o enunciado 446 do FPPC se pronuncia afirmando que "cabe ação monitória mesmo quando o autor for portador de título executivo extrajudicial".  Acompanha esse mesmo entendimento, o Enunciado 101, da I Jornada de Direito Processual Civil, do CJF: "É admissível ação monitória, ainda que o autor detenha título executivo extrajudicial".

3 Na espécie, o tribunal de origem entendeu que o autor era carecedor de interesse de agir por inadequação da via eleita, uma vez que, sendo possível o procedimento executório de títulos extrajudiciais (notas promissórias), descaberia a via da ação monitória. No entanto, assim como a jurisprudência do STJ é firme quanto à possibilidade de propositura de ação de conhecimento pelo detentor de título executivo - não havendo prejuízo ao réu em procedimento que lhe faculta diversos meios de defesa -, por iguais fundamentos o detentor de título executivo extrajudicial poderá ajuizar ação monitória para perseguir seus créditos, ainda que também o pudesse fazer pela via do processo de execução. Precedentes citados: REsp 532.377-RJ, DJ 13/10/03; REsp 207.173-SP, DJ 5/8/2002; REsp 435.319-PR, DJ 24/3/03, e REsp 210.030-RJ, DJ 4/9/00. REsp 981.440-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 12/4/12.

4 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/15. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021.

5 MARCATO, Antônio Carlos. Procedimentos especiais. 16ª edição. Atlas. São Paulo. 2016.

6 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 16ª edição. Editora Gen Forense. Rio de Janeiro. 2019.

7 PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA PELA FAZENDA PÚBLICA. COBRANÇA DE CRÉDITO FISCAL NÃO TRIBUTÁRIO. MULTA DE TRÂNSITO. POSSIBILIDADE. INTERESSE DE AGIR CARACTERIZADO. 1. Caso em que o Tribunal de origem entendeu inexistente o interesse de agir na pretensão do Município consubstanciada na cobrança das infrações de trânsito praticadas pelo particular, por meio da Ação Monitória. 2. O STJ entende que não se verifica prejuízo para o direito de defesa com a escolha do rito da Ação Monitória, que é mais demorado que o rito da Ação de Execução de Título Extrajudicial. precedentes: REsp 1281036/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 24/05/2016; AgRg no AREsp 148.484/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 28/5/2012; AgRg no REsp 1.209.717/SC, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 17/9/2012. 3. Nesse sentido, o enunciado 446 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: "Cabe ação monitória mesmo quando o autor for portador de título executivo extrajudicial". Ainda, o enunciado 101 da I Jornada de Direito Processual Civil, do Conselho da Justiça Federal: "É admissível ação monitória, ainda que o autor detenha título executivo extrajudicial". 4. A Fazenda Pública pode valer-se da execução fiscal para os créditos fiscais (tributários ou não tributários) decorrentes de atividade essencialmente pública. Os referidos créditos devem ser inscritos em dívida ativa, a fim de possibilitar o ajuizamento da Execução Fiscal. Contudo, não ha impedimento para que a Fazenda Pública, em vez de inscrever o crédito em dívida ativa, proponha Ação Monitória, desde que possua prova escrita do crédito, no intuito de obter título judicial e promover, em seguida, o cumprimento de sentença. Isso porque quem dispõe de título executivo extrajudicial pode, mesmo assim, propor ação monitória. 5. Recurso Especial provido. (STJ - REsp: 1748849 SP 2018/0147055-0, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 4/12/18, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/12/18).

8 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/15. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021.

9 AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. DOCUMENTOS HÁBEIS A PROVAR A DÍVIDA COBRADA. JUROS DE MORA. Apela o Município réu da sentença que julgou procedente o pedido, para converter o mandado inicial em mandado executivo. O contrato de execução de serviços e a nota fiscal que instruem a petição inicial constituem prova escrita sem eficácia de título executivo, ou seja, exatamente o requisito exigido pelo Código de Processo Civil para quem pretende o pagamento de quantia em dinheiro mediante o ajuizamento de ação monitória. Rejeita-se, pois, a preliminar de carência da ação. No mérito, não há como descaracterizar a mora do apelante com base nos fragilíssimos argumentos de que a apelada não foi receber o valor devido, nem informou a conta para depósito. A incidência dos juros de mora está expressamente prevista tanto no contrato de execução de serviços quanto no Edital de Licitação. Não se pode isentar o apelante dos encargos moratórios previstos no contrato por ele livremente celebrado, pois isso daria ensejo ao enriquecimento ilícito do Município em detrimento da empresa que lhe prestou serviços. A verba honorária foi fixada nos percentuais mínimos do art. 85, § 3º do CPC, de modo que não há motivo para excluí-la, nem para reduzi-la. Recurso desprovido, nos termos do voto do desembargador relator. (TJ-RJ - APL: 00241538620158190028, Relator: Des(a). RICARDO RODRIGUES CARDOZO, Data de Julgamento: 09/03/2021, DÉCIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 15/03/2021).
REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. DÉBITO COMPROVADO E PARCIALMENTE RECONHECIDO. PAGAMENTO EXIGÍVEL. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS EM CONFORMIDADE COM O LIMITE LEGAL. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. 1) Fundada a ação monitória contra a Fazenda Pública em documentos idôneos e hábeis à comprovação da relação contratual estabelecida entre as partes, inclusive com o reconhecimento de parte do débito, inarredável a obrigação de pagamento, sob pena de caracterizar enriquecimento ilícito por parte da Administração Pública; 2) Nas ações em que a Fazenda Pública for vencida, os honorários sucumbenciais devem ser estabelecidos de acordo com os critérios previstos no art. 85, § 3º, incisos I a V, do CPC, não se cogitando a possibilidade de redução quando observados os limites legais. 3) Reexame necessário não provido e apelo voluntário prejudicado. (TJ-AP - REO: 00087443020178030001 AP, Relator: Desembargador ROMMEL ARAÚJO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 09/04/2019, Tribunal).

10 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/15. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021.

11 REEXAME NECESSÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO. AÇÃO MONITÓRIA AJUIZADA PELA FAZENDA PÚBLICA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. DESCABIMENTO DO REEXAME NECESSÁRIO. Não há reexame necessário de sentença que, em ação monitória ajuizada pela Fazenda Pública, julga extinto o processo, sem exame de mérito. Exegese do art. 496 do NCPC/2015.REEXAME NECESSÁRIO NÃO CONHECIDO. (TJ-RS - REEX: 70072259716 RS, Relator: Eduardo Uhlein, Data de Julgamento: 09/08/2017, Quarta Câmara Cível, Data de Publicação: 31/08/2017).

12 EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA - IMPUGNAÇÃO - AUSÊNCIA - CONSTITUIÇÃO DE PLENO DIREITO O TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL - OBRIGAÇÃO DE PAGAR QUANTIA CERTA - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA (ARTIGOS 534 E 535 DO CPC) - IMPOSSIBILIDADE DE PAGAMENTO VOLUNTÁRIO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Não apresentados os embargos à ação monitória, constituir-se-á de pleno direito o título judicial, devendo o credor apresentar memória de cálculo e requerer o cumprimento da sentença por quantia certa contra a Fazenda Pública, a qual poderá impugnar a execução no prazo de trinta dias, e, eventual débito ser quitado por meio de precatório ou requisição de pequeno valor, conforme o caso, nos termos dos artigos 534 e 535 do Código de Processo Civil.(TJ-MG - AC: 10352160066994001 MG, Relator: Edilson Olímpio Fernandes, Data de Julgamento: 26/3/19, Data de Publicação: 5/4/19)

13 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/2015. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021.

Desconstruindo A Noção De Precedentes Judiciais E Construindo Técnicas De Padronização Decisória

Desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que trouxe novidades como as súmulas vinculantes e a repercussão geral, começou-se a ensaiar no direito brasileiro a construção de uma teoria dos precedentes judiciais. Com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, alguns autores[i] chegaram a afirmar que tal teoria não só estava construída, como também estava devidamente aplicada no então novo texto legal e seria adequada ao marco teórico do Estado Democrático de Direito.

Após 5 anos de vigência do CPC, não seria ousadia concluir que a noção de precedentes judiciais não passou mesmo do ensaio iniciado em 2004. De fato, houve, com a promulgação do CPC, uma considerável mudança no que concerne à relevância da jurisprudência e quanto aos meios para construir uma jurisprudência uniformizada e garantir sua aplicação aos demais casos. Mas seria completamente equivocado compreender tal mudança como a implementação de uma teoria dos precedentes judiciais.

A palavra “precedente” se refere àquilo que é prévio, que precede, que antecede. E não é isso que criamos no nosso sistema. Neil MacCormick e Robert Summers afirmam que os precedentes são decisões passadas que servem de modelo para decisões futuras e que uma parte da razão humana consiste, exatamente, em utilizar lições do passado para resolver problemas atuais e futuros[ii].

A partir da compreensão do conceito de “precedente”, torna-se possível compreender que isto não existe no direito brasileiro e que o que CPC/2015 não criou um sistema de aplicação dos julgados passados aos casos futuros. O que é chamado de precedente sequer precede à alguma coisa. Sabe-se que um determinado julgado será chamado de “precedente vinculante” antes mesmo que ele seja julgado, desde o momento em que se instaura um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, um Incidente de Assunção de Competência ou se afeta determinada matéria em Recursos Especial ou Extraordinário Repetitivos, ou seja: antes mesmo que esse julgado possa preceder a qualquer outro procedimento.

Criaram-se, na verdade, padrões de decisão e mecanismos para construir provimentos jurisdicionais padronizados. Por isso, a sugestão já adiantada no título deste artigo é que seria correto compreender que nossa legislação deixou de lado a noção de precedentes judiciais e começar a reconhecer que, na verdade, trabalham-se técnicas de padronização decisória.

Isso fica ainda mais claro quando se constata a utilização de inteligência artificial nos julgamentos, o que já foi implementado pelo Supremo Tribunal Federal, que adotou o robô Victor, ainda em fase de treinamento, como ferramenta de leitura de autos processuais, identificador e classificador de demandas idênticas que tragam questões previstas em teses de repercussão geral. Ferramentas semelhantes também já são adotadas nos Tribunais estaduais[iii], permitindo, assim um eficiente “julgamento massivo de demandas aparentemente repetidas ou iguais (repetitivas), cenário em que um sem-número de casos serão decididos por um só clique”[iv].

Portanto, o que se chama de aplicação de precedentes é, em verdade, uma aplicação mecânica de um provimento jurisdicional, construído por meio de uma técnica destinada a uniformizar entendimentos judiciais, a outros casos, normalmente de forma massiva. Ou seja: estabelece-se um padrão, um modelo de julgamento para ser adotado em outros procedimentos considerados idênticos. Isso representa, em verdade, um resgate ao direito jurisprudencial mecânico do common law inglês.  

Antes mesmo da vigência do CPC atual, Dierle Nunes já apontava não existir, no Brasil, “uma teoria idônea dos precedentes, ocorrendo uma formação equivocada de padrões decisórios e uma preocupante aplicação mecânica desses padrões pelos julgadores do primeiro e segundo grau”[v], o que significa que houve pouca mudança com o CPC/2015.

Vale lembrar que o art. 926 do CPC determina que “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” e que este artigo faz parecer que buscamos aquela integridade trabalhada por Ronald Dworkin, capaz de estruturar um sistema de precedentes.

Dworkin apresenta uma visão historicista da construção do Direito, em que se alcançaria uma única resposta correta para os problemas jurídicos a partir de uma análise histórica das decisões judiciais, afirmando que se exige que “os juízes estudem os repertórios jurídicos e os registros parlamentares para descobrir que decisões foram tomadas pelas instituições às quais convencionalmente se atribui poder legislativo”[vi].

Não é difícil perceber que as técnicas implementadas no CPC/2015 não pretendem uma construção histórica do provimento jurisdicional, bastando que haja, em verdade, um posicionamento firmado por uma maioria, e que, a depender do procedimento adotado para alcançar esse posicionamento, deverá ser aplicado nos demais casos idênticos, de forma quase mecânica. Por isso, é preciso interrogar o que o nosso legislador quis dizer com essas três palavras: estabilidade, integridade e coerência.

Hoje, passados mais de 5 anos da vigência do CPC, talvez tenha ficado claro que a intenção seja dizer que precisamos de padrões. Criamos mecanismos por meio dos quais conseguimos reunir lides repetitivas, que tratam da mesma questão de direito, para alcançar, para todas elas um mesmo provimento jurisdicional. Ou seja: não se busca no CPC a implantação de um sistema de precedentes.

Assim, a estabilidade, integridade e coerência, previstas no art. 926 do CPC, referem-se apenas à identidade de provimentos jurisdicionais, nada tendo a ver com a integridade de Dworkin, que gostaria que os juízes, na verdade, se preocupassem com a trajetória histórica da jurisprudência, a fim de lhes garantir coerência, o que não impediria que uma decisão atual fosse diversa da anterior. Ele até se vale da ideia de um “romance em cadeia” e em romances podemos ter reviravoltas, certo? Desde que guarde coerência com o restante da história. E, embora o art. 489, § 1º, IV, do CPC, mencione a possibilidade de um juiz deixar de aplicar um entendimento jurisprudencial caso este tenha sido superado, não há esclarecimento no texto legal sobre como pode ocorrer tal superação. Vê-se que no “romance em cadeia brasileiro” não há reviravoltas. Apenas o art. 986 do CPC aborda a possibilidade de revisão de uma tese, admitindo a provocação para tanto apenas do Ministério Público e da Defensoria ou ainda do próprio Tribunal, ou seja, com limitadíssima legitimidade ativa. Essa limitação da legitimidade para postular a superação do padrão faz como que o entendimento jurisprudencial se torne imune à crítica, e, por isso, os procedimentos de resolução de demandas repetitivas não apresentam qualquer compatibilidade com o Estado Democrático de Direito.

Uma teoria dos precedentes não se pode limitar somente à questão da necessária aplicação de uma decisão passada a uma lide futura, sendo necessário analisar como essa decisão passada foi construída. Em um contexto democrático, tem-se por inviável a utilização de uma decisão autoritária como precedente vinculante. Obviamente, tal análise não ocorre no atual sistema de padronização decisória, o qual também inviabiliza a desconstrução do modelo construído, inexistindo técnicas viáveis para tecer críticas sobre os entendimentos uniformizados.

A partir desses esclarecimentos, surge uma nova interrogação: qual é a relevância em compreender que não estamos tratando de precedentes? Tal compreensão faz com que se continue o ensaio de instauração de uma verdadeira teoria de precedentes, buscando-se, ainda, uma teoria que seja adequada ao Estado Democrático de Direito, e não somente uma simples importação do modelo norte-americano e nem se conformando com a ilusória eficácia de julgamentos mecânicos em que tão somente se garante a perpetuação de um entendimento jurisprudencial.

O problema não se encontra na importação de mecanismos de outros modelos jurídicos ou na busca de meios mais céleres para julgar questões repetitivas, mas sim na falta de teorização e pesquisa acerca do problema, além de se encontrar, ainda, na ausência de preocupação em indicar uma teoria que atenda às diretrizes do Estado Democrático de Direito.

Notas e Referências

[i] A título de exemplo, vale mencionar Hermes Zaneti Junior, que, em sua obra “O Valor Vinculante dos Predecentes”, aponta que teria o CPC/2015 alcançado um sistema democrático de precedentes judiciais. (ZANETI JUNIOR, Hermes. O Valor Vinculante dos Precedentes: Teoria dos Precedentes Normativos Formalmente Vinculantes. Salvador: Juspodivm, 2016).

[ii] MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Interpreting Precedents: a comparative study. Londres: Routledge, 1997, p. 1.

[iii] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINSA GERAIS. TJMG utiliza inteligência artificial em julgamento virtual. Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/tjmg-utiliza-inteligencia-artificial-em-julgamento-virtual.htm#.YHWXROhKjIU . Acesso em 13 abr. 2021.

[iv] VIANA, Antônio Aurélio de Souza. Juiz-robô e a decisão algorítmica: a inteligência artificial na aplicação dos precedentes. In: ALVES, Isabella Fonseca (org.). Inteligência Artificial e Processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 37.

[v] NUNES, Dierle. A Litigância de Interesse Público e as Tendências “não Compreendidas” de Padronização Decisória. Revista de Processo, Vol. 199, setembro/2011, p. 82.

[vi] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 272.

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Tutela provisória inaudita altera parte para decretação de divórcio: uma perigosa contradição em termos

"O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se, para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem; não, contudo, a qualquer preço". (José Carlos Barbosa Moreira. O futuro da justiça: alguns mitos)

 

As mudanças nas relações sociais ao longo dos tempos impactam os contornos do Direito Processual e é salutar que assim seja. Afinal, a legitimidade do sistema de justiça repousa precisamente na aptidão e na sensibilidade do operador do Direito para se manter atento a tais mudanças e oferecer respostas efetivas para solucionar os litígios com as especificidades de cada época. Se o destinatário da prestação jurisdicional é o jurisdicionado, membro da sociedade, então, nada mais justo do que o Direito Processual se voltar para os contornos da sociedade em cada momento histórico, adaptando os seus institutos, a fim de que recobrem o grau de efetividade e, por conseguinte, de legitimidade, que é desejável em um Estado Democrático de Direito em contínuo amadurecimento1.

 

E em poucas searas a sociedade mudou tanto e tão profundamente quanto as relações familiares, tanto assim que alguns especialistas preferem aludir a Direito das Famílias2, diante da complexidade e da multiplicidade das feições familiares. Em apertada síntese, podem-se reunir as mudanças verificadas nas relações familiares nas últimas décadas em três grandes eixos, a saber: (i) internacionalização das relações familiares, formando as chamadas famílias transnacionais3; (ii) redução da perenidade dos relacionamentos afetivos, por inúmeras razões que transbordariam os limites do presente trabalho, dentre as quais se destacam a própria aceleração das relações sociais na contemporaneidade; (iii) a revolução tecnológica - que permite conhecer pessoas rapidamente e em qualquer lugar do mundo - e a mudança do papel da mulher na sociedade e a sua inserção do mercado de trabalho4.

Nesse contexto, o casamento, tradicionalmente considerado um dos institutos mais formais do Direito Civil, experimentou sucessivas mudanças e em um ritmo cada vez mais célere em nosso país. Em sucinto retrospecto de alguns marcos históricos, tem-se que, na redação original do art. 315 do Código Civil de 1916, a sociedade conjugal somente poderia terminar com o falecimento de um dos cônjuges, a nulidade ou anulação do casamento ou o desquite. Sobreveio, em 1977 - ressalte-se: 61 anos após a edição do CC/1916 - a EC 9/77, para permitir o divórcio e, a seguir, foi editada a lei Federal 6.515 ("lei do divórcio"), regulando o fim da sociedade conjugal através da separação e do divórcio e eliminando a figura do desquite. A CF/88, por seu turno, na redação original do art. 226, §6º, ampliou o cabimento do divórcio, condicionando-o apenas à prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei (conversão de separação em divórcio), ou comprovada separação de fato por mais de dois anos (divórcio direto). Em 1989, foi editada a lei Federal 7.841, que eliminou a restrição à obtenção do divórcio uma única vez, prevista no art. 38 da lei Federal 6.515/77. Merece destaque, por fim, a edição da E 66/10, que eliminou os requisitos para a decretação do divórcio, tornando-o, assim, um direito incondicionado.

 

Essas mudanças, tanto na sociedade quanto, como consectário, no Direito Civil, também repercutiram no Direito Processual, como não poderia deixar de ser. No lugar da antiga ação de desquite (arts. 155, parágrafo único, 347, parágrafo único e 852, I, CPC/1973), sobrevieram as ações de separação e de divórcio (arts. 1.120 a 1.124, CPC/1973, com a redação dada pela "lei do divórcio"). No CPC/15, além da ação de separação e do divórcio consensuais (arts. 731 a 734), foi previsto, quanto à jurisdição contenciosa, o procedimento especial das ações de família (artigos 693 a 699, CPC/15), cujo ponto central consiste na designação de sessão de mediação, tendo em vista que as relações familiares são de trato sucessivo por excelência e envolvem um plexo de questões, muitas das quais não-jurídicas, mas sim emocionais e afetivas, que precisam ser igualmente trabalhadas e ponderadas para que se alcance a melhor solução possível. Sendo assim, a mediação emerge, em regra, como o método mais adequado para a solução de tais conflitos, em detrimento da solução adjudicada estatal5.

 

Paralelamente, no âmbito extrajudicial, verificou-se a deformalização do processo de habilitação de casamento, com a dispensa da autorização judicial, em regra (art. 1.526, CC/02, com a redação dada pela lei Federal 12.133/09), e a possibilidade de separação e divórcio consensuais por escritura pública, desde que preenchidos os requisitos legais6 (art. 1.124-A, CPC/1973, com a redação dada pela lei Federal 11.441/07 e art. 733, CPC/15).

 

A mais recente mudança na seara processual quanto ao tema não decorreu, contudo, de uma alteração legislativa, mas de uma nova praxe forense, fomentada por parcela da doutrina. Forte na premissa de que, com o advento da EC 66/10, o divórcio se tornara um "direito potestativo", alguns magistrados, em diferentes tribunais do país, vêm decretando o divórcio por meio da concessão de tutela provisória, até mesmo inaudita altera parte.

 

Vale, aqui, uma observação. Ao contrário do que se tem lido, é errado dizer que o direito ao divórcio se tornou potestativo por força da Emenda Constitucional 66. Esse direito sempre foi potestativo.7 Afinal, trata-se do direito subjetivo de se obter uma modificação jurídica independentemente da vontade da outra parte da relação jurídica, que se sujeita a essa modificação. Ocorre que a natureza de direito potestativo que algum direito subjetivo tenha não é suficiente para permitir que se dispense o devido processo. Afinal, é preciso ouvir a outra parte antes de se decidir (salvo nos casos previstos no art. 9º, parágrafo único, do CPC, e com certeza a decretação do divórcio não se enquadra em qualquer delas).

Pense-se, por exemplo, no direito de invalidar negócio jurídico por vício de consentimento. Trata-se, sem qualquer sombra de dúvida, de um direito potestativo.8 Pois ninguém jamais extraiu dessa natureza a existência de um direito à "anulação unilateral" do negócio jurídico, sem oitiva da parte contrária e que fosse capaz de produzir efeitos irreversíveis.

O fato, então, de ser potestativo o direito ao divórcio é, a rigor, absolutamente irrelevante para a solução do problema aqui enfrentado. O que se deve perquirir é a possibilidade (ou não) de, inaudita altera parte, decretar-se o divórcio se esse decreto gera efeitos irreversíveis. Volte-se, então, à exposição do tema central do presente artigo.

 

Não há dúvidas de que o jurisdicionado de nosso tempo clama por uma prestação jurisdicional mais célere, mormente para dirimir relações familiares. No entanto, há que se verificar qual o instrumento processual adequado para atender a essa legítima expectativa, sem, contudo, causar nefasta insegurança jurídica, em prejuízo do próprio jurisdicionado.

A tutela provisória, seja de urgência ou da evidência, é, como o seu próprio nomen juris indica, essencialmente provisória, ou seja, precária, fundada em cognição sumária9, sendo passível de modificação ou revogação a qualquer tempo, conforme expressamente previsto no artigo 296, do CPC/2015.

 

Por outro lado, uma vez decretado o divórcio, há a dissolução do casamento em caráter definitivo e irrevogável, consoante disposto no art. 1.571, §1º, do CC/02. Uma vez dissolvido o casamento pelo divórcio, não é mais possível aos ex-cônjuges retomar o vínculo conjugal pretérito, definitivamente desfeito10. Caso queiram voltar ao estado civil de casados entre si, terão de instaurar novo processo de habilitação de casamento e contrair novas núpcias. Tanto é assim que os cartórios extrajudiciais de Registro Civil de Pessoas Naturais de todo o país têm verificado, nos últimos anos, casais divorciados que se reconciliam tempos depois e pretendem contrair novas núpcias entre si. A rapidez das relações sociais na contemporaneidade, aliada à desburocratização do divórcio, redundou nesse fenômeno.

 

Estabelecendo-se o necessário diálogo das fontes11 entre o Direito Processual Civil, o Direito Civil e o Direito Notarial e Registral, verifica-se que, importando o divórcio, pela legislação civil em vigor, em dissolução definitiva do casamento, sendo, pois, por sua própria ontologia, impassível de restabelecimento posterior, não há como haver a sua decretação através de tutela provisória, essencialmente modificável e revogável a qualquer tempo.

 

A decretação de divórcio em sede de tutela provisória, seja de urgência ou da evidência, gera perigosa insegurança jurídica, podendo conduzir a um verdadeiro impasse. Isso porque, uma vez decretado o divórcio, será ele averbado à margem do termo de casamento, pelo oficial do registro civil de pessoas naturais, na forma do art. 10, inciso I, do CC/02, gerando efeitos irrevogáveis e definitivos. Coerentemente, o art. 800, §2º, do Código de Normas Extrajudicial da Corregedoria-Geral de Justiça do TJ/RJ12 exige que a averbação de divórcio mencione expressamente a data do trânsito em julgado da sentença que o decretou, requisito que não logrará ser preenchido pelo Oficial, caso o divórcio seja decretado em sede de mera tutela provisória.

 

Com efeito, caso o magistrado decrete o divórcio, ainda que em sede de tutela provisória, não mais será juridicamente possível, segundo a própria essência do divórcio, o restabelecimento do casamento. Caso se enfrente a questão sob o prisma estritamente processual (e míope), seria, em tese, perfeitamente possível que, uma vez concedida a tutela provisória de divórcio, fosse ela ser simplesmente revogada pelo juiz, a qualquer tempo, caso as partes reatassem o seu relacionamento com o processo judicial ainda em curso. Contudo, a se enxergar a questão em toda a sua inteireza, voltando-se os olhos também para o Direito Civil e o Direito Notarial e Registral, com o necessário diálogo das fontes, constatar-se-á ser juridicamente impossível o cumprimento de eventual decisão judicial que revogue a tutela provisória de decretação do divórcio, justamente porque o divórcio, instituto de Direito Civil, é, em sua essência, irrevogável.

 

O risco real e iminente é agravado se o divórcio é decretado inaudita altera parte, ou seja, sem que o outro cônjuge nem sequer tenha ciência do ajuizamento da ação, como vem ocorrendo cada vez com maior frequência nos tribunais pátrios. Isso porque, ao ser cientificado do ajuizamento da ação e da concessão da "tutela provisória", a realidade concreta, verificável na rotina dos cartórios extrajudiciais, demonstra que, por vezes, o cônjuge reflete, pondera, se arrepende e contacta o outro, com vistas a tentar uma reaproximação e o reatamento do casamento. E, com a reconciliação do casal, está posto o impasse jurídico criado pelos próprios operadores do Direito.

Eventual mandado de revogação do divórcio dirigido ao Registro Civil de Pessoas Naturais seria juridicamente impossível de ser cumprido, não sob o ponto de vista estritamente processual, mas diante da imperatividade do divórcio segundo a legislação civil e notarial e registral.

 

Forçoso reconhecer que, hoje, se está na iminência da ocorrência de casos como esse, em que as partes venham a noticiar em juízo o reatamento do relacionamento e requerer, agora em conjunto, a simples "revogação da tutela provisória", precisamente com fulcro no art. 296, do CPC/15, o que, reitere-se, se afigura juridicamente impossível, por força do art. 1.571, §1º, CC/02.

 

Pode-se pensar, ainda, em uma série de outros exemplos problemáticos. Figure-se um: decretado o divórcio inaudita altera parte, e averbada a decisão, a outra parte - sabendo estar agora divorciada - casa-se com um terceiro. Na sequência, o autor da ação de divórcio desiste da ação, o que levaria à revogação da tutela provisória, "restaurando" o casamento anterior. O segundo casamento seria válido? Ou seria um casamento nulo e putativo (já que contraído de boa-fé)?

 

Também seria preciso enfrentar o problema dos bens adquiridos na vigência da tutela provisória de divórcio que não viesse a ser, posteriormente, substituída por tutela definitiva do direito ao divórcio. Esses bens se comunicariam? Eles foram adquiridos na constância do casamento ou não? E caso se entenda que não, isso não geraria um imenso risco de fraudes, com as partes, em conluio, valendo-se do processo para obter fim vedado pelo ordenamento jurídico?

 

O Direito Processual se mostra cada vez mais interdisciplinar, dependendo do diálogo profuso e perene com outros ramos do Direito, dentre os quais o Direito Civil e o Direito Notarial e Registral. Não há como pretender que o Direito Processual se sobreponha aos demais ramos do Direito, a ponto de se colocar como um problema insolúvel. O Direito Processual tem por escopo exatamente o contrário: colocar-se a serviço do direito material, sendo o processo uma condição de possibilidade da jurisdição e da realização do direito material, viabilizando a concretização dos direitos das pessoas, tais quais previstos na legislação em vigor. Não tem, e não é desejável que o Direito Processual tenha, a pretensão - ou a prepotência - de revogar ou alterar institutos seculares de outros ramos do Direito. Um Direito Processual cioso de seus escopos e comprometido com a democracia não pretende se sobrepor aos demais ramos e se tornar um problema para a higidez e a unidade do ordenamento jurídico. Ao revés, o Direito Processual deve se colocar a serviço da efetividade e da unidade do ordenamento jurídico, sendo essa uma nobilíssima e difícil missão a ser cumprida.

 

Por tais razões, entende-se que o divórcio não pode ser decretado em sede de tutela provisória, seja de urgência ou da evidência, diante de sua precariedade, menos ainda antes da oitiva do réu. Discorda-se, portanto, do teor do Enunciado 46 do Instituto Brasileiro de Direito de Família13.

 

Vislumbra-se, inclusive, o cabimento de Incidente de Assunção de Competência (artigo 947, CPC/2015), diante da relevante questão de direito envolvida e da grande repercussão social, com vistas a zelar pela segurança jurídica e conter o risco iminente de decisões judiciais que prevejam a "revogação" do divórcio, cujo cumprimento seria juridicamente impossível.

 

Em verdade, há outros instrumentos processuais efetivos para tornar a ação de divórcio mais célere, sem descurar da necessária segurança jurídica e dos ditames do Direito Civil. Em especial, afigura-se cabível o julgamento antecipado (total ou parcial) do mérito (artigos 354 e 355, CPC/2015), após a devida citação do réu (ainda que ficta, excepcionalmente)14. Nesse caso, o divórcio terá sido corretamente decretado em cognição exauriente, sendo averbado à margem do termo, pelo Registro Civil de Pessoas Naturais, após o trânsito em julgado da decisão judicial.

 

Com isso, alcança-se o salutar diálogo entre o Direito Processual, o Direito Civil e o Direito Notarial e Registral, sem que o primeiro, em atitude isolada e prepotente, se arvore em suplantar os demais ramos do Direito, gerando um problema de difícil solução.

 

A interdisciplinaridade e o diálogo das fontes batem à porta e exigem dos profissionais do Direito o detido estudo de diferentes ramos para que a tutela jurisdicional seja não apenas célere, mas também justa e efetiva, como estabelece o art. 6º do CPC. Um objetivo difícil, mas possível de ser alcançado cum granum salis. O jurisdicionado pode estar ávido por soluções a jato, mas cabe aos operadores do Direito sinalizar o que é, em cada caso, uma duração razoável.

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1 HILL, Flávia Pereira. O Direito Processual Transnacional como forma de acesso à justiça no século XXI. Rio de Janeiro: GZ. 2010. pp. 53-58.

2 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 3. Ed. Rio de Janeiro: GEN Forense. 2022.

3 HILL, Flávia Pereira. Op. Cit. pp. 42-43.

4 HILL, Flávia Pereira. "Uns mais iguais que os outros: em busca da igualdade (material) de gênero no processo civil brasileiro". Revista Eletrônica de Direito Processual. Vol. 20. Número 2. Maio-Agosto 2019. pp. 201-244.

5 HILL, Flávia Pereira. "A mediação de conflitos no novo Código de Processo Civil e na lei federal nº 13.140/2015". In MIRZA, Flavio (Org). Direito Processual. Vol. 7. São Paulo: Freitas Bastos. 2015. pp. 177-206.

6 HILL, Flávia Pereira. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. "Inventário judicial ou extrajudicial; separação e divórcio consensuais por escritura pública - primeiras reflexões sobre a Lei nº 11.441/07". Revista Dialética de Direito Processual. n. 50, pp. 42-59.

7 Assim, por exemplo, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Distinção Científica entre Prescrição e Decadência. Um Tributo à Obra de Agnelo Amorim Filho. In: DIDIER JR, Fredie e MAZZEI, Rodrigo (coord.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2ª ed., 20027, p. 230. Como se vê, em texto anterior à Emenda Constitucional 66, já se reconhecia a natureza potestativa do direito ao divórcio.

8 MOTA, Maurício Jorge Pereira da. O negócio jurídico no Código Civil. Quaestio Iuris, vol. 05, n. 01, p. 214.

9 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo Processo Civil Brasileiro. 8. Ed. Barueri: GEN Atlas. 2022. p. 174.

10 Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald salientam que a separação e o divórcio se distinguem pela "possibilidade de reconciliação independentemente de novas núpcias", presente apenas no primeiro instituto. Os autores conceituam o divórcio como "medida jurídica, obtida pela iniciativa das partes, em conjunto ou isoladamente, que dissolve integralmente o casamento, atacando, a um só tempo a sociedade conjugal (isto é, os deveres recíprocos e o regime de bens) e o vínculo nupcial formado ( ou seja, extinguindo a relação jurídica estabelecida). FARIAS, Cristiano Chaves de. BRAGA NETTO, Felipe. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Volume Único. 2. Ed. Salvador: JusPodivm. 2018. P. 1772. Vale registrar, ainda, que se o divórcio produz efeitos irreversíveis, então sua concessão a título de tutela antecipada contraria, de modo expresso, o que dispõe o art. 300, § 3º, do CPC. Restaria, apenas, a tutela da evidência, que pode ser irreversível, mas que também não pode ser deferida pelas razões que no texto serão expostas.

11 "(...) fontes plurais não mais se excluem - ao contrário, mantêm as suas diferenças e narram simultaneamente suas várias lógicas (dia-logos), cabendo ao aplicador da lei coordená-las ('escutando-as'), impondo soluções harmonizadas e funcionais no sistema, assegurando efeitos úteis a essas fontes, ordenadas segundo a compreensão imposta pelo valor constitucional." MARQUES, Claudia Lima. "A teoria do diálogo das fontes hoje no Brasil e seus novos desafios: uma homenagem à magistratura brasileira". MARQUES, Claudia Lima. MIRAGEM, Bruno (Coords). Diálogo das fontes: novos estudos sobre a coordenação e aplicação das normas no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2020. P. 23. Vale, ainda, lembrar, com apoio em Eros Grau, que o direito deve ser interpretado em seu todo, não sendo admissível sua interpretação "em tiras". É o que se colhe do voto por ele proferido no Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3685, relatora a Min. Ellen Gracie, onde se lê: "Ademais, não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. Tenho insistido em que a interpretação do direito é interpretação do direito, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta textos de direito, isoladamente, mas sim o direito - a Constituição - no seu todo".

12 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Código de Normas Extrajudicial. Disponível aqui

13 "Enunciado 46 - Excepcionalmente, e desde que justificada, é possível a decretação do divórcio em sede de tutela provisória, mesmo antes da oitiva da outra parte". INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Disponível aqui.

14 No mesmo sentido, PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. "O divórcio como direito potestativo e a sua decretação através de tutela provisória da evidência: uma análise sob os pontos de vista processual e registral". Empório do Direito. Disponível aqui

A penhorabilidade do bem de residência do fiador segundo a jurisprudência do STF

Embora a 1ª turma do STF tenha reconhecido, em 2018, no julgamento do RE 605.709/SP, a impenhorabilidade do bem de família do fiador em contratos de locação comercial, o tema voltou a ser objeto de análise pela Corte.

A Corte reconheceu repercussão geral do RE 1.307.334 contra decisão do TJ/SP, que manteve a penhora do bem de família do fiador em contrato de locação comercial, razão pela qual o tema foi reapreciado pelo plenário do STF.

O debate sobre este tema possui origem no instituto das impenhorabilidades.

Normalmente, em uma execução, os bens que se encontram na esfera patrimonial do devedor ou de outro responsável pelo cumprimento da obrigação (art. 790), a partir do decurso do prazo legal para pagamento voluntário, sem o seu cumprimento pelo executado, podem ser penhorados.

Entretanto, há determinados bens que fogem à esta regra. Tais restrições estão previstas no art. 833 do CPC e no art. 1° da lei 8.009/90 (lei do bem de família) e constituem restrições ao direito fundamental à tutela executiva.1

O principal fundamento para a existência destas restrições é a dignidade do executado e de sua família, bem como a garantia do mínimo existencial, com base no art. 6° da CF/88.

Araken de Assis2 leciona que o instituto da impenhorabilidade teve origem no Direito Romano:

Mas, foi no direito norte-americano que o instituto se instituiu mais próximo do que conhecemos hoje. A Lei do Texas de 26/1/1839 autorizou resguardar a área de 50 acres, ou terreno na cidade, de valor limitado, e a mobília, utensílios, ferramentas e equipamentos, em alguns casos para o pagamento de dívidas.3

Mais tarde, em 1845, o homestead se incorporou aos demais estados dos EUA, pelo Homestead Exemption Act4 que dispunha sobre limites à penhora de bens a todo cidadão ou chefe de uma família, competente, 50 acres de terra, ou um terreno na cidade, incluindo o bem de família dele ou dela, e melhorias que não excedessem o valor de 500 dólares.5

No ordenamento jurídico brasileiro, a impenhorabilidade do bem de família foi instituído pela primeira vez, no Código Civil de 1916, que instituía em seu art. 70: "É permitido aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com a cláusula de ficar isento de execução por dívidas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio."

Nos contratos de locação, a modalidade de garantia mais comum é a fiança. Por este tipo de contrato, o fiador obriga-se pelo inadimplemento da dívida decorrente do contrato. Sua obrigação, diante do contrato estipulado pelo locador e locatário, passa a ser solidária.

Assim, em eventual demanda proposta para a cobrança dos aluguéis e encargos, o credor pode escolher de quem cobrar: do devedor principal (locatário), ou do(s) fiador(es), podendo, inclusive, executar todos eles.

Embora o ordenamento jurídico proteja a dignidade do devedor e de sua família, por intermédio das impenhorabilidades, no CPC (art. 833) e na lei 8.009/90 (art. 1°), a impenhorabilidade do bem de família é inoponível no caso dos contratos de fiança de contrato de aluguel, conforme exceção prevista no art. 3°, VII, desta lei. Assim, o bem imóvel em que o locatário resida com sua família não pode ser penhorado em execuções de contrato de aluguel, mas o do fiador, sim.

Em 2006, o plenário do STF, no julgamento do RE 407.688, entendeu pela constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação:

FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência.  Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art.3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da lei 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da lei 8.009, de 23/3/90, com a redação da lei 8.245, de 15/10/91, não ofende o art. 6º da Constituição da República" (RE 407.688, rel. min. Cezar Peluso, DJ de 6/10/06).

Em 2010, o tema foi novamente apreciado pelo plenário da Corte que reafirmou o entendimento no sentido de se reconhecer a constitucionalidade do art. 3°, inciso VII, da lei 8.009/90 e, portanto, a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador. Tal entendimento consta em decisão no RE 612.360/SP, de relatoria da ministra Ellen Gracie, publicada em setembro de 2010.

No julgamento do RE 605.709/SP, em 2018, a 1ª turma do STF, por maioria dos votos, entendeu pela oponibilidade da impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação comercial.

Segundo o voto da ministra Relatora Rosa Weber, faz-se necessário impor limites à aplicação do art. 3° da lei 8.009/90, pois o dispositivo não abarca a proteção ao bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício, a fim de que este seja utilizado para satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Ressaltou, ainda, que a penhorabilidade do bem de residência do fiador em contrato de locação fere a isonomia, uma vez que o bem de família do devedor principal estaria protegido pela lei.

Por fim, ressaltou que a penhora do bem de residência do fiador é desproporcional, por existirem outros instrumentos suscetíveis de viabilizar a garantia da satisfação do crédito do locador de imóvel comercial, como: caução, seguro de fiança locatícia e cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento (art. 37 da lei 8.245/91).

Em seu voto, a ministra relatora concluiu:

No meu modo de ver, representa uma injustiça que o devedor possa ter preservado o bem de família e a fiança - que, na sua ratio histórica, era um contrato gratuito - possa sacrificar o patrimônio do devedor. Eu nunca consegui entender isso, máxime quando a fiança, nesses casos, não é uma fiança prestada pelo banco, é uma fiança intuitu personae, são pessoas que se prestam a ajudar as outras para que elas possam alugar um imóvel. Eu tive experiência nesse setor durante muito tempo e, realmente, o contrato é lavrado diretamente com o fiador. Ele não é obrigado a aceitar, mas aceita por razões que não são econômicas, ele aceita para viabilizar que outrem possa alugar um imóvel.

No julgamento do RE 1.307.334, o ministro Alexandre de Moraes concluiu pela penhorabilidade do bem de residência do fiador em qualquer contrato de locação, seja comercial ou residencial, uma vez que "o inciso VII do art. 3º da lei 8.009/90, introduzido pela lei 8.245/91, não faz nenhuma distinção quanto à locação residencial e locação comercial, para fins de excepcionar a impenhorabilidade do bem de família do fiador."  Além disso, ressaltou que a criação de distinção onde a lei não distinguiu, violaria o princípio da isonomia, haja vista que o fiador de locação comercial, embora também excepcionado pelo art. 3º, VII, da lei 8.009/90, não teria o seu bem de residência penhorado e do de locação residencial, teria.

Assim, o atual entendimento do STF segue a maioria dos seus precedentes anteriores, com exceção do caso analisado via RE 605.709/SP, em 2018, da 1ª turma.

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1 DIDIER JR, Fredie et al. Curso de Direito Processual Civil. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 835.

2 ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 2 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p.187.

3 ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 2 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 202. "Tal valor se impôs à consciência humana no período romano das extraordinariae cognitiones, quando, então, o devedor inocente do seu estado de insolvência adquiriu direito à execução patrimonial da cessio bonorum, que, na prática, isentava-o da constrição pessoal e da infâmia, além de conceder o beneficiumcompetentiae. Desenvolveu-se o instituto, no direito comum, até ganhar a dimensão atual, recepcionado nos estatutos processuais. Essa espécie de penhorabilidade "foi franja, bem estreita é certo, que a luta de classes recortou" na responsabilidade patrimonial.

4 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família internacional. Disponível aqui

5 BUREAU, Paul. Le Homestead ou L'insaisissabilité de la Petite Propriété Foncière. Paris: Arthur Rousseau, 1895, p. 63-4.

Linguagem simples no Poder Judiciário e acesso à Justiça

Não é de hoje a preocupação acadêmica e governamental com a adoção, nos textos de interesse público, de uma linguagem acessível ao cidadão. Segundo a organização PLAIN - "Plain Language Action and Information Network", a linguagem simples é a comunicação que a audiência consegue entender da primeira vez em que lê ou ouve. É uma linguagem clara, concisa, bem-organizada, e segue outras práticas apropriadas ao seu conteúdo, área e audiência.

O foco do presente trabalho é a utilização da linguagem simples no âmbito do Poder Judiciário, os documentos e iniciativas que preconizam essa prática e sugestões para seu fortalecimento no futuro. Utilizar linguagem simples e acessível nas decisões judiciais e atos processuais em geral permite ao cidadão uma melhor compreensão de seu conteúdo e, por consequência, uma participação mais informada, consciente e apta a influenciar o resultado do processo.

É certo que, na maior parte das demandas, o jurisdicionado poderá contar com o auxílio de seu advogado. Porém, essa realidade não escusa o Estado-Juiz de elaborar seus pronunciamentos de forma acessível ao cidadão, estabelecendo, muito além de um diálogo com o advogado, também um diálogo com a parte e com a sociedade, e assim viabilizando o exercício do jus postulandi, quando cabível.

O estabelecimento de uma comunicação mais eficiente tem sido um dos principais objetivos perquiridos na seara jurídica nos últimos anos, seja em razão da velocidade da informação que se potencializou com a inserção das novas tecnologias, seja em função da necessidade de se preservar a garantia do amplo acesso à Justiça em meio a estas transformações1. Vale destacar que a técnica do Visual Law incorpora a utilização da linguagem simples como uma de suas ferramentas mais poderosas2, tendo-se ainda como obstáculos questões de ordem cultural que dividem opiniões entre os operadores do direito3.

Não são poucos os documentos, leis e iniciativas públicas, seja em âmbito federal, estadual ou municipal, que visam a fortalecer a adoção da linguagem simples, a exemplo do art. 11 da LC 95/98, dos arts. 5º e 8º, §3º, inciso I, da Lei 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação - LAI), do art. 5º, inciso XIV e art. 6º, inciso VI, da lei 13.460/17 (Lei de Proteção e Defesa do Usuário dos Serviços Públicos), do art. 6º, incisos IV e V, da lei 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD), e do art. 3º, inciso VII, da lei 14.129/21 (Lei do Governo Digital).

Nesse contexto, o PL 6.256/19 conceitua linguagem simples como "o conjunto de práticas, instrumentos e sinais usados para transmitir informações de maneira simples e objetiva, a fim de facilitar a compreensão de textos" e coloca como princípios dessa política nacional (i) o foco no cidadão; (ii) a linguagem como meio para redução das desigualdades e para promoção do acesso aos serviços públicos, transparência, participação e controle social; e (iii) a simplificação dos atos da administração pública federal. Além disso, o projeto enumera formas específicas de operacionalização da linguagem simples. Apesar de ainda estar em tramitação, o PL 6.256/19 serviu de modelo para a política municipal de linguagem Simples instituída na cidade de São Paulo, por força da lei municipal 17.316/20.

No âmbito da Administração Pública, a linguagem simples tem sido cada vez mais incentivada e propagada, tendo-se registro de algumas interessantes iniciativas neste sentido, como: a) Apostila do curso Linguagem simples no Setor Público da Prefeitura de São Paulo4; b) Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização - GESPÚBLICA5; c) Orientações para adoção de linguagem clara, do Estado de São Paulo6; d) Cartilha Linguagem Cidadã, do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná7; e) Cartilha Como usar a linguagem simples, do Laboratório de Inovação e Dados - ÍRIS, da Controladoria e Ouvidoria-Geral do Estado do Ceará8; f) Campanha para incentivar a simplificação da linguagem jurídica, pela AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros9.

Recentemente, veio à tona debate acerca do PL 3.326/21, que traz uma proposta para a inclusão de três parágrafos ao art. 489 do CPC, segundo os quais passaria a constar determinação no sentido de que a reprodução do dispositivo da sentença, nos processos com participação de pessoa física diretamente interessada na decisão, seja feita em "linguagem coloquial, sem a utilização de termos exclusivos da linguagem técnico-jurídica e acrescida das considerações que a autoridade Judicial entender necessárias", de modo que haja plena compreensão dos seus termos "por qualquer pessoa do povo", traduzindo-se eventuais expressões ou textos em língua estrangeira.

Fixa-se aqui uma primeira observação: a redação do projeto traz a expressão "linguagem coloquial", que por sua vez, não pode ser confundida com a linguagem simples (plain language) já definida no início deste ensaio. A linguagem coloquial, também conhecida como linguagem informal, é a variante linguística utilizada com maior frequência no cotidiano, sendo mais despojada, portanto, não adstrita às regras gramaticais10.

Deste modo, nota-se de antemão a impropriedade da expressão empregada no PL 3.326/21, revelando-se mais adequado interpretá-la e corrigi-la como linguagem simples, esta sim, empregada no sentido da técnica adotada para que se confira maior acessibilidade às informações por um público que não tenha formação jurídica.

Não se pode confundir a busca por objetividade e clareza com a exclusão da formalidade e da técnica que for necessária11.

De outro lado, a determinação para que se redija o dispositivo da sentença em linguagem "coloquial" - ou melhor, simples - das sentenças judiciais, não seria suficiente para resolver os problemas de acesso à Justiça.

Mais interessante seria dar continuidade à implementação e desenvolvimento do Visual Law no âmbito do Poder Judiciário, prática observada em diversos tribunais, corporificada a partir da elaboração de resumos12 e de "tópicos-síntese" em sentença e acórdãos13. São maneiras mais efetivas de facilitar a comunicação, utilizando linguagem simples não apenas no dispositivo, mas também na descrição dos pedidos e dos fundamentos, destacando-se os pontos mais relevantes em uma linguagem apropriada para o destinatário da informação.

Destaque-se que a adoção de mecanismos voltados para a simplificação da linguagem não afasta a elaboração de documentos mais técnicos e repletos de liturgias jurídicas em seu inteiro teor, que permanecem nos autos para consulta, quando necessário.

Diante da redação do projeto em análise, abre-se uma possível discussão entre o emprego do "juridiquês" e da linguagem informal no cenário jurídico.

Por "juridiquês" compreende-se a linguagem técnica própria do Direito em seu grau mais complexo, com largo emprego de termos considerados como rebuscados e estrangeirismos, em grande parte advindos do latim. O que parece impressionar do ponto de vista da erudição, em grande parte dificulta uma leitura atenta em um pequeno espaço de tempo, podendo restringir a compreensão de seu teor ou até causar ruídos de comunicação14.

Fato é que o juridiquês e a comunicação informal se situam hipoteticamente em posições extremas e antagônicas que jamais se demonstram apropriadas - ainda mais considerando-se a realidade enfrentada pelo Poder Judiciário.

O número de demandas a serem apreciadas diariamente por magistrados não lhes permite uma leitura densa e demorada. Do ponto de vista da eficiência e da funcionalidade, uma petição simples, concisa, clara e objetiva é muito mais bem recepcionada, tendo maiores chances de gerar os resultados almejados.

Por outro lado, a apresentação de uma petição com o emprego de nenhuma técnica, expressões informais, gírias e uma argumentação não apropriada, não geraria uma boa impressão, podendo igualmente ocasionar uma dificuldade de compreensão pelo magistrado acerca dos fatos narrados. Trata-se, inclusive, de um dos casos mais comuns de inépcia da inicial.

Justamente por esta razão, os cartórios dos juizados especiais costumam disponibilizar modelos de petição para que as partes desassistidas de advogado possam deduzir sua pretensão de forma compreensível, atendo-se aos campos para preenchimento, e contanto com o auxílio dos serventuários em casos de dúvida.

Todavia, como se pretende demonstrar neste trabalho, não se trata de defender o "juridiquês" tradicional ou condená-lo, em nome de uma linguagem simples, mas sim tratar-se de uma questão de equilíbrio e adequação da linguagem diante de diversos contextos fáticos-jurídicos.

A linguagem possui finalidades diversas, sendo imprescindível que o interlocutor faça uma contextualização da mensagem. Assim, não existe uma única resposta correta para o tipo de linguagem que deva ser utilizada ou a modulação a ser empregada. Basta enfocar no interlocutor ou destinatário da mensagem, ou seja, voltar o foco para o usuário do serviço judiciário15.

O que deve existir, de fato, é a compreensão de que nem sempre a linguagem técnica e erudita será efetiva para determinadas situações, do mesmo modo que uma linguagem simples poderá demonstrar-se insuficiente ou inadequada em certas outras ocasiões.

Portanto, a previsão do projeto em comento parece inoportuna da forma como redigida, pois o emprego da linguagem simples pode e deve ser fomentado, mas sem que se estabeleçam determinações e obrigações de forma estanque. A previsão da linguagem clara e compreensível a qualquer cidadão como uma diretriz para os órgãos do Poder Público, tal como prevê o art. 3°, inciso VII, da Lei de Governo Digital, demonstra-se suficiente no plano normativo.

Evidentemente, a implementação de uma cultura no sentido de se prezar pela linguagem simples quando necessária não é uma questão de fácil solução. Se hoje há uma cultura dominante de redação de atos jurisdicionais de forma complexa e inacessível, que todos aprendem como correta desde os tempos da faculdade de Direito, ela só será rompida pelo surgimento de toda uma contracultura de utilização da linguagem simples, prezando-se pelo acesso à justiça, pelo processo participativo e por uma publicidade substancial das decisões judiciais.

Demonstra-se salutar toda iniciativa no sentido de incentivar a disseminação da linguagem simples no Poder Judiciário, na administração pública, nas entidades civis e nas instituições de ensino. Somente a partir deste conjunto de ações e de esforços será possível consolidar uma comunicação mais efetiva, acessível e contextualizada.

Destarte, conclui-se que linguagem simples, tendo em vista a propagação do acesso à Justiça, não é uma questão meramente normativa. É uma cultura que deve ser trazida desde a formação inicial do operador do direito, nas faculdades, e que precisa ser diariamente fomentada, por meio de capacitações e iniciativas da comunidade jurídica. A comunicação é um meio, e não um fim em si mesmo.

______

HILDEBRAND, Cecília Rodrigues Frutuoso; IWAKURA, Cristiane Rodrigues Iwakura. Exclusão digital e acesso à justiça em tempos de pandemia: uma análise sob a ótica dos juizados especiais. Empório do Direito. Disponível aqui

IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Visual Law é modismo? Migalhas - Coluna Elas no Processo. Disponível aqui

3 ALVES, Lucélia de Sena. A efetividade da utilização do Visual Law como técnica facilitadora da comunicação jurídica. Migalhas - Coluna Elas no Processo. Disponível aqui

4 Disponível aqui

5 Disponível aqui

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui

8 Disponível aqui

9 Vide aqui.

10 BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. 1ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

11 Uma interessante análise do Projeto de Lei pelo professor Dierle Nunes pode ser lida aqui

12 Alguns exemplos: aqui e aqui.

13 ALENCAR, Hermes Arrais. Sustentação oral TRF2 - Tema: Tópico Síntese - Ano 2006. Disponível aqui

14 CAMPOS, Hélide Maria dos Santos. Linguagem jurídica com expressões rebuscadas precisa ser repensada. Consultor Jurídico. Disponível aqui

15 IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Legal design e acesso à justiça: criação de sistemas processuais eletrônicos acessíveis e ferramentas intuitivas no ambiente jurídico digital. In: Direito Processual e tecnologia: os impactos da virada tecnológica no âmbito mundial. NUNES, Dierle et. al (org.). Salvador: Editora Juspodivm, 2021, pp. 147-159.

Medidas executivas atípicas: Uma breve retrospectiva dos julgados do STJ e uma aposta para o julgamento do Tema 1137

Desde que o seu uso foi generalizado pelo art. 139, IV, do Código de Processo Civil de 20151, as chamadas medidas executivas atípicas, têm sido alvo de polêmicas tanto na doutrina, quanto na jurisprudência.

Em fevereiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 59412 a qual, dentre outros temas, questionava a constitucionalidade de quatro medidas atípicas: apreensão da carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir; a apreensão de passaporte; a proibição de participação em concurso público e a proibição de participação em licitação pública. As medidas foram consideradas constitucionais pelo Tribunal, nos termos do voto do relator, Ministro Luiz Fux, desde que não avancem sobre os direitos fundamentais e que observem os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Segundo Fux, é inconcebível que o Poder Judiciário, destinado à solução de litígios, não tenha a prerrogativa de fazer valer os seus julgados. O Ministro destacou, contudo, que o juiz, ao aplicar as medidas, deve obedecer aos valores especificados no próprio ordenamento jurídico de resguardar e de promover a dignidade da pessoa humana (art.8º do CPC). Também deve observar a proporcionalidade e a razoabilidade da medida e aplicá-la de modo menos gravoso ao executado (art. 805 do CPC). Nessa direção, a adequação da medida deve ser analisada caso a caso, e qualquer abuso na sua aplicação poderá ser coibido mediante recurso3.

A despeito da relevância deste julgamento, o principal palco de discussão acerca dos contornos do art. 139, IV, do CPC, considerado uma cláusula geral aberta, tem sido o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Ao julgar o Habeas Corpus (HC) 711.1944, por exemplo, o Tribunal decidiu que as medidas executivas atípicas, quando coercitivas, não devem ter limitação temporal. Nessa direção, o Tribunal assentou que não deve haver um tempo pré-estabelecido fixamente para a duração da medida coercitiva, que deve perdurar pelo tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor, de modo a efetivamente convencê-lo de que é mais vantajoso adimplir a obrigação do que, por exemplo, não poder realizar viagens internacionais.

E não é só. Encontra-se pendente na Corte a análise do Tema 1.1375, que vai definir, sob o rito dos recursos repetitivos, "se, com esteio no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil, é possível ou não, o magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade das medidas, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos". Foram selecionados dois Recursos Especiais, 1.955.539 e 1.955.574, como representativos da controvérsia. A relatoria do tema ficou sob a incumbência do ministro Marco Buzzi.

Longe de ofuscar a futura análise do tema pelo STJ, o julgamento da ADI n.5941, que se limitou a proclamar a constitucionalidade do art. 139, IV, do CPC, ressalvando expressamente que sua aplicação deve observar casuisticamente os princípios processuais e constitucionais dos artigos 1º, 8º e 805, do CPC, deixou para o STJ a complexa missão de detalhar quais são os requisitos para a aplicação no caso concreto das medidas executivas ativas.

Considerando o protagonismo do Tribunal da Cidadania na delimitação deste importante instituto, nosso singelo artigo se propõe a recuperar a trajetória das medidas executivas atípicas no mencionado Tribunal como forma de antever o resultado do julgamento do Tema 1.137.

Assim, através da citação de 10 julgados envolvendo a aplicação das medidas executivas atípicas no âmbito do STJ, convidamos o leitor a percorrer novamente esse, desde sempre controverso, mas igualmente instigante, caminho, para, ao final, conhecer a nossa aposta quanto ao julgamento do Tema 1.137.

Em junho de 2018, a 3ª Turma do STJ se deparou com o instituto pela primeira vez. O HC 97.8766 questionava a medida executiva atípica de retenção do passaporte. O relator do recurso, ministro Luiz Felipe Salomão, reconheceu a validade da utilização do uso do habeas corpus para questionar a apreensão de passaporte, uma vez quem, no seu entendimento, a medida limitava a liberdade de locomoção. O HC, no entanto, foi deferido, pois como não havia sido demonstrado o esgotamento dos meios tradicionais de satisfação, a medida não se comprovava necessária. Não obstante, a Turma firmou precedente importante no sentido de que seria ilegal e arbitrária a retenção do passaporte em decisão judicial não fundamentada e sem a observação do contraditório: "O reconhecimento da ilegalidade da medida consistente na apreensão do passaporte do paciente, na hipótese em apreço, não tem qualquer pretensão em afirmar a impossibilidade dessa providência coercitiva em outros casos e de maneira genérica. A medida poderá ser utilizada, desde que obedecido o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência", registrou o voto do relator.

Em dezembro de 2018, ao julgar o HC 99.6067, o Tribunal novamente enfrentou o tema e reconheceu a legalidade da decisão judicial que restringia a saída do país do executado como medida coercitiva indireta para pagamento do débito. Neste caso concreto, o devedor embora tenha alegado o princípio da menor onerosidade, deixou de indicar quais seriam os meios menos onerosos e mais eficazes para a quitação da dívida. A Ministra Nancy Andrighi, relatora do HC, entendeu que essa omissão seria uma conduta violadora aos deveres de boa-fé e de colaboração. Assim, a 3ª Turma denegou a ordem de habeas corpus ao devedor e ressalvou a possibilidade de modificação posterior da medida de constrição caso venha a ser apresentada sugestão alternativa de pagamento.

Logo na sequência, em 2019, seguindo as diretrizes da doutrina, no julgamento do REsp 1782418-RJ8, o Tribunal delineou os requisitos necessários para a adoção de medidas atípicas pelo juízo, quais sejam: (i) esgotamento dos meios tradicionais para satisfação do crédito, (ii) devido processo legal, (iii) decisão fundamentada, (iv) não indicação de bens à penhora, (v) indícios de ocultação de patrimônio.

Neste mesmo ano, 2019, no julgamento do AREsp 1.495.012/SP9, considerado paradigma, o STJ afastou a utilização das medidas executivas atípicas como penalidade processual, bem como determinou que as medidas atípicas de satisfação de crédito não poderiam extrapolar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, devendo respeitar ainda ao princípio da menor onerosidade ao devedor, previsto no art.805, parágrafo único, do CPC.

Ainda em 2019, outro importante julgado, o HC 453.870/PR10, fixa o entendimento de que a apreensão de passaporte em execução fiscal é desproporcional e inadequada à busca da satisfação do crédito da Fazenda Pública.

Já em 2020, no julgamento do REsp 1.864.19011, a 3ª Turma, na mesma direção do enunciado n° 12 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis (FPPC)12, ressaltou que as medidas executivas atípicas, previstas no art. 139, inciso IV, do CPC, tem caráter subsidiário em relação aos meios típicos e, por isso, o juízo deve observar  a presença de alguns pressupostos para autorizá-las, como por exemplo, indícios de que o devedor tem recursos para cumprir a obrigação e a comprovação de que foram esgotados os meios típicos para a satisfação do crédito.

Em março de 2021, ao julgar o RMS 61717/RJ13, a ministra Laurita Vaz da 6ª ¨Turma, em importante julgado envolvendo a Facebook Brasil, assentou o entendimento, encampado de maneira unânime pela Turma, que é possível fixar medidas executivas atípicas no processo penal, no caso de descumprimento de obrigações judiciais impostas à terceiros. 

Em junho de 2021, ao julgar o REsp 1.929.230/MT14, de relatoria do ministro Herman Benjamin, a 2ª Turma assentou o entendimento de que as medidas executivas atípicas são admitidas em casos em que o cumprimento da sentença busca a tutela da moralidade e do patrimônio público. O julgamento envolvia a fixação das mencionadas medidas em uma ação civil pública por ato de improbidade administrativa.

No apagar de 2021, por meio do julgamento do REsp 1.951.176/SP15, de Relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, a 3ª Turma, por unanimidade, concluiu pela impossibilidade da quebra de sigilo bancário para a satisfação de um direito patrimonial disponível, tal como o adimplemento de obrigação pecuniária, de caráter eminentemente privado, mormente quando existentes outros meios suficientes ao atendimento dessa pretensão.  

Recentemente, como ressaltamos ao introduzir nosso singelo artigo, a Terceira Turma, por meio do HC 711.194/SP16, teve que se pronunciar a respeito da limitação temporal das medidas coercitivas atípicas, tema até então inédito no STJ. A questão foi alvo de divergências.

De acordo com o voto do ministro relator, Marco Aurélio Bellizze, a ordem de habeas corpus deveria ser concedida. Segundo o entendimento do ministro, não é possível que as medidas executivas atípicas sejam impostas por tempo indeterminado sem a demonstração de uma justificativa plausível, e que se revele apenas como uma penitência imposta ao devedor sem a potencialidade de coagi-lo ao adimplemento.

Não obstante, o voto-vista da ministra Nancy Andrighi, que inaugurou a divergência, prevaleceu. Analisando detalhadamente as sutilezas do caso concreto, a ministra consignou que as medidas atípicas "devem ser mantidas enquanto conseguirem operar sobre o devedor restrições pessoais suficientes para tirá-lo da zona de conforto, especialmente no que se refere aos seus deleites, aos seus banquetes, aos seus prazeres e aos seus luxos, todos bancados pelos credores".

Resta pendente, porém, à Corte a importante tarefa de definir, em sede de recursos especiais repetitivos, a possibilidade ou não do magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade da medida, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos, através do julgamento do Tema 1137, cuja decisão de afetação suspendeu todos os feitos e recursos pendentes que versem sobre idêntica questão.

Depreende-se dos julgados elencados neste artigo que o STJ tem utilizado os seguintes critérios para avaliar a concessão ou não das medidas executivas atípicas: (i) ponderação; (ii) contraditório substancial; (iii) proporcionalidade;  (iv) observância dos valores em discussão;  (v) análise da existência de comportamento desleal para que não se configure medida de punição; (vi) adequação da medida ao caso concreto; (vii) existência de patrimônio; (ix) menor onerosidade do devedor e até mesmo (x) o equilíbrio entre as partes; sempre com o olhar no potencial satisfativo do crédito exequendo.

É importante registrar que os critérios não são estanques, mas dinâmicos, pois podem oscilar, segundo a análise do caso concreto. Nessa direção, nos parece que o magistrado de primeira instância, por conhecer melhor os melindres e os desdobramentos da causa, é o sujeito processual mais adequado para fixar as medidas executivas atípicas.

Considerando a trajetória das medidas executivas atípicas no Superior Tribunal de Justiça, apostamos que ao julgar o Tema 1137, a Corte  irá reiterar a jurisprudência do Tribunal que tem reconhecido que a adoção de medidas executivas atípicas é lícita e possível pelo magistrado, desde que exauridos previamente os meios típicos de satisfação do crédito exequendo e quando a medida se afigure adequada, necessária e razoável para efetivar a tutela do direito do credor em face do devedor, especialmente quando este demonstrar possuir patrimônio apto a saldar o débito em cobrança, mas intentar frustrar injustificadamente o processo executivo.

__________

1 Art.139, IV do CPC: O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5941. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília.  Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

Disponível aqui

4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 711.194-SP (2021/0392045-2). 3ª Turma. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Relator para o acórdão: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, julgado em 21 jun. 2022.  Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023

5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. ProAfR no REsp n. 1.955.539/SP. Relator Ministro Marco Buzzi - Segunda Seção. julgado em 29/3/2022, Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 07 abr.2022.

6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 97.876-SP (2018/0104023-6). Relator: Min. Luis Felipe Salomão - 4ª Turma. Julgado em: 05 jun. 2018. Publicado em: 09 ago. 2018. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 99.606-SP (2018/0150671-9). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado: 13 nov. 2018. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.782.418-RJ (2018/0313595-7). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 23 abr. 2019. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no Recurso Especial n. 1949624-SP (2021/0223200-3). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 04 abr. 2022. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

10 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 453.870-PR (2018/0138962-0). Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho - 1ª Turma. Julgado em: 25 jun. 2019.Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.861.190-SP (2020/0049139-6). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 16 jun. 2020. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

12 Enunciado 12 FPPC: A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II.

13 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança n. 61.717-RJ (2019/0257887-7). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 02 mar 2021. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

14 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.929.230-MT (2020/0165756-0) - Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 04 mai. 2021. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

15 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.951.176-SP (2021/0235295-1) - Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze - 3ª Turma. Julgado em: 19 out. 2021. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 711.194-SP (2021/0392045-2). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 21 jun. 2022.Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.

Reflexões sobre a exibição de documento ou coisa

A exibição de documento ou coisa é espécie de prova que pode ser utilizada no processo civil e vem disciplinada nos artigos 396 a 404 do CPC/2015.

No Código de Processo Civil de 1973 já havia a previsão dessa espécie de prova e o CPC de 2015 apenas trouxe algumas alterações.

Na sistemática anterior (CPC/73) além da exibição como técnica de produção de prova documental, existia também um procedimento cautelar com idêntica função. O CPC/15 traz a possibilidade de exibição de documento apenas como incidente na fase probatória, mas permite que seja realizada de forma antecipada conforme previsão do art. 381.

A exibição é técnica de obtenção de prova importantíssima no processo, uma vez que não são raras as hipóteses em que apenas a parte contrária possui um documento essencial ao deslinde da controvérsia. Pode ser também utilizada quando o autor não possui todos os dados do réu exigidos para a sua qualificação na petição inicial, nos termos do art. 319 do CPC/15, como, por exemplo, número de algum documento, endereço eletrônico etc.

A parte contrária que possui o documento ou coisa tem dever processual de exibir, sob pena de sanção prevista no art. 400 do CPC/15, consistente em presunção de veracidade dos fatos que a parte pretendia provar por meio da exibição.

Não se pode olvidar, ainda, do interesse da parte requerente em obter a consequência de presunção de veracidade em face daquela que está em posse de tais documentos. Caso os documentos não sejam apresentados pela parte contrária, aplica-se penalidade de confissão ficta.

O artigo 397 do CPC/15 estipula os requisitos que devem ser cumpridos para o requerimento de exibição de documento ou coisa. Tal requerimento pode ocorrer tanto na inicial como na contestação. Dessa forma, não basta o requerimento genérico.

A parte requerente da exibição deve identificar o documento ou coisa para que a parte contrária possa ter a informação necessária para cumprir a determinação ou possa exercitar o seu contraditório de forma adequada.

É necessário, também, que se demonstre a finalidade da prova, pois se não exibido o documento ou coisa vai ser com base nessa indicação que o juiz aplicará a pena de confissão ficta.

E, por último, deve-se afirmar o porquê de a parte requerente da prova acreditar que tal documento ou coisa encontra-se na posse da parte contrária. Essa informação é importante para que o juiz possa avaliar de forma adequada eventual justificativa, prevista no parágrafo único do art. 398 do CPC/15. Não se exige que o requerente prove que o documento existe, a inexistência pode ser alegada pela parte contrária em sede de resposta. Tais requisitos fundam-se também no princípio de colaboração das partes, previsto no art. 6º do CPC/15.

Feito o requerimento da prova por uma das partes, concede-se à parte contrária o direito de resposta, obedecendo ao princípio do contraditório. Nessa resposta, a parte pode, inclusive, justificar e provar que não possui tal documento ou coisa ou que eles não existem.

Importante consignar que a expressão "requerido" do parágrafo único do art. 398 do CPC refere-se ao requerido da providência de exibição de documento ou coisa e, não necessariamente, ao réu do processo, já que tanto o réu quanto o autor podem ser requerentes dessa técnica de produção de prova documental.

Nessa oportunidade, a parte contrária poderá demonstrar que: a) não possui o documento ou coisa; ou b) que a apresentação desse documento ou coisa é impossível (Enunciado 53 do FPPC)i, eximindo-se das consequências pelo descumprimento.

O juiz não aceitará a recusa em exibir o documento nas hipóteses previstas no art. 399 do CPC: (i) requerido com obrigação legal de exibir; (ii) o requerido fez alusão ao documento ou à coisa durante o processo, com o objetivo de constituir prova; (iii) documento comum às partes, em razão do seu conteúdo.

A interpretação desse dispositivo deve se dar em conjunto com a previsão do art. 404 do CPC/15, que prevê as escusas possíveis para a não exibição do documento ou coisa.

A norma processual traz a sanção pelo descumprimento, pela parte contrária, da determinação de exibir documento ou coisa. O descumprimento ocorrerá se a exibição do documento ou coisa não ocorrer no prazo de 5 (cinco) dias ou, se o juiz entender ilegítima a justificativa apresentada.

A consequência da confissão ficta para aquele que descumpre a determinação judicial é que confere efetividade ao instituto.

O parágrafo único do art. 400 é a grande inovação do CPC/15 com relação ao instituto pois, possibilita ao juiz adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para obter o documento ou coisa. Com isso, surgiram correntes para discutir se a redação da Súmula 372 do STJ, que proibia a aplicação de multa cominatória para a hipótese, estaria ou não superada no caso concreto.

Já nos primeiros comentários ao CPC em 2015, Fredie Didier Juniorii, José Miguel Garcia Medinaiii e outros processualistas defendiam a superação de tal súmula. Mas, a prática mostrou-se diferente, com decisões reforçando a manutenção da Súmula 372 do STJ.iv O Fórum Permanente de Processualistas Civis, interpretando tal questão, aprovou, por unanimidade, o enunciado 54 que entende como superada a súmula 372 do STJv.

Essa celeuma apenas foi resolvida em 26 de maio de 2021, com o julgamento do REsp repetitivo 1.777.553/SP, que fixou a tese de que "desde que prováveis a existência da relação jurídica entre as partes e de documento ou coisa que se pretende seja exibido, apurada em contraditório prévio, poderá o juiz, após tentativa de busca e apreensão ou outra medida coercitiva, determinar sua exibição sob pena de multa"vi.

Deve-se destacar que o juiz apenas tomará tais medidas se houver a inércia da parte contrária na exibição e elas se mostrarem úteis na medida em que há casos em que a pena de presunção de veracidade não pode ser aplicadavii.

Assim, apenas em caso de previsão legal de não ocorrência da confissão ficta (art. 345 do CPC) é que será possível a aplicação das medidas do parágrafo único do art. 400 do CPC.

O artigo 401 traz a possibilidade do pedido de exibição ser direcionado a terceiro. O CPC de 2015 dilatou o prazo para a resposta do terceiro para 15 (quinze) dias, uniformizando os prazos.

Importante destacar que, como o terceiro não faz parte da relação jurídico processual, nenhuma consequência de presunção de veracidade poderá ser-lhe aplicável, daí a previsão de procedimento diferenciado quando a exibição lhe for dirigida.

A exibição de documento ou coisa dirigida ao terceiro configura verdadeira ação incidental, por isso, a necessidade de citação e prazo para resposta, havendo também a possibilidade de sucumbência.

Se o terceiro se recusar a apresentar o documento ou coisa, o juiz instaurará um breve contraditório, permitindo-se a oitiva de todos os envolvidos e até mesmo de testemunhas. Tais oitivas tem como único objetivo esclarecer o dever de exibir o documento ou coisa, não se discutirá o mérito da ação. O juiz deverá proferir a decisão a tal respeito na própria audiência. O recurso cabível é o agravo de instrumento, conforme previsão do art. 1.015, VI, do CPC/15.

Reconhecido o dever de exibir, o terceiro também sofrerá consequências caso descumpra a ordem judicial de exibição. A possibilidade de pagamento de multa e outras medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias são mais úteis em relação ao terceiro do que em relação à parte contrária.

Todavia, a despeito das medidas, pode acontecer de, ainda assim, não ser apresentado o documento ou coisa. Neste caso, o requerente da medida fica sem alternativa para conseguir provar aquele fato, daí a importância de o juiz agir de forma que exerça maior coercitividade no caso concreto para efetivar sua ordem.

A colaboração com a verdade real encontra limites ao não se exigir do réu ou do terceiro que se prejudiquem mais do que a consequência que adviria do processo em andamento.

O artigo 404 do CPC prevê, ainda, como recusa legítima, aquela decorrente da lei e dos deveres de sigilo. Importante destacar, nesse ponto, que o dever de sigilo pode ser relativizado, excepcionalmente, para privilegiar interesses mais relevantes, devendo-se aplicar o princípio da proporcionalidade no caso concreto.

Tais justificativas serão analisadas pelo juiz que as julgará legítimas ou não, podendo determinar outras formas de obter tais documentos. Assim, poderá aplicar as medidas previstas nos parágrafos únicos dos art. 400 do CPC (quando se tratar da parte contrária) ou art. 403 do CPC (quando se tratar de terceiros), se as julgar ilegítimas.

Dessa forma, é possível afirmar que a exibição de documento ou coisa continua a ser importante espécie de prova no CPC/15, melhorando a redação do CPC/73 ao incluir a possibilidade de medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para obter o documento ou coisa.

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i ENUNCIADOS DO FÓRUM PERMANENTE DE PROCESSUALISTAS CIVIS. X edição. Carta de Recife/PE, março 2018. Salvador, Juspodivm, 2019, p. 22.

ii DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10 ed. Salvador: Juspodvm, 2015. 2 v., p. 234.

iii MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 660-661.

iv Agravo de Instrumento Nº 70033391780, 23ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Paula Dalbosco, julgado em 29/11/2016 ; Agravo de Instrumento n. 0021965-86.2018.8.16.0000, Tribunal de Justiça do PR, publicado em: 17/08/2018. (Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=resp+repetitivo+n%C2%BA+1.333.988%2Fsp. Acesso em: 01 fev. 2022)

v ENUNCIADOS DO FÓRUM PERMANENTE DE PROCESSUALISTAS CIVIS. X edição. Carta de Recife/PE, março 2018. Salvador, Juspodivm, 2019, p. 22.

vi BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Repetitivo 1000. 2ª Turma, julgado em 26 maio 2021. Disponível aqui. Acesso em: 01 fev. 2022.

vii Art. 345. A revelia não produz o efeito mencionado no art. 344 se:

I - havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação;

II - o litígio versar sobre direitos indisponíveis;

III - a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considere indispensável à prova do ato;

IV - as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos.

Breves anotações processuais sobre a lei 14.230/21 e seu impacto no campo do combate à corrupção

Como cediço, a lei 14.230/21, antes mesmo do início de sua vigência já despertava intensos e calorosos debates no ambiente acadêmicoi, máxime em relação à liberdade de conformação legislativa, contrastada com a necessária e cogente tutela da probidade administrativa desenhada em sede constitucional.

Entrementes, o Brasil ainda tropeça na tentativa de encontrar caminhos institucionais aptos e adequados ao combate sistêmico da corrupçãoiii.

Tanto é assim que o recentemente divulgado IPC (Índice de Percepção da Corrupção), desenvolvido e produzido pela Transparência Internacional, descortinou que o objetivo de repressão aos atos de improbidade administrativa previsto no art. 37, §4º, da CRFB/88 ainda não passou de uma mera promessa.

O péssimo desempenho do Brasil o deixou mais uma vez abaixo da média global, de 43 pontos. A nota de 38 pontos alcançada no último ano foi a mesma registrada em 2020 e representa o terceiro pior resultado da série histórica, colocando o Brasil na vergonhosa 96ª posição, atrás de países como Etiópia, Namíbia, Vanuatu e Burkina-Faso.

Nesse cenário absolutamente desolador, é de se questionar se as modificações introduzidas pela lei 14.230/21 cumprem alguma sorte de avanço institucional, ou, ao revés, endereçam objetivos que se desviam da necessária efetividade no combate à corrupção.

Nós sempre decantados encontros e desencontros entre direito material e processoiii, vivemos atualmente uma época de intensa aproximação, em que o direito material confere pistas e evidências para sua concretização a um processo cada vez mais maleável, flexível e customizado.

De acordo com Cabral (para quem a relação contemporânea entre direito e processo assume uma configuração coaxial)iv, observamos um gradativo retorno do processo ao direito material, assumindo aquele a sua missão de não apenas atuar a vontade concreta da lei, mas sim de tutelar jurisdicionalmente os direitos, caso estes não possuam satisfação e concreção espontânea no âmbito das relações jurídicas.

Com efeito, a arena processual (dentro e fora do Judiciário) deve atuar na perspectiva de servir ao direito material (e vice-versav), maximizando os seus procedimentos e as suas técnicas processuais com o objetivo de propiciar o maior rendimento possívelvi a cada processo.

No entanto, nitidamente na contramão do combate à corrupção, a Lei 14.230/21 substituiu a regra da legitimidade concorrente do Ministério Público e da pessoa jurídica de direito público lesada prevista no art. 17 da lei 8.249/92, em sua redação originária, pela previsão da legitimidade exclusiva do Ministério Público para a propositura das ações de improbidade administrativa e celebração de acordos de não persecução cível.

A corroborar a tônica no sentido do seu caráter eminentemente sancionador, há a previsão do art.17-D da Lei 8249/92 de que a ação de improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal, não se enquadrando como ação civil.

Nessa vereda que se coloca o vívido debate trazido com absoluta grandeza e transparência acadêmicas por Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jrvii.

A posição histórica trazida por ambos os autores apontava que a ação de improbidade administrativa possuía uma natureza dúplice, dialogando tanto com o microssistema da tutela coletiva, bem como com o direito administrativo sancionador.

Em outras palavras, o procedimento especial da ação de improbidade administrativa ao mesmo tempo em que pré-ordenado ao escopo ressarcitório inserido no microssistema da tutela coletiva, também possuiria nítido caráter punitivo diante das previsões desenhadas pelo direito administrativo sancionador.

Pois bem.

Por força das modificações introduzidas pela lei 14.230/21, Fredie Didier Jr. propôs então a reconstrução do sistema tradicional de categorias classificatórias, de modo a alocar a ação de improbidade fora do "guarda-chuva" do conceito de processo coletivoviii.

O fundamento é o de que sob o viés dogmático nenhuma das normas próprias dos processos coletivos é aplicada no âmbito da ação de improbidade administrativa, tais como a fair notice, a certificação do processo para definição do grupo, ampliação do contraditório ao grupo e extensão da coisa julgada ao membro do grupoix.

Hermes Zaneti Jr., por sua vez, defende a tese de ainda ser possível o enquadramento da ação de improbidade como espécie de ação coletiva, pois é destinada ao combate à corrupção, tutelando a moralidade e probidade administrativa, direitos coletivos em sentido amplo.

A discussão, contudo, não se limita ao plano teórico, na medida em que possui consequências práticas relevantes, notadamente quanto à legitimidade ativa ad causam e ao trânsito de técnicas processuais.

A se adotar a premissa de que a natureza da ação de improbidade administrativa é apenas de direito administrativo sancionador, a consequência é a inadmissibilidade do alargamento do rol de legitimados ativos, pois restaria inaplicável o regramento do microssistema de processo coletivox.

Isso porque a responsabilização dos agentes públicos e o ressarcimento ao erário por meio da ação de improbidade administrativa (e do acordo de não persecução cível) se aproximariam, sob tal vertente, aos regramentos subjacentes à ação penal, de modo a justificar a legitimidade ativa privativa por força do art. 129, I, da Constituição da República.

Pode-se argumentar, ainda, que o escopo teria sido o de garantir a segurança jurídica dos acordos de não persecução cível celebrados. Isso porque o Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, seria capaz de realizar um controle mais preciso da persecução civil e celebrar acordos de não persecução adequados e consentâneos com os requisitos e pressupostos legais.

No entanto, este não parece ser o melhor entendimento, em atenção à natureza e ao escopo da ação de improbidade administrativa, tal como afirmado pelo comando normativo do art. 37, § da Constituição da República, cuja concretização ainda esbarra em obstáculos dos mais diversos.  

Conquanto a lei 14.230/2021 tenha promovido modificações com vistas a reforçar o perfil da ação de improbidade administrativa inserido exclusivamente no campo do direito administrativo sancionador, tais mudanças não tiveram o condão de excluir a ação de improbidade do microssistema de processo coletivo.

A razão de tal enquadramento repousa na induvidosa natureza dos direitos tutelados pela Lei de Improbidade Administrativa, vez que o combate à corrupção encerra e traduz, fundamentalmente, a defesa dos direitos da coletividade quanto à probidade administrativa, direitos coletivos em sentido amplo.

A compreensão de que se trata de uma ação coletiva conduziria à aplicação do microssistema de tutela coletiva, a justificar, no nosso entender, a ampliação do rol dos legitimados e o trânsito de técnicas processuaisxi.

Essa orientação também milita a favor do princípio do acesso à ordem jurídica justa (art. 5º, XXXV da Constituição da República), da máxima efetividade da tutela do patrimônio público e da probidade administrativa, na medida em que confere plena eficácia ao preceituado no art. 37, § da Constituição da República.

Em acréscimo, a atuação da pessoa jurídica de direito público lesada é importante, tanto para o ressarcimento do dano, quanto para a eficácia do processo punitivo do agente público, pois possuem as referidas pessoas jurídicas informações necessárias à apuração da extensão do dano, bem como para a compreensão das nuances do ato de improbidade administrativa.

Afigura-se como um verdadeiro contrassenso a regra restritiva: as pessoas jurídicas de direito público não ostentam legitimidade para a propositura da ação de improbidade, porém são legitimadas para a liquidação e execução da decisão transitada em julgado proferida na ação de improbidadexiii.

Note-se, inclusive, que, no caso da liquidação e execução do julgado, a legitimidade é da pessoa jurídica de direito público lesada, atuando o Ministério Público subsidiariamente (art. 18 da Lei 8.249/92).

Em prol da inserção da ação de improbidade no microssistema de processo coletivo, poder-se-ia, ainda, defender que o art. 17-D da Lei 8.249/92 não teria afastado o caráter de ação coletiva, pois a natureza sempre foi híbrida: punitiva para os agentes e de ressarcimento ao patrimônio público.

O dispositivo apenas explicitou o que já era defendido pela doutrina quanto à inegável genética também sancionatória que carrega a ação de improbidade administrativa.

Com efeito, asseverar que o procedimento especial destinado à tutela da probidade administrativa possui uma única e exclusiva natureza sinaliza a um só tempo por um indevido decote da própria função epistêmica do processo, bem como uma absoluta redução da complexidade dos diversos direitos fundamentais contrapostos que marcam a realidade fenomênica retratada no processoxiii.     

Dito isso, tem-se que a orientação desta segunda corrente de pensamento foi a adotada no bojo de recentíssima decisão monocrática proferida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraesxiv.

Em tal oportunidade, o i. Ministro deferiu parcialmente a medida cautelar requerida no bojo das ADIs 7042 e 7043/DF, para fins de se conceder interpretação conforme a Constituição do caput e §§ 6º-A, 10-C e 14, do artigo 17 da Lei nº 8.429/92, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021, no sentido do reconhecimento da legitimidade ativa concorrente entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público lesadas para a propositura da ação de improbidade administrativa, bem como a suspensão do § 20 do art.17 da Lei de Improbidade, e art 2º da lei 14.230/21.  

Em primeiro lugar, houve o reconhecimento da inconstitucionalidade da regra de legitimidade exclusiva do Ministério Público em razão da violação do art. 129, § 1º, da Constituição da República, o qual preceitua que a legitimação do Ministério Público para as ações civis públicas previstas no art. 129 da Carta Magna não impede a de terceiros.

Neste ponto, depreende-se ter havido o enquadramento da ação civil de improbidade como ação civil pública, ao mencionar o Ministro Alexandre de Moraes os incisos III e o §1º do art. 129 da Constituição da República.

E, ainda, foi destacado o fato de inexistir um instrumento de controle da propositura da ação como aquele estabelecido no âmbito penal, no qual há a previsão constitucional da ação penal privada subsidiária da pública (art. 5º, LIX, da Constituição da República). 

Pontuou-se, outrossim, a ofensa aos princípios constitucionais do acesso à justiça, da eficiência, além do óbice ao exercício da competência comum dos entes públicos de "zelar pela guarda da Constituição" e "conservar o patrimônio público" (CF, art. 23, I), representando, por fim, um significativo retrocesso no que tange ao imperativo constitucional de combate à improbidade administrativa (art. 37, §4º, da CRFB/88).

Como visto, ainda que provisória, a decisão em comento proferida pelo STF confere um fôlego necessário para que os textos normativos trazidos pela lei 14.230/21 não se apartem do cogente parâmetro constitucional, de modo a não permitir que o art. 37, §4º, da CRFB/88 se transforme em apenas uma promessa oca e vazia.

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i Disponível aqui. e "Senado substitui lei de improbidade por lei da impunidade, escreve Roberto Livianu".

ii https://transparenciainternacional.org.br/ipc/?utm_source=Ads&utm_medium=Google&utm_campaign=%C3%8Dndice%20de%20Percep%C3%A7%C3%A3o%20da%20Corrup%C3%A7%C3%A3o&utm_term=Percep%C3%A7%C3%A3o%20da%20Corrup%C3%A7%C3%A3o&gclid=Cj0KCQiA0p2QBhDvARIsAACSOOPcbDdMNfw3N0zC2Q3lsV7Hbgceono0KzbT9KnrCM8rb13RCjQyTosaAjknEALw_wcB. Consulta realizada em 12 de fevereiro de 2022. Os dados do IPC 2021 mostram que o país está estagnado, sem ter feito avanços significativos para enfrentar o problema no período. Por outro lado, o desmonte institucional e a inação do governo no combate à corrupção podem levar a notas ainda piores nos próximos anos.

iii BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2011; OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, nº 26, 2006; ZANETI JR., Hermes. A teoria circular dos planos (direito material e direito processual). In. DIDIER JR., Fredie (org.). Leituras complementares de processo civil. 6.ed. Salvador: Jus Podivm, 2008; CABRAL, Antonio do Passo. Da instrumentalidade à materialização do processo: as relações contemporâneas entre direito material e direito processual. Civil Procedure Review. v. 12, n. 2: maio-ago. 2021.

iv Idem, Ibidem, pp. 97.

v Acerca da fecunda interação entre direito material e processo, o saudoso mestre Calmon de Passos pontifica que "antes de o produto condicionar o processo é o processo que condiciona o produto. Em nível macro, a norma jurídica de caráter geral é algo determinado pelo processo de sua produção, um processo de natureza política. É esse processo que reclama rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos - agentes, organização e procedimentos - sob pena de se privilegiar o arbítrio dos decisores. Não há como se dissociar o direito obtido como produto da organização política da sociedade que o produz e do processo político mediante o qual as reduções de complexidade se efetivam nesse primeiro momento, macropolítico e macroeconômico. Nem para aí o processo de produção do direito, pois ele prossegue numa segunda etapa, aquela que, no nível micro, deve editar a norma reguladora de um conflito precisamente delimitado em termos de pessoas, de tempo, de lugar e de circunstâncias. Também aqui, como ali, antes de o produto condicionar o processo, é o processo que condiciona o produto. E também aqui não podemos dissociar o produto do processo de sua produção, que reclama, como antes, rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos - agentes, organização e procedimentos - sob pena de se privilegiar o arbítrio dos decisores" (CALMON DE PASSOS, Joaquim José. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. Revista de Processo, nº 102, São Paulo: RT, abr. 2001).

vi Interessante notar, nesse particular, a arguta advertência de Zamorra y Castillo no sentido de que "o processo rende, com frequência, muito menos do que deveria - em função dos defeitos procedimentais, resulta muitas vezes lento e custoso, fazendo com que as partes quando possível, o abandonem". ZAMORRA Y CASTILLO. Processo, autocomposição e autodefensa. Cidade do México: Ed. Universidad Autónoma Nacional de México, 1991. p. 238.

vii DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil:processo coletivo. 16ª ed. Salvador: JusPodivm, 2022, Nota Explicativa Inicial em Coautoria.

viii Idem, Ibidem, p. 25. Em igual direção, por todos, MERÇON-VARGAS. Sarah. Teoria do processo judicial punitivo não-penal. Salvador: Editora Juspodvim, 2018.  

ix Idem, Ibidem. 

x Apesar de inserir a ação de improbidade administrativa como espécie de ação civil pública, Hermes Zaneti Jr entende que não se aplica o microssistema de processo coletivo para ampliar os legitimados ativos, por força da existência de norma expressa no sentido da legitimidade exclusiva do Ministério Público no art. 17 da Lei de Improbidade. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. 16ª ed. Salvador: JusPodivm, 2022, Nota Explicativa Inicial em Coautoria.

xi Neste mesmo sentido é o entendimento de Daniel Amorim de Assumpção Neves e Rafael Carvalho  Rezende Oliveira que  defendem a permanência de uma legitimidade concorrente e disjuntiva a despeito das modificações legislativas. Também compreendem os referidos autores como possível ingressar a pessoa jurídica de direito público lesada no processo como coautora. NEVES, Daniel Amorim  Assumpção.  Comentários à Lei de Improbidade Administrativa. Lei 14230 de 25.10.2021. Comentada artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 2022. E-book.Posição 107.

xii Embora defendam a exegese restritiva em sede de legitimidade ativa, Luiz Manoel Gomes Jr e Rogério Favreto consideram uma clara incoerência a legitimidade das pessoas jurídicas de direito público lesadas para a execução do julgado, e atuação subsidiária do Ministério Público. FAVRETO, Rogério; GOMES JR, Luiz Manoel. In: Comentários à nova Lei de improbidade Administrativa. GAJARDONI, Fernando; Cruz, Luana Figueiredo; GOMES JR. Luiz Manoel lei 8429/1992 com as alterações da lei 14230/2021. 5ª ed. São Paulo : Thomson Reuters, 2021, p 331.

xiii Sempre a frente do seu tempo, a saudosa e atemporal Ada Pellegrini Grinover enunciava que: "ao invés de só inverter o enfoque processo-direito pelo de direito-processo, a proposta é partir da crise de direito material - ou seja do conflito específico - para analisar (ou construir) a solução processual adequada. Isto significa também dar ao direito processual um enfoque multidisciplinar, pois os conflitos são naturalmente examinados pela sociologia ou pela política, e mais raramente pelo Direito. E, no entanto, o direito integra a categoria das ciências sociais" (GRINOVER, Ada Pellegrini Grionover. Ensaio sobre a processualidade: fundamentos para uma nova teoria geral do processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, p. 14).   

xiv "Moraes concede cautelar para que advocacia pública possa ajuizar ações de improbidade"

Boas Práticas na administração da justiça e o sistema de justiça multiportas

A legislação processual faz previsões abstratas e cabe aos operadores do direito a aplicação dessa norma ao caso concreto. O CPC de 2015 reforça a noção de justiça multiportas, especificando que o Poder Judiciário não é a única forma de resolução de um conflito, determinando que juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, estimulem a conciliação, mediação e outras formas de solução de conflito, inclusive no curso do processo judicial.

A experiência de sucesso de algumas situações concretas pode auxiliar outros profissionais na aplicação da norma abstrata. Busca-se analisar se essas boas práticas têm sido utilizadas no sistema multiportas.

As Boas Práticas surgem a partir da indeterminação, lacuna ou vagueza das disposições normativas processuais, viabilizando que os operadores do direito, sejam eles, juízes, advogados, membros do Ministério Público, defensores públicos, etc., encontrem soluções práticas e eficientes para a resolução de demandas sociais repetitivas, a fim de propiciar o correto desempenho do sistema de justiça e, de certa forma, promover a celeridade processual e estimular o aperfeiçoamento do uso das mais diversas portas de acesso à uma ordem jurídica justa.

A análise das boas práticas revela que algumas têm se tornado verdadeiros costumes processuais e tendências dos Tribunais na resolução de uma determinada demanda social que se repete, enquadrando-se como soft law, ressaltando a sua importância para o processo civil1.

Exemplos de boas práticas seriam as práticas em processos estruturais (audiências preliminares para conhecimento do caso); em julgamentos colegiados como o pré-anúncio do voto do relator, de modo a tornar a sustentação oral algo prescindível; na arbitragem internacional, como o dever de revelar circunstâncias que possam ensejar fundada dúvida sobre a imparcialidade do árbitro, como previsto nas diretrizes da IBA, e também o art. 14 da Lei nacional de Arbitragem (lei 9.307 de 23 de Setembro de 1996)2.

As boas práticas passam a ser estudadas pela doutrina e por vários operadores do direito. O CNJ criou um portal de boas práticas processuais3 e já editou normas4 prestigiando-as. O Conselho Nacional do Ministério Público dedica um setor de sua página na web à disseminação e divulgação de boas práticas5. O STJ já promoveu evento para promover o intercâmbio de boas práticas6. Alguns tribunais já prestigiam as boas práticas, como o Tribunal de Contas do Paraná, que lançou curso de boas práticas em execução fiscal; o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo7, que possui um manual de boas práticas cartorárias8; o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que promove mostras de boas práticas há alguns anos9.

As boas práticas, portanto, têm como característica basilar a inovação no âmbito da administração da justiça. Inovação como sinônimo de propor ideias que surgem através de demandas sociais identificadas através de uma visão ampla do sistema de justiça. Fredie Didier e Leandro Fernandez lecionam que para que a administração da justiça tenha uma verdadeira cultura de inovação, além dos estímulos da prática, há necessidade de permanente reflexão sobre a organização e funcionamento do sistema de justiça; de recursos para identificar problemas institucionais. Destacam os autores, ainda, a importância da "participação de integrantes da academia, e com meios para  a realização de testes das soluções concebidas (prototipagem)"10.

São requisitos fundamentais para considerar uma boa prática: (i) a adequação de um caso, ou de um perfil de casos a uma determinada demanda social; (ii) conformidade com o ordenamento jurídico; (iii) caráter inovador da prática; e, (iv) promoção de determinado bem jurídico em extensão superior àquela assegurada pelos modelos básicos tradicionalmente adotados.

A portaria 140/19 do CNJ define a boa prática no art. 4º, inciso I: "experiência, atividade, ação, caso de sucesso, projeto ou programa, cujos resultados sejam notórios pela eficiência, eficácia e/ou efetividade e que contribuam para o aprimoramento e/ou desenvolvimento de determinada tarefa, atividade ou procedimento do Poder Judiciário"11.

As boas práticas podem ser enquadradas em duas modalidades: práticas com pretensão de institucionalização e práticas desenvolvidas para o atendimento das peculiaridades de um caso concreto.

As primeiras são concebidas pelo CNJ, pelos tribunais ou por outras entidades como estratégias institucionais para a solução de problemas identificados no sistema de justiça ou para aperfeiçoar o seu funcionamento. Já as boas práticas para o atendimento de um caso concreto são pensadas de acordo com as peculiaridades de um determinado caso jurídico, tem como fito a resolução de um problema específico ou de um conjunto de problemas. Frisa-se que, por óbvio, uma boa prática elaborada para solucionar um caso concreto pode ser elevada ao status da institucionalização. Cabe ao Conselho Nacional de Justiça a função de observatório nacional das boas práticas judiciárias, compilando-as, divulgando-as e promovendo-as, e se for o caso levá-las à institucionalização por parte de tribunais, pelo próprio CNJ ou por outras entidades12.

São características das boas práticas, trazidas por Fredie Didier e Leandro Fernandez13:

a) A característica da inovação, isso porque as boas práticas não estão previstas como padrão de funcionamento ou de organização do Poder Judiciário. Elas são práticas lícitas construídas a partir dos espaços de criatividade permitidos dentro do ordenamento jurídico. Caso se constate seu sucesso, é bom que sejam incorporadas ao sistema jurídico e consagradas como políticas públicas vinculantes do Judiciário.

b) A adequação, que também é um princípio que norteia a escolha da melhor "porta" a ser escolhida no sistema de justiça multiportas. Por meio desta característica deve se analisar a adaptação do processo ou a organização ou o funcionamento do judiciário às peculiaridades de certo perfil de casos ou de determinadas demandas sociais. Como exemplo, temos a autorização do juízo 100% digital em razão da demanda social que adveio da pandemia de Covid-19, através da Resolução 345/20 do CNJ.

c) A conformidade com o ordenamento jurídico. Isto porque as boas práticas na administração da justiça devem respeitar as normas previstas no ordenamento jurídico. Sua adoção não pode, de maneira alguma, implicar em uma ameaça às garantias constitucionais e processuais das partes, ou às prerrogativas da advocacia e da magistratura.

d) Promoção de determinado bem jurídico em extensão superior àquela assegurada pelos modelos básicos tradicionalmente adotados, como outro traço relativo às boas práticas, isto porque, elevar ao "status de boa prática" um conjunto de atos institucionais envolve que eles perpassem pelo crivo da eficiência. A eficiência de uma boa prática é analisada por alguns primas, quais sejam, o quantitativo, o qualitativo e o probabilístico. O órgão jurisdicional deve escolher como boa prática, uma prática que promova resultados significantes, este é o prisma quantitativo. Já o prisma qualitativo se depreende da análise de que não se pode escolher um meio que promova resultados negativos. O prisma probabilístico compreende o fato de que não se pode escolher como boa prática aquela que promove um resultado duvidoso, deve se escolher um meio que produza resultados certos e eficientes capazes de solucionar demandas sociais.

d) Outra característica inerente a uma boa prática é a não definitividade. Tal característica é fundamental quando se pretende institucionalizar a boa prática. Esse atributo refere-se ao fato de que as boas práticas são concebidas em um modelo flexível de gestão dos processos e do judiciário, é entender que as boas práticas possuem uma natureza experimental, podendo compreender uma etapa de prototipagem em seu desenvolvimento. A escolha pela revisão, pelo abandono ou até mesmo pela institucionalização daquela prática compreende a verificação da sua aptidão ou eficiência no que tange ao alcance dos objetivos pretendidos.

e) Caráter tendencialmente replicável: uma característica inerente a uma boa prática é que elas podem ser repetidas, utilizadas como parâmetro em outros tribunais ou juízos com as adaptações necessárias às suas especificidades o que culminará em novas experiências institucionais. Uma prática bem-sucedida raramente é utilizada em apenas em uma ocasião, ressalvados os casos de boas práticas criadas para o atendimento e resolução de um caso concreto, haja vista suas particularidades. O CNJ através da portaria 140/19 prevê como critério de identificação de uma boa prática, a exportabilidade, ou seja, a viabilidade de replicação desta prática em outras organizações.

O Código de Processo Civil reforçou o modelo de sistema de justiça multiportas, incentivando e estimulando a resolução de disputas de forma não somente jurisdicional, mas considerando as diversas "portas" de acesso à justiça ou de acesso à uma ordem jurídica justa, como a mediação, a arbitragem, a conciliação, as ODR's14, os Dispute Boards, a negociação, dentre outros. Dessa forma, a demanda deve ser submetida à técnica ou ao método mais apropriado de solução daquele problema, ou seja, no momento da escolha do método de resolução da disputa, deve ser levado em consideração pelas partes o princípio da adequação a fim de propiciar uma tutela jurisdicional mais efetiva, célere e apropriada ao problema juridicamente proposto.

O modelo de sistema de justiça multiportas veio para ressignificar o acesso à justiça, permitindo que tanto as partes quanto o operador do direito observem que não é somente o processo judicial, ou seja, o processo adjudicatório, o único meio hábil a solucionar aquele conflito que é trazido e que demanda uma solução, outros meios não jurisdicionais podem ser, inclusive, muito mais eficientes, para que se alcance a solução mais efetiva ao litígio.

A justiça multiportas é uma metáfora em que se imagina um labirinto onde existem diversas porta de solução de um problema jurídico, tais como a porta da mediação, a da arbitragem, a da conciliação, a dos Dispute Boards, a das ODR`s, a negociação, etc.

O Estatuto da OAB diz que o advogado deve estimular que as partes cheguem a um acordo, fomentando assim a negociação, e a tarefa do operador do direito é justamente a de diagnosticar o problema e através do princípio da adequação, encaminhá-lo à porta mais eficiente a resolvê-lo. Entender e compreender o modelo de sistema de justiça multiportas é compreender que nem sempre o caminho do judiciário é o mais adequado, embora seja ele uma das diversas portas existentes no sistema.

O art. 3º do CPC eleva a solução adequada de conflitos ao status de norma fundamental do processo e as boas práticas podem auxiliar na efetivação de meios de solução de conflitos mais adequados.

As boas práticas podem servir como meio de aperfeiçoamento do sistema de justiça multiportas pois elas cumprem o papel de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional.

Em 2014, foi promovido Estudo qualitativo sobre boas práticas em mediação no Brasil, fruto de uma parceria entre a Secretaria de Reforma do Judiciário e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, teve coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Maria Tereza Sadek, Kazuo Watanabe, Daniela Monteiro Gabbay e Luciana Gross Cunha15. O estudo analisou 5 casos concretos nas 5 regiões do Brasil e trouxe ao final diretrizes para boas práticas de mediação de conflitos.

Nessa pesquisa, algumas boas práticas de mediação foram coincidentes em vários projetos como: (i) legitimação pelos atores do sistema de Justiça (Ministério Público, Cejuscs e Defensoria Pública foram os legitimadores em alguns casos de sucesso); (ii) importância da pré-mediação, acolhimento e adesão; (iii) supervisão; (iv) estabelecimento de parcerias com entes públicos e privados e sociedade.

No Fórum Permanente de Processualistas Civis, (FPPC-XI) de 2022, em Brasília, foi aprovada como boa prática e como prática não jurisdicional de solução de conflito, a atuação concertada entre câmaras de autocomposição dos Estados e as respectivas Defensorias Públicas, que envolve os órgãos do Rio de Janeiro: Procuradoria de Métodos Adequados de Solução de Controvérsias e Direitos Humanos da PGE-RJ, a Secretaria de Estado de Saúde do RJ, e  a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro; e órgãos no Pará quais sejam: a Procuradoria Geral do Estado (Câmara de Negociação, Conciliação, Mediação e Arbitragem) e a Defensoria Pública do Estado do Pará16.

Esta boa prática aprovada pela plenária no XI FPPC em 2022, consiste na prevenção de litígios por meio das câmaras de autocomposição dos Estados, onde eventuais pleitos contra o Estado são levados pela Defensoria Pública à Câmara para eventual tratamento do litígio, sem a necessidade de submissão ao Judiciário. No Rio de Janeiro cerca de 18.000 demandas foram atendidas pela Câmara evitando sua judicialização. No estado do Pará é utilizado o processo administrativo eletrônico a fim de facilitar a comunicação e solução das demandas.

Tal prática foi apresentada pelo grupo de práticas não jurisdicionais de solução de conflitos. São responsáveis pela prática: Procuradorias dos Estados do Rio de Janeiro e do Pará. Defensorias Públicas dos Estados do Rio de Janeiro e do Pará, defensores e servidores das secretarias envolvidas.

No portal de boas práticas no portal do CNJ há diversos exemplos de práticas aplicadas a sistema multiportas. Podem-se citar como exemplos: Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP), serviço oferecido pela comarca de Belo Horizonte; Conciliação em Domicílio, na Comarca de Governador Valadares; Sistema de Negociação Virtual implementado no sistema PROJUD na Bahia; Robô de atendimento por WhatsApp "Jefinho" em conciliações; PAPRE Posto de Atendimento Pré-Processual no TJMG; Adoção do processo negocial eletrônico (PNe) como método permanente e paralelo ao PJe17.

Pensar em boas práticas e replicá-las em outros órgãos é algo muito recente, mas que tem um potencial imenso de propiciar meios de solução de conflitos ainda mais adequados. Várias práticas já foram colocadas à prova com sucesso, resta a institucionalização de algumas que são passíveis de serem reproduzidas nacionalmente.

Aos operadores do direito que ainda são relutantes ao sistema multiportas é necessário deixar de lado a visão de que a única forma de resolver um conflito é o Poder Judiciário e dar uma chance a outras portas no caso concreto. Com o avanço da tecnologia, novas práticas devem surgir nos próximos meses e anos, transformando a prestação jurisdicional e possivelmente ampliando o acesso à justiça. Resta investir também em acessibilidade digital para que todos os jurisdicionados possam usufruir dessas inovações.

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1 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução ao estudo das boas práticas na administração da justiça: a relevância dogmática da inovação. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro 84, abr./jun. 2022, p. 2.

2 Idem ibidem.

3 Disponível em: https://boaspraticas.cnj.jus.br/portal

4 Pode-se citar como exemplo a Portaria 140/19 (Boas práticas do Poder Judiciário); Resolução 345/22 (juízo 100% digital); Resoluções 385/21 e 398/21 (Núcleo de Justiça 4.0); Resolução 395/21 (Política de Gestão da Inovação no âmbito do Poder Judiciário), etc.

5 Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/servicos/101-enasp/216-boas-praticas

6 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-10-09_17-45_Evento-promove-intercambio-de-boas-praticas-sobre-sistema-de-precedentes.aspx

7 Disponível em: https://www1.tce.pr.gov.br/conteudo/online-boas-praticas-execucoes-fiscais-medidas-judiciais-para-pesquisa-de-bens-curso-online/339886/area/59

8 Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/Corregedoria/Manuais/CartilhaBoasPraticas.pdf

9 Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/gestao-estrategica/mostra-das-boas-praticas.

10 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução ao estudo das boas práticas na administração da justiça: a relevância dogmática da inovação. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 84, abr./jun. 2022, 13.

11 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3021.

12 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, ob. cit.

13 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, ob. cit.

14 Plataformas de resolução de conflitos on-line (chamadas em inglês de ODR - Online Dispute Resolution).

15 Estudo qualitativo sobre boas práticas em mediação no Brasil. coordenação : Ada Pellegrini Grinover, Maria Tereza Sadek e Kazuo Watanabe (CEBEPEJ) , Daniela Monteiro Gabbay e Luciana Gross Cunha (FGV Direito SP) ; colaboradores : Adolfo Braga Neto ... [et al.]. - Brasília : Ministério da Justiça,

Secretaria de Reforma do Judiciário, 2014. Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/6850/1/BOAS_PRATICAS_EM_MEDIACAO_NO_BRASIL.pdf

16 Disponível em: https://diarioprocessualonline.files.wordpress.com/2022/03/enunciados-fpcc-2022-1.pdf

17 Disponível em: https://boaspraticas.cnj.jus.br/por-eixo/9.

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