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A arguição de relevância das questões federais no recurso especial: Perspectivas e repercussões práticas do filtro recursal inserido pela EC 125/22

É consenso na prática forense que o Superior Tribunal de Justiça tem apresentado dificuldades no desempenho da sua função jurisdicional e missão constitucional, pois encontra-se congestionado e com reações adversas consequentes, como a jurisprudência defensiva e excesso de formalismos. Outra dificuldade verificada no âmbito do STJ é a existência de entendimentos diferentes a respeito de casos iguais, não apenas quando uma Turma diverge da outra, mas também quando uma mesma Turma não mantém estável determinada decisão.1

Nesse contexto, é preciso referir o acesso mais facilitado às Cortes Superiores com a Constituição Federal de 1988, pois a criação do Superior Tribunal de Justiça não foi suficiente para solucionar o problema do congestionamento, assim como a EC 45/04, que criou a repercussão geral (Lei 11.418/06), também não foi suficiente para resolver a dificuldade, apenas minimizando, o que poderia ter sido melhor aproveitado se estendido este filtro para o STJ.2

Portanto, verificou-se que os mecanismos de filtros precisavam ser aperfeiçoados, considerando que o STF, por exemplo, recebe dezenas de milhares de processos por ano e que tal mudança é essencial para imprimir maior qualidade e visibilidade aos julgamentos do tribunal.3

Dentro de tal escopo, foi apresentada em 2012 a proposta de emenda à Constituição (PEC) 209/12, que institui novo critério de admissibilidade para o Recurso Especial: a necessidade de demonstração da relevância da questão federal discutida para que o recurso chegue ao STJ?4

A proposta de emenda constitucional foi aprovada no plenário da Câmara em 15/03/2017 e remetida ao Senado Federal em 2017. O relator do plenário, senador Rogério Carvalho, propôs a inclusão de outro parágrafo no artigo.

O substitutivo do senador foi aprovado no Senado em 08/11/2021. De volta à Câmara, foi renumerada como PEC 39/2021, e aprovada nos mesmos termos do Senado, com a promulgação da EC125/2022 em 15/07/2022.

Conforme o texto da Emenda Constitucional 125/20225, o STJ só julgará os recursos cujo tema tenha relevância jurídica capaz de justificar o pronunciamento da instância superior. A justificativa da emenda é a necessidade de resolver o congestionamento da instância superior, a exemplo do que ocorreu no Supremo Tribunal Federal com a inserção do requisito da repercussão geral para a admissibilidade do recurso extraordinário, que reduziu significativamente o número de processos distribuídos na Excelsa Corte. Com a adoção do filtro recursal para a admissão do RESP, a expectativa é de o tribunal superior deixe de atuar como 'terceira instância" revisora de processos cujo interesse muitas vezes está restrito às partes, e tenha melhores condições de exercer o seu papel constitucional de uniformizador da jurisprudência sobre a legislação federal.6

A grande crise ou dificuldade presente no Superior Tribunal de Justiça corresponde ao efetivo papel no desempenho de suas atividades7 e, portanto, quanto à definição de sua função no sistema jurídico brasileiro e em prol da almejada e necessária segurança jurídica e desenvolvimento do Direito.

Atualmente se discute muito na doutrina processual brasileira sobre a necessidade de reformulação das cortes de vértice visando à racionalidade e efetividade num sistema de precedentes judiciais. É preciso diálogo e alinhamento entre as duas cortes supremas (STJ e STF) para evitar a sobreposição de funções. Nessa medida, Luiz Guilherme Marinoni entende que o STF deve apenas controlar a constitucionalidade do sentido atribuído à lei pelo STJ mediante precedentes e a partir da interpretação da lei nos termos da Constituição, pois não há racionalidade em o Supremo Tribunal Federal realizar interpretação conforme antes de o Superior Tribunal de Justiça definir o sentido da lei federal.8 A amplitude do campo de debate e de interpretação é diretamente proporcional à adequada atuação das duas Cortes Supremas e indispensável à legitimação democrática dos seus próprios precedentes.9

A realidade é que o número excessivo de processos e a alta carga de trabalho imposta no STJ consiste em grande obstáculo para que a corte possa desempenhar sua verdadeira e relevante função constitucional de uniformização do direito federal. Dessa forma, a solução mais eficaz para o problema parece ser, de fato, a redução no volume de processos e carga de trabalho/julgamentos no tribunal superior, pois o aumento do número de ministros e tentativa de mudança de postura do sistema, além de exigirem tempo e disponibilidade, não resolveriam integralmente o problema.

Naturalmente é preciso reconhecer que meras alterações legislativas não são capazes, por si só, de ensejar grandes evoluções. As mudanças efetivas provêm, principalmente, da atuação concreta dos Tribunais Superiores10, que devem, ao interpretar a lei, contribuir para a concretização dos instrumentos previstos pelo CPC/15, como os princípios da instrumentalidade e da cooperação, afastando a jurisprudência defensiva.

Embora a experiência bem-sucedida da inserção do requisito da repercussão geral para a admissibilidade do recurso extraordinário no STF, há crítica doutrinária da extensão do filtro recursal para a sistemática de admissão e julgamento do recurso especial no STJ, sob o argumento de que esta corte deve assumir o papel de Tribunal da Cidadania e, dessa forma, estar aberto às demandas da sociedade. Tal parcela da doutrina entende que a missão constitucional do STJ (unificação da interpretação da lei federal) poderia restar desatendida, sendo que pode ser inconveniente a adoção da relevância da questão federal como filtro de admissibilidade para o recurso especial, pois o STJ deixaria de se pronunciar sobre muitas questões federais que atingem toda a população.11

Com a recente promulgação da EC 125/22, a doutrina apresenta críticas e preocupações, especialmente quanto aos critérios de relevância presumida previstos no § 3º do art. 105, como a imprecisão/inadequação da previsão do inciso III relativa às hipóteses de contrariedade à jurisprudência dominante do STJ ou, ainda, pelo aspecto monetário do requisito das ações com valor da causa acima de 500 salários mínimos.

Quanto ao critério econômico estabelecido pela emenda constitucional de relevância presumida, Dierle Nunes e Cícero Lisboa ponderam que no legislativo afirmou-se laconicamente que tais hipóteses seriam das ações mais "importantes", mas criticam que, por outro lado, nos termos do novel §2º do artigo 105, da CRFB/88, os recursos especiais na área penal terão a relevância automaticamente reconhecida, ou seja, qualquer ilícito penal por mais singelo que seja, terá o direito de ser apreciado pelo STJ. Já casos cíveis que atinjam diretamente assuntos relevantíssimos para os cidadãos, passarão pela filtragem do requisito econômico.12

Embora se reconheça que os critérios estabelecidos pela emenda constitucional 125/22 determinam apenas a relevância presumida da matéria federal discutida, possibilitando ao recorrente que demonstre de forma fundamentada a transcendência da questão nas hipóteses não contempladas nos critérios da EC 125/22, a doutrina pontua que será imposto tratamento desigual para as partes recorrentes, pois enquanto um interporá seu RESP com relevância predeterminada, o outro terá de exercer o ônus argumentativo para demonstrar a relevância em preliminar de seu recurso, ofendendo claramente os direitos fundamentais da isonomia e da dignidade da pessoa humana.13

Uma segunda falha apontada na redação da EC 125/22 é em relação à sua regulamentação. O inciso VI prevê que a lei poderá estabelecer outras hipóteses de relevância, dando a entender, para aqueles que não acompanharam a tramitação da emenda, tratar-se de lei ordinária. Ao consultar as discussões na Câmara, fica claro, no entanto, que a intenção do Parlamento foi de permitir que apenas normas constitucionais estabeleçam hipóteses de relevância automática, porém é necessário aguardar a regulamentação do tema para que se esclareça tal ponto.14

Outro ponto que está gerando discussão refere-se ao aspecto temporal da exigência prática do filtro recursal, pois, embora a emenda constitucional já tenha entrado em vigor, se mostra necessária a sua regulamentação, como ocorreu com a repercussão geral. No entanto, em decorrência da entrada em vigor imediata determinada pelo artigo 2º da EC 125/2022, recomenda-se à advocacia que em seus novos recursos especiais se abra uma preliminar expressa sobre a relevância e se explique: a) em qual das hipóteses normativamente estruturadas no artigo 105, 3º ele se enquadra; ou b) que seu recurso apresenta transcendência ao caso em apreço e o tipo de relevância (jurídica, econômica, jurídica e/ou política) seu caso traz em conformidade com as hipóteses de cabimento do recurso previstas no inciso III do artigo 105, ao menos enquanto o próprio STJ não edita normas internas para a avaliação do novel requisito.

Leonardo Carneiro da Cunha entende que o novo requisito de admissibilidade do recurso especial depende de regulamentação, pois o referido §2º dispõe que o recorrente deve demonstrá-lo "nos termos da lei", a exigir que haja disciplinamento legal.15 Nessa linha, o autor argumenta que o artigo 2º da emenda prevê que a exigência se aplica aos recursos interpostos depois de sua vigência. O dispositivo há de ser lido da seguinte forma: o novo requisito de admissibilidade deve aplicar-se aos recursos interpostos depois do início de vigência da lei que o regulamentar, não sendo possível exigir o novo requisito de admissibilidade antes de sua regulamentação.16

Quanto ao direito intertemporal no âmbito recursal, o autor esclarece que é preciso observar o momento em que se adquire o direito ao recurso. Enquanto não proferida a decisão judicial, a parte não pode interpor o correspondente recurso. Uma vez prolatada a decisão, surge uma espécie de direito adquirido processual àquele recurso. Enquanto não proferida a decisão, a parte dispõe, apenas, de mera expectativa de direito à interposição do recurso.17

Relativamente à necessidade de lei regulamentadora da aplicação e processamento do filtro recursal da demonstração da relevância no recurso especial, também pondera-se que, considerando a simetria com o instituto da repercussão geral no recurso extraordinário, deverá haver lei regulamentadora da matéria, bem como alterações na legislação federal. Porém, na emenda constitucional 45/04, o art. 7º estabeleceu que o Congresso Nacional deveria, em cento e oitenta dias, elaborar os projetos de lei necessários à regulamentação da matéria. Já na emenda 125/22, há previsão de que o requisito da relevância será exigido, nos termos da lei, entretanto os outros dois últimos dispositivos estabelecem que a relevância será exigida, nos recursos interpostos, após a entrada em vigor da EC e que esta entra em vigor, imediatamente. Portanto, percebe-se uma antinomia aparente.18

Assim, o STF tratou, especificamente, do requisito da preliminar da repercussão geral (e, não, da repercussão geral, como requisito intrínseco de admissibilidade recursal). O mesmo regime jurídico deve ser aplicado para a arguição de relevância.  Nessa consideração, a preliminar de relevância só será exigível após a regulamentação pela lei e, muito provavelmente, pelo regimento interno do STJ. Porém, como já referido, é recomendável, por cautela, que os recorrentes, desde logo, demonstrem, de forma clara, o preenchimento dos requisitos, em seus recursos especiais, pois há grande risco de que tais recursos sejam submetidos ao regime da relevância, independentemente de qualquer discussão acerca de seus aspectos formais.19

Há de se pontuar ainda que, em decorrência da virada tecnológica que nosso judiciário vem passando, crê-se que o STJ deverá adotar um sistema e ambiente virtual análogo ao do STF para apuração de repercussão geral para análise do filtro da relevância de modo a otimizar sua atuação.20

Por todo lado, parcela da doutrina recebe a inserção do filtro recursal com bons olhos, considerando que a avaliação quanto à determinada novidade ser boa ou ruim deve acontecer tendo como cenário a realidade e não um mundo ideal: temos um Superior Tribunal de Justiça que tem uma carga desumana de recursos para decidir.21 Tal doutrina ainda refere que todas as questões de ordem federal do recurso especial devem ser relevantes, para que o recurso seja admitido, respeitando-se, evidentemente, os capítulos do acórdão impugnado, seguindo o entendimento da súmula 182/STJ.22

O fato é que a Emenda Constitucional já se encontra em vigor e a expectativa da práxis forense é da breve elucidação pelo STJ sobre o funcionamento e aplicação prática do filtro recursal, seja por meio de lei ou de previsão do regimento interno do tribunal superior, monitorando-se os critérios que serão utilizados nessa regulamentação, se haverá tendência de ampliação ou de redução de acesso, por exemplo, com a redução de cabimento dos Agravos em Recurso Especial. Para além da questão da regulamentação legal da EC 125/22, a expectativa é de que a inclusão do filtro recursal para a admissibilidade do recurso especial seja capaz de atenuar as dificuldades enfrentadas pelo STJ no seu funcionamento, viabilizando a efetivação da missão constitucional de uniformização da legislação federal e outorga de unidade do Direito, em prol da necessária segurança jurídica.23

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1 MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. 3ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 69.

2 THAMAY, Rennan e JUNIOR, Vanderlei Garcia. O Sistema Brasileiro de Precedentes: (In) Viabilidade Sistêmica? In: O Superior Tribunal de Justiça e a aplicação do direito: estudos em homenagem aos 30 anos do Tribunal da Cidadania. Carlos Alberto de Moraes Ramos Filho, Daniel Octávio Silva Marinho (coordenadores); prefácio Mauro Campbell Marques; apresentação Ari Jorge Moutinho da Costa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 609.

3 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo. 1ª ed. Rio de Janeiro: História Real, 2020. p. 198.

4 Há semelhança entre o mecanismo de filtro recursal para a admissibilidade do recurso especial brasileiro e o requisito de admissibilidade do recurso de Revision alemão da importância fundamental da matéria a ser enfrentada, o que ensejou uma análise comparativa entre o modelo alemão e o brasileiro atual. Estabelecendo-se um comparativo procedimental entre o julgamento da Revision alemã e o Recurso especial brasileiro, refere-se que, provido o recurso de Revision, anula-se a decisão recorrida, definindo-se a solução correta à questão de direito objeto do recurso (juízo de cassação - § 562 ZPO). Portanto, diferentemente da sistemática brasileira, em regra, o processo deve ser devolvido ao juízo a quo para novo julgamento conforme o entendimento do BGH (§ 563 (1) ZPO), admitindo-se, excepcionalmente, a superação do juízo de cassação, com a aplicação do direito à espécie (§ 563 (3) ZPO), nos casos em que se considere a causa madura para julgamento. Nessa hipótese excepcional, é facultado ao BGH a revaloração de provas e o reexame das respectivas conclusões do juízo de primeira instância quanto aos fatos relevantes para a decisão. (WELSCH, Gisele Mazzoni. Precedentes Judiciais e Unidade do Direito: análise comparada Brasil-Alemanha. Londrina, PR: Thoth, 2021. pp. 75/76).

5 Art. 1º O art. 105 da Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 105. ......................................................................................................

§ 1º ...............................................................................................................

§ 2º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento.

§ 3º Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo nos seguintes casos:

I - ações penais;

II - ações de improbidade administrativa;

III - ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos;

IV - ações que possam gerar inelegibilidade;

V - hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça;

VI - outras hipóteses previstas em lei."(NR)

Art. 2º A relevância de que trata o § 2º do art. 105 da Constituição Federal será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional, ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º do referido artigo.

Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

6 WELSCH, Gisele Mazzoni. Precedentes Judiciais e Unidade do Direito: análise comparada Brasil-Alemanha. Londrina, PR: Thoth, 2021. pp. 72/74.

7 Sobre os papeis das cortes supremas, Luís Roberto Barroso aponta três: o contramajoritário, que corresponde ao fato dos juízes não eleitos poderem invalidar decisões do Congresso ou do Presidente, que foram eleitos pelo povo; o representativo, que é o papel exercido quando são atendidas demandas sociais com amparo na Constituição e não satisfeitas a hora e a tempo pela política majoritária (Congresso Nacional); e o iluminista, que é a função exercida excepcionalmente pelas cortes constitucionais, independentemente da vontade do Congresso e mesmo contra a maioria popular, para proteger minorias e avançar a história. (BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo. 1ª ed. Rio de Janeiro: História Real, 2020. pp. 200/201).

8 MARINONI, Luiz Guilherme. A Zona de Penumbra entre o STJ e o STF: A função das Cortes Supremas e a delimitação do objeto dos recursos especial e extraordinário. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 106/107; 112.

9 MARINONI, Luiz Guilherme. A definição da interpretação da lei pelo STJ como requisito para a atuação do STF. Revista de Processo. vol. 311. ano 46. p. 167-187. São Paulo: Ed. RT, janeiro 2021.

10 CAMARGO, João Ricardo. O novo desenho estrutural dos Embargos de Divergência no STJ traçado pelo Código de Processo Civil de 2015. In: Revista de Processo, vol. 272/2017. p. 271 - 296.Out / 2017.

11 Nessa linha de entendimento, Marco Aurélio Serau Junior: "O STF é Corte Constitucional e, portanto, há plena justificativa para a implementação do requisito de limitação de admissibilidade que é a repercussão geral do recurso extraordinário. No caso do STJ, pensamos que o panorama é relativamente diverso. Embora não passe despercebida a magnitude desta Corte, verdadeira instância extraordinária, seu específico papel constitucional ainda parece ser pouco estudado. A limitação de admissibilidade do recurso especial, quando ausente a relevância da questão federal discutida, talvez implique em limitação inadequada da atuação daquela Corte" (SERAU JR., Marco Aurélio. Relevância da questão federal como filtro de admissibilidade do recurso especial: análise das propostas de emenda constitucional n. 209/2012 e n. 17/2013. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, vol. 224, p. 250).

12 NUNES, Dierle e LISBOA, Cícero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. Acesso em 18 de julho de 2022.

13 NUNES, Dierle e LISBOA, Cícero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. Acesso em 18 de julho de 2022.

14 NUNES, Dierle e LISBOA, Cícero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. Acesso em 18 de julho de 2022.

15 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal. Acesso em 18 de julho de 2022.

16 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal.Acesso em 18 de julho de 2022.

17 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, n. 8.1, p. 132.

18 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, n. 8.1, p. 132.

19 ARRUDA ALVIM, Teresa; UZEDA, Carolina; MEYER, Ernani. O funil mais estreito para o recurso especial. Acesso em 19 de julho de 2022.

20 NUNES, Dierle e LISBOA, Cícero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. Acesso em 18 de julho de 2022.

21 ARRUDA ALVIM, Teresa; UZEDA, Carolina; MEYER, Ernani. O funil mais estreito para o recurso especial. Acesso em 19 de julho de 2022.

22 Súmula 182 do STJ: "É inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada."

23 Antunes da Cunha, Guilherme; Fuga, Bruno; Welsch, Gisele Mazzoni. Comentários Sistemáticos ao Código de Processo Civil - Tomo IX - Dos processos nos tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais. Ordem dos processos. Dos recursos. Disposições finais e transitórias. Arts. 926 a 1.072. Londrina: Editora Thoth, 2022. p. 578.

Nem tanto ao céu nem tanto ao mar: o redimensionamento do clássico conceito de interesse de agir e a tentativa de solução consensual

Na contemporaneidade, ao mesmo tempo em que a globalização e o desenvolvimento de novas tecnologias despertam o interesse por descortinar novos temas aplicados ao direito processual, como o da inteligência artificial e o do visual law, é preciso também revisitar os institutos clássicos.

Neste momento, trataremos de um instituto clássico do direito processual: o interesse de agir. Para examiná-lo sob a ótica aqui proposta, primeiro precisaremos conceituar o instituto. O interesse de agir é um dos elementos cuja presença se mostra imprescindível para o regular exercício do direito de ação e é analisado a partir do binômio necessidade-utilidade. Significa afirmar a necessidade da realização do processo como meio de buscar, através da resposta do Poder Judiciário, situação mais favorável do que a atual, no compasso de adequação da tutela pleiteada à situação concreta1.

E assim se revela a concepção tradicional do interesse de agir: atrelada ao acesso à atividade jurisdicional, sem qualquer condicionante para seu acesso, privilegiando o foco no Poder Judiciário para a solução de conflitos. Cumpre ressaltar que não estamos apenas no campo teórico, posto que evidente o quanto dessa visão tradicional se opera no contexto prático impulsionando repercussões jurídicas e sociais. Sobre essa mesma concepção erigiu-se e moldou-se o comportamento social que acreditou ser possível deixar para o Judiciário a solução de todos os seus conflitos2, mesmo os mais corriqueiros. Em paralelo, existia um ensino jurídico que durante muitos anos formou bacharéis preparados para atuar apenas assessorando e postulando por litigantes nos tribunais3 de maneira estratégica e buscando resultados de ganhos, sem se ocuparem ou preocuparem com a reverberação social e emocional de tais respostas diretamente no processo judicial.

Como decorrência, o Judiciário acabou assoberbado. Registrou-se, segundo a Pesquisa Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça referente ao ano de 20214, 25,8 milhões de casos que ingressaram no Poder Judiciário e somaram-se a 75,4 milhões de casos pendentes que retratava verdadeiro estoque de processos formado no Poder Judiciário ao longo dos anos. Não se pode olvidar o quanto disso é resultado da cultura essencialmente litigante, aquela que considera a sentença, senão a única, pelo menos, a melhor forma de solucionar os conflitos.

Em contrapartida a essa constatação, começam a ganhar espaço as incipientes técnicas processuais autocompositivas, ainda vistas somente como uma válvula de escape da pletora dos processos que retrata a realidade do Poder Judiciário. E a partir da utilização dessas técnicas afere-se que o ideal de ser somente através atingível dos autos processuais a efetivação de direitos começa a gerar descrença, constatando-se que a processualidade nem sempre corresponderá aos ideais almejados para a concretude das questões do mundo da vida5.

Ao se tentar deixar a cultura da sentença e se passar para a cultura de empoderamento dos sujeitos processuais a partir da construção do consenso, os métodos de solução de conflitos são reconhecidos não mais como alternativos à jurisdição - e sim como adequados6 - e desenvolve-se a ideia de justiça multiportas7, através da qual cada conflito teria o método mais adequado para a sua solução, podendo ser através da jurisdição ou não.

Considerando que a própria previsão do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição não tem mais sua leitura atrelada ao acesso ao Judiciário, mas sim a uma ordem jurídica justa, que não se restringe ao Poder Judiciário, abrangendo qualquer forma de solução de conflito, a previsão do interesse de agir, contemplada no art. 17 do Código de Processo Civil, também precisa ser redimensionada.

Os debates sobre esse redimensionamento não estão distantes do cenário contemporâneo, embora ainda estejam esparsos, como passamos a sintetizar.

Por exemplo, no ano de 2014, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por meio do julgamento do Recurso Extraordinário 631.240, sobre a necessidade ou não de prévio requerimento administrativo como condição para o interesse de agir para o ajuizamento de demandas em que se pretende a concessão de benefícios previdenciários.

Na ocasião, foi fixada não apenas uma única tese jurídica, mas um conjunto de teses que propiciassem, dentro do contexto de previsibilidade, a solução realmente ampla e condizente com as perplexidades e com as controvérsias pertinentes ao tema à luz do interesse de agir8.

No ano de 2016, já estava consagrado entendimento que ainda hoje se mantém, de que a fase executória da desapropriação pode se dar através de acordo, sem a necessidade de manifestação judicial9.

No ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente o pedido formulado nas Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADIns) 2.139 e 2.160 para assentar que a Comissão de Conciliação Prévia constitui meio legítimo, mas não obrigatório, de solução de conflitos na Justiça do Trabalho.

Dois projetos de lei merecem ainda destaque: o Projeto de Lei 533, de 201910, a partir da justificativa de que não seria razoável que "o Judiciário, até por um aspecto estrutural e orçamentário, continue sendo o primeiro, único e o mais atrativo - financeiramente - acesso de materialização de direitos". Pretende, dentre outras alterações, acrescentar parágrafo único no art. 17 do Código de Processo Civil para, tratando-se de direitos patrimoniais disponíveis, o interesse de agir sujeita-se à necessária evidência de resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor.

O outro projeto de lei 3.813, de 202011, dispõe sobre a obrigatoriedade, nos litígios entre particulares que tenham por objeto direitos patrimoniais disponíveis, de realização de sessão extrajudicial de autocomposição prévia à propositura de ação judicial, seja para as ações de competência dos Juizados Especiais ou não.

Porém, qual seria a real dimensão do interesse de agir na contemporaneidade? No momento, o delineamento do tema nos parece estar nem tanto ao céu e nem tanto ao mar. Afigura-se cada vez mais difícil pensar na solução de conflitos apenas através do Poder Judiciário e em um acesso irrestrito ao Poder Judiciário. O Judiciário não pode - e nem deve - ser a primeira porta de todo e qualquer pleito. A interação com o juiz não deve ser construída antes da interação dialógica com a parte contrária. Porém, também não parece o momento de trazer a obrigatoriedade da solução consensual, como nosso vizinho, a Argentina, há anos convive, por exemplo, com a mediação pré-processual obrigatória12 ou como ocorreu no cenário italiano13.

A mudança de paradigmas passa, também, pela mudança de mentalidade, com a paulatina percepção dos reais benefícios da solução consensual14.

Nesse momento, é importante que se façam compreender os caminhos existentes em paralelo antes de se ir ao Judiciário não como opção, mas como decorrência de desconhecimento ou de cultura engessada. É premente difundir conhecimento e informação sobre ser possível construir alguma tentativa de diálogo como, por exemplo, por meio do call center, da comunicação ou da negociação, sem que tenha feitio específico ou qualquer formalidade, e sendo suficiente a demonstração da tentativa de diálogo prévio à busca do Poder Judiciário.

Retornando às lições clássicas, o interesse de agir deve estar, na verdade, na necessidade da realização do processo judicial, simplesmente porque não foi possível localizar a parte contrária para o diálogo ou porque esse diálogo não teve êxito, e na adequação da tutela pleiteada à situação concreta.

Esse delineamento não se trata de um entrave para o acesso ao Judiciário. O acesso à justiça pode ser realizado por qualquer mecanismo de solução adequada do conflito, na medida em que o Poder Judiciário nunca se afasta do controle do Estado sobre a realização da justiça. Todas as "portas" do sistema multiportas estão, de alguma forma, sujeitas ao controle de legalidade quanto à sua existência e validade. Isso porque, embora os termos de transação extrajudiciais não se sujeitem à homologação judicial para terem validade, as câmaras de mediação e de conciliação devem seguir diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e seguem sob autorização de funcionamento e controle feitos pelo Tribunal local. Do mesmo modo, embora a câmara arbitral não se sujeite a controle pelo CNJ, a sentença arbitral não exija homologação judicial para validade e nem suas sentenças sejam recorríveis à jurisdição tradicional, podem ser objetos de submissão ao sistema adjudicatório quando houver reclames de vícios, tal como ocorre quanto aos elementos transacionados em câmaras de mediação e de conciliação.

Outra dimensão de ganho social decorre do empoderamento dos próprios envolvidos no conflito, com a possibilidade de uma solução mais eficaz e mais célere para o caso concretamente vivenciado por tais interessados.

E como demonstrar os reais benefícios dessa proposta? Apenas ilustrando com um exemplo, a vereda assíncrona e não obrigatória de solução de conflitos consumeristas pela plataforma consumidor.gov.br15  alcança 99,52% das reclamações dos consumidores respondidas pelos fornecedores. Isso já demonstra de maneira cabal que, na quase totalidade dos casos, a resposta ao contato para estabelecimento do diálogo é possível. Já a solução consensual dos casos é atingida em quase 40%.

Esse percentual de solução parece ineficaz? Não, se considerarmos que estamos num momento de transição e ainda mudando uma cultura, sendo certo que apenas caminhamos e ainda temos muito a avançar. De outra banda, até os mais pessimistas são instados a reconhecer a significância de serem 40% a menos de demandas consumeristas que deixam de ingressam no Poder Judiciário. Notadamente se for comparado com os números de solução consensual hoje nas ações em curso no Judiciário (endoprocessuais) são muito inferiores: 15,8% na fase de conhecimento; 0,6% em fase recursal e; 4,7% na execução16.

Estamos em um processo dialógico de construção dos rumos do processo na contemporaneidade e precisamos não só enfatizar novos institutos como revisitar a roupagem dos institutos tradicionais. Essa missão está na academia e na prática forense (incluindo profissionais do direito e interdisciplinares), exigindo de todos o compromisso com a propagação e difusão dos caminhos e possibilidades de solução consensual e, na sua impossibilidade, de adjudicação, estando todos no mesmo patamar de segurança jurídica e eficácia dos resultados. E esse é o início da caminhada.

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1 DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 32.ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 322.

2 Sobre o tema: MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

3 O cenário começou a se modificar substancialmente a partir da Resolução nº 5/2018 do Ministério da Educação.

4 Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/justica-em-numeros-sumario-executivo.pdf. Acesso em 22 jul. 2022.

5 FÜLLER, Lon L. The Forms and Limits of Adjudication. Harvard Law Review. Harvard: Harvard Law School, vol. 92, no. 2, dez. 1978, p. 398.

6 WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Disponível em https://www.tjsp.jus.br/Download/Conciliacao/Nucleo/ParecerDesKazuoWatanabe.pdf. Acesso em 22 jul. 2022.

7 ZANETI JR., Hermes, CABRAL, Tricia Navarro Xavier. Justiça multiportas. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2018.

8 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Sistematização, análise e interpretação do instituto processual. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2017, p. 179-180.

9 Sobre o tema, a título de exemplo, destacam-se os seguintes julgados: REsp 1.932.476 / PR, REsp 1.801.831/SC e REsp 1.595.668/PR.

10 Tramitação disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191394. Acesso em 23 jul. 2022.

11 Tramitação disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2257795. Acesso em 23 jul. 2022.

12 REMER, Luciana de Andrade Amoro; PUGLIESE, William Soares. Mediação Pré-Judicial Obrigatória: a experiência da Argentina. Disponível em https://portaldeperiodicos.unibrasil.com.br/index.php/anaisevinci/article/view/5669. Acesso em 23 jul. 2022.

13 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; PAUMGARTTEN, Michele Pedrosa. L`esperienza italo-brasiliana nell'uso della mediazione in risposta alla crisi del monopolio statale di soluzione di conflitti e la garanzia di acceso alla giustizia. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais (Eletrônica), v. 11, 2012, p. 171-201.

14 Importante destacar que uma das autoras, Márcia Michele Garcia Duarte já escreveu sobre os estímulos à solução consensual em DUARTE, Márcia Michele Garcia. A sanção pedagógica e os aspectos éticos e morais da consensualidade: em busca da efetividade do modelo multiportas. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro: UERJ, v. 22, 2021, p. 684-709.

15 Os dados foram obtidos em PORTO, Antônio José Maristello; NOGUEIRA, Rafaela; QUIRINO, Carina de Castro. Resolução de conflitos on-line no Brasil: um mecanismo em construção. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, ano 26, nov.-dez. 2017, p. 310-312.

16 CNJ. Justiça em Números 2021, p. 192. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf. Acesso em 23 jul. 2022.

Audiências telepresenciais e eventuais falhas: justa causa ou litigância de má-fé?

A virtualização certamente foi um dos maiores legados da pandemia para o sistema processual judicial. Fatores pandêmicos (como restrições ao deslocamento e diretrizes de distanciamento social) deram o empurrão que faltava para a oferta de diversos serviços judiciários remotos no período em que vigoraram medidas de prevenção e controle determinadas pelo Poder Público.

Em tal cenário merece especial destaque a ocorrência maciça de audiências por videoconferência - que, como não poderia deixar de ser, ensejou diversos questionamentos em relação às garantias processuais relevantes. O foco deste breve artigo é promover reflexão sobre a aplicação, nesse contexto, de duas regras processuais que regulam situações diametralmente opostas: a justa causa e a litigância de má-fé.

Como ambas as hipóteses regulam situações relacionadas à boa-fé processual, por conseguinte estabelecem consequências jurídicas para as partes que praticam ou deixam de praticar atos processuais.

Na justa causa, a comprovação acerca da existência de evento alheio que impeça a prática do ato processual faz incidir a regra do art. 223, §2º, do CPC, que autoriza a magistratura permitir à parte a prática do ato no prazo que assinalar.

Em relação à responsabilidade das partes por dano processual, a verificação da ocorrência de alguma das circunstâncias previstas nos incisos II (alteração da verdade dos fatos), IV (oposição de resistência injustificada ao andamento do processo) e V (atuação temerária em qualquer incidente ou ato do processo) do art. 80 do CPC gera condenação por litigância de má-fé, consistente no pagamento de multa superior a 1% (um porcento) e inferior a 10% (dez porcento) do valor corrigido da causa. Tal montante pode alcançar 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo quando o valor da causa for irrisório ou inestimável. Além disso, pode haver indenização da parte contrária pelos prejuízos sofridos, incluindo honorários advocatícios e despesas efetuadas.

Considere-se hipoteticamente a situação em que a parte, por falhas técnicas, não consegue ingressar em uma audiência realizada por videoconferência: qual deverá ser a consequência?

Em primeiro lugar, para evitar excessivas desconfianças, há que se considerar que a boa-fé sempre se presume1. Por força de tal diretriz, a razão da ausência não poderá ser objeto de especulação nem conclusão açodada.

Embora a pessoa possa ter buscado se preparar com antecedência, justamente na hora da audiência podem ocorrer empecilhos.

Quem já passou por dificuldades de acesso sabe que o momento é pautado por muitas dúvidas: estará o problema no próprio aparato tecnológico ou no sistema do Poder Judiciário? Como aferir a resposta correta quando faltam informações técnicas e a comunicação está prejudicada? Se muitas vezes os Tribunais apenas reportam a falha no dia seguinte à ocorrência, como ter segurança? Será que o empecilho à acessibilidade se dá por falhas da operadora de internet? E se ocorreram súbitas intermitências na energia elétrica? Além de todas essas hipóteses, outros imprevistos insuperáveis podem surgir.

Obviamente diante de ocorrências de tal ordem a parte poderá legitimamente invocar justa causa para que o ato seja repetido em outra oportunidade, em prazo assinalado pelo magistrado. Esta regra parte do dever de tratamento isonômico e da boa-fé processual, de modo que a inacessibilidade ou a indisponibilidade gerada por problemas no meio digital não poderá ensejar efeitos processuais danosos às partes.

Por outro lado, se diante deste mesmo caso o magistrado constatar que a parte simulou alguma falha técnica com o propósito de escapar do ato processual, poderá condená-la por litigância de má-fé. Esta regra, a seu turno, revela-se muito relevante para a prática de atos processuais virtualizados por servir como fator inibidor de falsas alegações da justa causa decorrente da inacessibilidade ou indisponibilidade do meio digital.

Portanto, quando a parte alega que não conseguiu acessar o sistema para participar de uma audiência por videoconferência por embaraços técnicos, ela tem a prerrogativa de invocar a justa causa prevista no art. 223 do CPC - com a ressalva de que possa vir a ser condenada por litigância de má-fé caso o magistrado constate posteriormente, de algum modo, a falsidade de tais alegações.

No ponto, vale ressaltar que a boa-fé apenas será violada se o litigante alegar falsamente a justa causa ou levantar argumentos que de antemão já se sabe serem infundados. Assim, não há violação da boa-fé diante da divergência entre a interpretação dos fatos dada pela parte que alegou justa causa e o entendimento do juiz. O magistrado pode, por exemplo, entender que o fato impeditivo do acesso à audiência não é grave o suficiente para caracterizar justa causa e nesse caso, não há que se falar em má-fé - exceção feita à hipótese em que reste demonstrado o despropósito evidente da alegação2 e/ou o desvio de finalidade.

Como exemplo, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) condenou um escritório de advocacia a pagar multa de 5% do valor da causa (correspondente, no caso, a R$ 21.770,00 - vinte um mil, setecentos e setenta reais) por litigância de má-fé porque sua preposta teria simulado uma falha técnica ao longo da audiência realizada por videoconferência com o intuito de se valer da justa causa para que fosse designada uma nova data para sua realização3.

Uma outra questão que merece reflexão no contexto das audiências virtuais relaciona-se ao potencial tecnológico para o cometimento de outras falsidades. Um exemplo emblemático é o Deepfake, que consiste na utilização de programas que substituem a face de uma pessoa pela de outra nas videoconferências.

A tecnologia tem evoluído tanto que chega a ser difícil perceber a adulteração do rosto, já que os programas empregados permitem tal substituição com perfeição e estão sendo rapidamente melhorados para permitir movimentos faciais cada vez mais precisos.

É evidente a necessidade de o Poder Judiciário estar sempre atento às novas tecnologias e seus potenciais - eventualmente danosos -, para que possam solvê-los com rapidez. Mediante a concepção de um processo 100% digital, há que se fazer uma releitura sobre os fundamentos do direito processual, e, neste contexto, todos devem estar preparados para a nova realidade que veio para ficar.

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1 TARTUCE, Fernanda. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. São Paulo: Método, 2012, p. 347.

2 Ibidem.

3 Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP). Processo nº 1000023-57.2020.5.02.0062. Notícia disponível aqui. Acesso em: 6 mai. 2022.

Blockchain e Ata Notarial: Dois meios de provas equiparáveis?

Não restam dúvidas de que a sociedade pós-moderna convive com uma série de (r)evoluções tecnológicas, uma vez que, após a II Guerra, se teve uma inquestionável revolução digital, que repercute notadamente na informação e na comunicação1. Assim, Aldous Huxley, em seu "O admirável mundo novo"2, aponta tanto os desafios bem como o deslumbramento com o qual o homem contemporâneo se depara, pelas possibilidades tecnológicas, como também a insegurança trazida pelos desafios de atuar em uma realidade na qual se exige constante (re)adaptação.

O avanço tecnológico ocorre, nos dias de hoje, a uma velocidade sem precedentes e os seus desdobramentos se fazem sentir em todos os aspectos da vida humana. Tais inovações acabam por gerar novos desafios a todos os setores e segmentos da sociedade, incluindo-se, aí, sem qualquer dúvida, o Direito que, nessa corrida tecnológica, tenta regulamentar essa nova realidade. A tecnologia blockchain surge nesse cenário como mais um avanço dessa revolução tecnológica, representando no mundo digital, desde a globalização, a maior oportunidade a permitir o avanço da sociedade em suas mais diversas operações, compreendendo parte fundamental da denominada "Indústria 4.0" ou "Quarta Revolução Industrial"3.

Dentro da ideia exposta, traz-se o seguinte questionamento: caberia a utilização da tecnologia blockchain junto ao processo judicial? Cabe salientar que o blockchain, ao traduzir para a língua portuguesa o nome dado a essa tecnologia block + chain, é possível formar uma imagem mental de como ela funciona: são blocos de registros das informações ligados em rede, ou seja, uma "cadeia de blocos" ou "encadeamento de blocos", o que proporciona uma referência inicial de como atua essa tecnologia. Ela permite que a "transmissão de qualquer tipo de informação ocorra por meio de "cripto-chaves", que quando efetivada forma um bloco"4, funcionando como um livro contábil de registros, de forma pública, compartilhada e universal, de modo a criar consenso e confiança entre todas as pessoas e sobre todas as informações, no qual as transações de cada registro ficam armazenadas5.

Blockchain consiste, pois, em uma tecnologia disruptiva na qual as informações são consolidadas e encadeadas em blocos virtuais, podendo-se fazer analogia com um livro, no qual cada página contém um texto (o conteúdo), em cujo topo se insere uma informação sobre o referido conteúdo (um título ou numeração)[6]. O blockchain é, portanto, uma forma de guardar informações em bancos de dados.

Embora a criptomoeda de bitcoin tenha colocado o holofote sobre a tecnologia blockchain, ela abre portas para infinitas possibilidades. Pesquisas desenvolvidas recentemente apontam inúmeros setores de aplicação do blockchain, segmentos esses entre os quais podemos citar: setor financeiro, gerenciamento de dados, saúde, redes sociais, cibersegurança, transporte e turismo, autoria e propaganda, entre outros, alguns deles de interesse dos profissionais do direito7.

Para exemplificar como a tecnologia blockchain pode ser utilizada junto ao Direito, podem ser citados, por exemplo, os casos de registro e transferência de propriedade, celebração e execução de contratos eletrônicos, que poderão ser provados com a segurança jurídica necessária, excepcionados os casos que se exige instrumento público ou outra formalidade específica, a partir das anotações do "livro contábil aberto a todos"8.

Mais clara, ainda, é a hipótese em que um print screen é tirado de uma de uma página de uma rede social aberta em um smartphone para comprovar um ato ilícito perpetrado. Se impugnado o print screen, a parte que o utilizou no processo terá que fornecer mecanismos para que ele possa ser autenticado, a teor da disposição do art. 422, § 1º, do CPC/2015. Caso a publicação original tenha sido removida, será virtualmente impossível demonstrar a autenticidade do print screen sem os referidos metadados, ou mesmo realizar perícia sobre ele.

Diante disso, resta claro que é passível de utilização à luz do sistema processual cível da tecnologia blockchain, justamente em razão da conformidade com o núcleo ontológico do tipo "meio de prova", uma vez que resta claro que a tecnologia apresentada possui o potencial de esclarecer o thema probandum, o fato da fonte da prova ser um sistema, em nada obstaculiza a sua admissão, desde que, obviamente, respeitados os limites da legalidade da prova. No mesmo sentido é a lição de Michele Taruffo9, que diz que, se tratando documento informático assinado pelos meios especiais legalmente estabelecidos, resulta equivalente a um documento privado com a firma certificada.

Com o objetivo de corroborar o entendimento acima exposto, pode-se citar a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que este permitiu a autenticidade de documentos que constituíam meios de prova, por meio da plataforma blockchain, sendo que o caso discutia a exclusão de postagens supostamente ofensivas a um político veiculadas em redes sociais. Objetivando comprovar a existência do conteúdo eletrônico na internet, o autor fez o registro utilizando não a ata notarial, mas a plataforma blockchain.

A decisão judicial em questão foi proferida em sede de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que, em ação de obrigação de fazer e não fazer, indeferiu o pedido de tutela provisória visando à remoção de conteúdos disponibilizados em páginas do Facebook, Instagram e Twitter e ao fornecimento de dados de dados de usuários das referidas redes sociais.

No recurso de agravo o autor (ofendido) pontuou ser "indispensável que os usuários não sejam comunicados sobre a demanda, pois podem se desfazer de provas do ilícito". No julgamento do recurso, a relatora Desembargadora Fernanda Gomes Camacho, que foi acompanhada pelos demais membros do colegiado da 5ª Turma de Direito Privado, pontuou que "o próprio recorrente afirmou que 'a partir do conhecimento dos fatos, o autor providenciou a preservação de todo o conteúdo via blockchain, junto à plataforma OriginalMy, hábil a comprovar a veracidade e existência dos conteúdos"10.

O importante para o presente ensaio é o fato de que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, levou em consideração o uso da tecnologia e acabou por considerar o conteúdo registrado via blockchain hábil a comprovar a veracidade e existência dos conteúdos, o que mostra a possibilidade de se utilizar da tecnologia blockchain como um meio de prova hábil para comprovar a veracidade de documentos extraídos da internet, o que se mostra de grande importância quando se trata da questão da valoração probatória.

Por outro lado, não se pode esquecer que a Ata Notarial, meio típico de prova devidamente previsto pelo CPC e dotado de fé pública por ser autenticado com um notário, também possui a finalidade de comprovar a veracidade de documentos diversos. Assim, muitos estudiosos sobre o tema equiparam a autenticação gerada pela tecnologia blockchain com a gerada pela Ata Notarial. Mas até que ponto é possível fazer uma analogia entre ambas? Seria correto equiparar o blockchain a Ata Notarial? Não restam dúvidas de que ambos são meios de provas, sendo a Ata Notarial é um meio de prova típico, previsto no CPC em seu art. 384, sendo que a sua força como meio de prova encontra-se no fato de que a veracidade do documento é atestada por um tabelião, que possui fé pública. Por outro lado, a tecnologia blockchain não possui previsão legal junto ao CPC, podendo ser considerada um meio de prova atípico em virtude da falta de previsão legal. O fato do CPC trazer uma previsão expressa sobre documentos eletrônicos não atesta tipicidade para o blockchain, uma vez que se trata de uma tecnologia que confere autenticidade para os documentos, não se tratando propriamente dos documentos eletrônicos.

Não se busca exaurir as discussões acerca do tema com o presente ensaio, o que se busca é demonstrar que, apesar da aproximação das funcionalidades da tecnologia blockchain e da Ata Notarial, ambas não devem ser equiparadas e já será demonstrado o motivo. Ainda, não se busca alegar que a tecnologia blockchain não possa ser utilizada como um meio de prova, uma vez que ela pode (e deve) ser utilizada para validar a autenticidade de documentos (principalmente digitais) que se mostrariam ser extremamente difíceis de comprovar a sua veracidade.

Mas, a equiparação da Ata Notarial com o blockchain possui reflexos principalmente no momento de valoração da prova, sendo que, apesar da autenticidade conferida a tecnologia blockchain, esta não é conferida por um notário dotado de fé pública, motivo pelo qual, a meu ver, ambos não devem ser equiparados. Caso haja a utilização da tecnologia blockchain, pelo notário, o que se mostra totalmente possível, se está diante de um caso em que a tecnologia blockchain poderia ser equiparada a Ata Notarial, caso contrário, não.

Assim, resta claro que é totalmente possível a utilização de blockchain, sendo que pode ser um meio menos custoso para uma parte hipossuficiente de prover a veracidade de suas provas junto ao processo. Mas, não se está aqui a apregoar a validade plena e absoluta da prova produzida a partir do armazenamento das informações pelo blockchain, mas se está sim a defender o entendimento de que ela pode produzir efeitos válidos, mas que ela não substitui, ainda, a ata notarial, tendo em vista que a sua alteração resultaria na substituição da confiança atribuída pela lei ao notário.

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1 CARACIOLA, Andrea; ASSIS, Carlos Augusto de; DELLORE, Luiz. Prova produzida por meio de blockchain e outros meios tecnológicos: equiparação à ata notarial? In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; WOLKART, Erik Navarro; LAUX, Francisco de Mesquita; RAVAGNANI, Giovani dos Santos. Direito, Processo e Tecnologia. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 66.

2 HUXLEY, Aldous. O admirável mundo novo. Saraiva: São Paulo, 2014.

3 SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.

4 FISCHER, José Flavio. Novas tecnologias, "blockchain" e a função notarial. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2022.

5 CERQUEIRA, Aurimar Harry; STELER, Fernando Wosniak Steler. Tudo o que você queria saber sobre blockchain e tinha receio de perguntar. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2022.

6 HERTEL, Maristela. Validade jurídica da autenticação de informações obtidas na internet através da plataforma digital Blockchain. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2022.

7 Casos Reais da Blockchain: 46 Aplicações da Blockchain. 101 Blockchains. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2022.

8 GAVA FILHO, João Miguel; FAZANARO, Renato Vaquelli. Os Novos Ares da (A)Tipicidade no Processo Civil: Meios de Prova e Medidas Executivas no CPC/2015. Revista dos Tribunais. vol. 1015. Maio 2020. p. 213- 239.

9 TARUFFO. Michele. A prova. Trad. João Gabriel Neto. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 87

10 Ementa: OBRIGAÇÃO DE FAZER. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. Publicações em páginas do Facebook, Instagram e Twitter. Alegação de conteúdos inverídicos e ofensivos, com o objetivo de produzir o descrédito do autor junto à opinião pública. Pretensão de remoção dos conteúdos, fornecimento de informações dos usuários e abstenção de comunicação dos requerimentos a terceiros. Descabimento. Requisitos do art. 300 do CPC ausentes. Liberdade de expressão e manifestação, direito à informação e inviolabilidade da honra e imagem assegurados pela Constituição Federal (arts. 5º, IX, IV, V e X, e 220). Controle judicial da manifestação do pensamento tem caráter excepcional, sob pena de indevida censura. Necessidade de demonstração da falsidade da notícia. Precedentes do STJ. Matéria fática que demanda análise mais aprofundada sob crivo do contraditório e ampla defesa. Ausentes requisitos necessários para o fornecimento liminar de informações dos usuários. Art. 22, Lei nº 12.965/14. Abstenção de comunicação a terceiros que não se justifica, pois o autor já providenciou a preservação do conteúdo. Decisão mantida. Recurso não provido. TJSP, 5ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2237253-77.2018.8.26.0000, rel. Des. Fernanda Gomes Camacho, j. 19/12/2018, p. 5).

O caminho é longo e nós vamos de salto

Embora as mulheres ocupem a maior parte dos bancos das universidades brasileiras, quando partimos para as instâncias de poder percebemos a presença majoritariamente masculina.   

Em toda a sua história, somente 3 mulheres foram ministras do STF. Esperamos mais de 100 anos para a posse da primeira mulher, a ministra Ellen Gracie, no ano 2000; a segunda, a ministra Carmem Lúcia, tomou posse em 2006; a terceira, ministra Rosa Weber, ingressou na mais alta corte em 2011.

Ao compararmos o lapso temporal para o ingresso da primeira mulher no Supremo com o espaço de tempo para a posse das outras duas ministras, até ficamos animadas e pensamos que talvez estivéssemos encurtando o caminho. Afinal, para a posse da primeira mulher havíamos esperado 100 anos, para a segunda 6 e para a terceira apenas 5. 

Todavia, as perspectivas positivas são indiscutivelmente frustradas, já que após 2011 surgiram 5 vagas no STF e todas elas foram preenchidas por homens. E essa ausência de representatividade feminina nos espaços de poder também está presente nos outros tribunais.

No STJ, o "tribunal da cidadania", dos 32 cargos de ministros ocupados, apenas 6 são mulheres, proporção que se repete na maioria dos demais tribunais. Há ainda tribunais, como o TRF da 5ª Região, em que não há sequer uma desembargadora - situação que esperamos seja, em breve, resolvida, uma vez que existe vaga aberta e três mulheres extremamente competentes integram a lista sêxtupla formada pelo Ministério Público1. 

Não fosse suficiente a falta numérica de mulheres nos tribunais, ainda há uma distorção participativa ainda mais agressiva: a interrupção da fala das mulheres na Cortes, realidade observada também fora do Brasil.

Estudo realizado pela Universidade Northwestern concluiu que as interrupções de ministros da Suprema Corte dos Estados Unidos, quando eles estão expondo os seus argumentos, possuem estrita relação com questões de gênero. As Ministras, além de serem mais interrompidas do que os Ministros, o são não apenas por seus colegas da Corte, mas por advogados homens, prática que, ressalte-se, é proibida pelas diretrizes do Tribunal2. 

O estudo, intitulado "Justice, Interrupted: The Effect of Gender, Ideology and Seniority at Supreme Court Oral Arguments"3, demonstra que as dificuldades impostas para as mulheres permanecem até mesmo quando alcançamos a posição de maior poder das carreiras jurídicas. No âmbito brasileiro, constatou-se que os processos judiciais relatados por mulheres são "contemplados" por mais divergências do que aqueles relatados por homens4.

E a situação de desequilíbrio se repete nas demais carreiras jurídicas. O Conselho Federal da OAB, por exemplo, nunca foi presidido por uma mulher e somente uma mulher ocupou o cargo de Procuradora Geral da República.

Não é diferente a realidade de gênero na Faculdade de Direito da USP. Em quase 200 anos de existência, somente uma mulher ocupou o seu cargo de direção: a professora Ivette Senise Ferreira, entre os anos de 1998 a 2002. 

É bem possível que a dificuldade de participação tenha a ver com a maternidade e com a conciliação das atividades domésticas. Dados do IBGE apontam que as mulheres dedicam 21,4 horas semanais aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, ao passo que os homens dedicam apenas 11 horas semanais para as mesmas atividades5.

É evidente a relação da maternidade com a inserção feminina no mercado de trabalho, já que o nível de ocupação (em atividades econômicas) das mulheres que convivem com crianças de até 3 anos de idade é de 54,6 horas semanais e o dos homens é de 89,2 horas semanais6.   

Esse cenário, especialmente no que diz respeito à influência da maternidade nas carreiras profissionais das mulheres, leva-nos a questionar qual o papel dos homens no mundo, haja vista que a maternidade nasce ao mesmo tempo da paternidade. A chegada de um filho, portanto, não deveria impactar a vida dos homens e das mulheres de igual forma?

Bem, não é novidade que vivemos em uma sociedade machista e que, desde crianças, somos condicionadas a perpetuar esse status quo. Entramos em uma loja de brinquedos e já percebemos nitidamente a seção das meninas e dos meninos: os brinquedos deles incentivam a diversão e o delas, as tarefas domésticas.

Talvez algo que começasse a mudar essa realidade fosse a promoção de uma campanha massiva sobre o direito de as crianças brincarem com o que elas quisessem, afinal, tudo começa na infância. Essa seria a construção de uma mudança cultural que, embora imprescindível, demanda muito tempo.

Como não temos tempo a perder, mudanças legislativas podem encurtar esse longo caminho. A título de exemplo, a licença maternidade pode se transformar em licença parental, de modo que o pai e a mãe escolham quem irá se licenciar para cuidar do novo membro da família. A famosa e inconveniente pergunta das entrevistas de emprego sobre o desejo de ser mãe não faria mais sentido. Essa já é a realidade de alguns países europeus, dentre eles, Finlândia, Alemanha, Islândia, Noruega e Suécia7.

Todo esse cenário, embora preocupante, revela a premente necessidade da união das mulheres em busca da igualdade de gênero, afinal, o caminho é longo e nós vamos de salto.

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1 Dos seis nomes indicados, o primeiro lugar é de uma mulher, cuja votação (560 votos) foi a maior da história do MPF.

Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 GOMES, Juliana Cesario Alvim; NOGUEIRA, Rafaela; ARGUELHES, Diego Werneck. Gênero e comportamento judicial no supremo tribunal federal: os ministros confiam menos em relatoras mulheres?. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, nº 2, 2018 p.854-876

5 Disponível aqui. Acesso em: 16 mar. 2021.

6 Disponível aqui. Acesso em: 16 mar. 2021.

7 Disponível aqui.

A cooperação judiciária interinstitucional entre as serventias extrajudiciais e o Poder Judiciário e a resolução 350/2020 do CNJ

O CPC/2015 trouxe muitas promessas, dentre elas, a da cooperação como norma fundamental, estampada no art. 6º: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva".

Mais adiante, o Código estabeleceu um regramento próprio para a cooperação judiciária nacional e internacional. No caso da cooperação nacional, percebe-se que as regras foram destinadas precipuamente aos órgãos do Poder Judiciário (art. 67), podendo os juízos formular entre si pedidos de cooperação para a prática de qualquer ato processual (art. 68). Entretanto, restou clara também a possibilidade de cooperação entre órgãos jurisdicionais diversos, com a expressa menção à carta arbitral (art. 69, §1º)1 e a referência contida no art. 69, §3º de que "o pedido de cooperação judiciária pode ser realizado entre órgãos jurisdicionais de diferentes ramos do Poder Judiciário".

Para além da cooperação entre juízos pertencentes ao Poder Judiciário, Fredie Didier Jr. explicita que a cooperação pode representar também a interação entre órgãos judiciários e tribunais arbitrais ou órgãos administrativos, inclusive por intermédio do compartilhamento ou delegação de competência, centralização de processos, produção de prova comum, prática de atos processuais, gestão de processos, entre outras técnicas2.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Flávia Pereira Hill chama a atenção para o indispensável incremento da cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial, mais especificamente, os cartórios extrajudiciais, com o desenvolvimento do que denominou "triplo C": cooperação, complementaridade e coordenação. Para a autora, a administração da justiça é compartilhada por vários agentes, incluindo os delegatários dos cartórios extrajudiciais, de modo que diversas medidas cooperativas devem ser implementadas entre estes e os órgãos judiciais, dentre as quais se destacam: a) a criação e regulamentação da carta extrajudicial como instrumento de cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial, por analogia à carta arbitral; b) a possibilidade de a prova produzida perante cartório extrajudicial ser emprestada para o processo judicial, desde que garantido o contraditório3.

Reconhecendo a possibilidade da utilização de instrumentos de cooperação entre cartórios extrajudiciais e órgãos judiciais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação nº 28/2018, para que os tribunais de justiça dos Estados e do Distrito Federal celebrassem convênios com notários e registradores do Brasil para a instalação, nas serventias, de centros judiciários de solução de conflitos e cidadania (CEJUSCs) nos locais em que ainda não tivessem sido implantados4.

Em 29.10.2020, o CNJ editou a Resolução nº 350, que dispõe sobre a cooperação judiciária nacional, a qual estabelece, em seu art. 1º, que a cooperação abrange as seguintes dimensões: a) ativa, passiva e simultânea entre órgãos do Poder Judiciário; e b) interinstitucional entre órgãos do Poder Judiciário e outras instituições e entidades, integrantes ou não do sistema de justiça, que possam contribuir, direta ou indiretamente, para a administração da justiça.

O art. 16 da Resolução enumera os órgãos e instituições que podem atuar na cooperação interinstitucional5. Esperava-se que os cartórios extrajudiciais estivessem nessa lista, notadamente em razão da Recomendação nº 28/2018 e de outros tantos instrumentos normativos do próprio CNJ que evidenciam a atuação colaborativa das serventias com o Poder Judiciário, porém tal inclusão não aconteceu.

De toda sorte, extrai-se da redação do próprio caput do art. 16 que o rol é meramente exemplificativo. Nada impede que outros órgãos, entidades e instituições, integrantes ou não do sistema de justiça, sejam considerados cooperantes interinstitucionais, desde que possam contribuir para a execução da estratégia nacional do Poder Judiciário, promover o aprimoramento da administração da justiça, a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional.

Assim é que, apesar da redação do art. 16 da Resolução 350 do CNJ, entende-se que a cooperação interinstitucional, nos termos dos arts. 1º, inciso II, 16 e seguintes da Resolução nº 350/2020 do CNJ, deve abranger as serventias extrajudiciais e são muitas as razões para tanto.

A atividade notarial e registral, embora exercida em caráter privado por delegação do Estado (art. 236, caput, da CF), é pública, conforme já decidiu o STF6. O ingresso na atividade ocorre através de aprovação em concurso público de provas e títulos (art. 236, §3º, da CF), realizado pelo Poder Judiciário (art. 15 da lei 8.935/94), a quem cabe também a outorga da delegação, através de ato da Presidência ou da Corregedoria-Geral de Justiça do respectivo Tribunal de Justiça estadual. Sendo a atividade delegada pelo Poder Público, os notários e registradores estão submetidos à normatização e à fiscalização por parte do ente público delegante e essas atividades são desempenhadas pelas corregedorias estaduais e pelo CNJ (art. 103-B, §4º, I e III, da CFRB). Além disso, estão sujeitos a processo administrativo disciplinar e à perda da delegação em caso de descumprimento de seus deveres, previstos em Lei e nas normas administrativas, inclusive o dever de observar as prescrições legais e normativas (arts. 30, XIV, 31, I e 32 a 35 da lei 8.935/94).

A remuneração da atividade se perfaz mediante o pagamento de emolumentos, que têm natureza jurídica de taxa, conforme já definiu o STF7, considerando a natureza pública e o caráter social dos serviços prestados pelas serventias extrajudiciais.

Os delegatários das serventias são juristas8, dotados de fé pública, que têm por função garantir publicidade, autenticidade, eficácia e segurança jurídica aos atos e negócios jurídicos, conferindo-lhes presunção de veracidade e valor probatório, além de exercerem um relevante papel de assessoria e aconselhamento aos usuários dos serviços notariais e registrais.

É tradicional, aliás, a concepção segundo a qual notários e registradores são agentes de pacificação social que atuam na prevenção de litígios9. Por isso, em diversos países que adotam o chamado notariado latino10, verifica-se uma tendência de desjudicialização11 de procedimentos de jurisdição voluntária para os cartórios extrajudiciais12, notadamente em razão da inexistência de conflito entre os envolvidos que geralmente é referida como uma das características dessa espécie de jurisdição.

Esse movimento também está presente no Brasil e é certo que os diversos instrumentos normativos que promoveram a desjudicialização até aqui demonstram uma preferência pelas serventias extrajudiciais. Vários procedimentos podem ser levados a efeito nos cartórios sem a obrigatoriedade de intervenção judicial, tais como os casamentos, inclusive homoafetivos, as retificações administrativas, as escrituras públicas de divórcio e partilha, a usucapião extrajudicial, a divisão e a demarcação por escritura pública, o reconhecimento da filiação biológica e da socioafetiva diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, entre outros.

A constatação de que os notários e registradores são agentes de pacificação social e que, portanto, podem atuar não apenas na prevenção como também na solução consensual dos conflitos deu ensejo à expressa previsão, na lei 13.140, de 26.06.2015, em seu art. 45, de que a mediação pode ser realizada nas serventias extrajudiciais e que, portanto, notários e registradores e seus prepostos podem ser mediadores. O CNJ, em seguida, regulamentou a matéria por intermédio do Provimento nº 67/2018.

Em razão de todas as características acima referidas, entende-se que as serventias extrajudiciais integram o sistema de justiça. Sobre o ponto, no Fórum Permanente de Processualistas Civis realizado em março do ano em curso, restou aprovado o enunciado de nº 707, segundo o qual a atuação das serventias extrajudiciais integra o sistema brasileiro de justiça multiportas13. Cuida-se de um relevante reconhecimento doutrinário de que os cartórios extrajudiciais constituem uma das vias dispostas ao cidadão para a solução de seus conflitos.

Partindo-se da premissa de que as serventias extrajudiciais integram o sistema de justiça, considera-se que podem elas atuar em colaboração com outros órgãos, integrantes ou não do Judiciário. Daí porque devem estar inseridas no contexto da cooperação judiciária interinstitucional, nos termos da Resolução nº 350 do CNJ.

Em razão disso, a autora do presente texto apresentou, perante a II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios, realizada pelo Conselho da Justiça Federal, proposta de enunciado, que foi aprovado nos seguintes termos: "A cooperação nacional interinstitucional pode ser realizada entre órgãos judiciais e serventias extrajudiciais, inclusive para a prática dos atos de cooperação descritos no art. 6º da Resolução n. 350/2020 do CNJ, no que couber"14.

Embora os atos de cooperação interinstitucional estejam descritos no art. 1515, o rol não é taxativo, visto que o caput menciona que poderão ser adotadas outras providências além daquelas ali referidas.

Tendo em vista a natureza da atividade notarial e registral e os seus contornos atuais, pensa-se que a cooperação interinstitucional entre serventias extrajudiciais e órgãos judiciais pode abranger diversos dos atos descritos no art. 6º da Resolução nº 350, dentre os quais se destacam: a) a prática de atos de comunicação processual, notadamente nos procedimentos desjudicializados e naqueles em que há atuação conjunta judicial e extrajudicial; b) a prestação e a troca de informações relevantes para a solução dos processos extrajudiciais; c) a obtenção e apresentação de provas, a coleta de depoimentos e meios para o compartilhamento de seu teor; d) a efetivação de medidas e providências referentes a práticas consensuais de resolução de conflitos; e e) o compartilhamento de infraestrutura, tecnologia e informação, respeitada a legislação de proteção de dados pessoais.

Feitas tais considerações, revela-se fundamental elencar, ainda que exemplificativamente (dados os limites do presente texto), algumas medidas de cooperação interinstitucional que têm sido concretizadas entre serventias extrajudiciais e órgãos judiciais.

Primeiramente, deve-se fazer referência às centrais eletrônicas notariais e registrais, cujos dados são compartilhados com o Poder Judiciário, a exemplo da Central de Informações do Registro Civil (CRC) que, por intermédio da CRC-Jud16, permite que magistrados e integrantes de órgãos públicos conveniados realizem buscas de registros de nascimentos, casamentos e óbitos, e que solicitem certidões eletrônicas diretamente nos módulos da Central. Também se pode mencionar o sistema Penhora Online17, que interliga o Poder Judiciário ao Registro de Imóveis, permitindo a pesquisa de bens pelo CPF/CNPJ, a solicitação de certidões digitais e de penhora, arresto e sequestro de bens imóveis.

Vale também mencionar a averiguação oficiosa de paternidade, prevista na Lei nº 8.560/92 e no Provimento nº 16/2012 do CNJ. O procedimento, que tem natureza de jurisdição voluntária, inicia-se na serventia do Registro Civil das Pessoas Naturais, nos casos de registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida. A genitora ou o(a) filho(a) maior fará ao Oficial do RCPN a indicação do maior número possível de elementos para identificação do genitor e, após o preenchimento de termo, o procedimento será remetido ao juiz, que procederá com a oitiva da genitora e a notificação do suposto genitor em juízo. Confirmada a paternidade, será lavrado termo de reconhecimento e remetida certidão ao Oficial da serventia, para a devida averbação. Se o suposto genitor não atender a notificação judicial, ou negar a paternidade, o Juiz remeterá os autos ao Ministério Público ou à Defensoria Pública para que intente, havendo elementos suficientes, a ação de investigação de paternidade.

Considerando a possibilidade de cooperação entre as serventias, os órgãos judiciais e o Ministério Público, inclusive a realização de atos de comunicação processual e a tomada de depoimentos pelos delegatários, a Corregedoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, ao regulamentar a averiguação oficiosa de paternidade em seu Código de Normas (art. 746), estabeleceu regras que permitem a prática de alguns atos do procedimento no âmbito das serventias: a) há previsão de tombamento e autuação do procedimento administrativo no Serviço do RCPN competente com a juntada de documentos indispensáveis; b) a notificação ao suposto genitor será expedida pelo próprio Oficial do RCPN, de ofício, para que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída, no prazo de trinta dias; c) se o genitor comparecer e negar a paternidade, o Oficial tomará por termo as suas declarações, remetendo o procedimento ao juízo competente ou ao Ministério Público, conforme o caso; e) se o suposto genitor comparecer e confirmar a paternidade, será lavrado o termo de reconhecimento, sendo remetidos os autos ao juízo ou ao Ministério Público, conforme o caso, para análise e determinação ou não da averbação correspondente; f) caso o genitor não atenda a notificação ou se esta for negativa, os autos serão remetidos ao Juiz ou ao Ministério Público para as providências cabíveis.

Nota-se que, embora permitida a realização de atos de comunicação e a tomada de declarações por termo pelos Oficiais do RCPN, o que permite a tramitação e a finalização do procedimento de forma mais célere, restou mantida a participação do representante do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica e, bem assim, a atuação judicial.

Outra interessante medida de cooperação, consubstanciada no compartilhamento de provas e de atos processuais, consta do Provimento nº 65/2017 do CNJ, que regulamenta a usucapião extrajudicial. Nos termos do art. 2º, §3º, na hipótese de desistência do processo judicial para fins de utilização da via extrajudicial, homologada a desistência ou deferida a suspensão, poderão ser utilizadas as provas produzidas na via judicial no âmbito da serventia do Registro de Imóveis correspondente. Na realidade, entende-se que não apenas as provas, mas todos os atos processuais já praticados podem ser utilizados na via extrajudicial. Nesse sentido é o teor do enunciado nº 50 da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios do CJF18. Entende-se, ademais, que o aproveitamento de atos processuais deve ser interpretado como uma via de mão dupla, de modo que os atos praticados no cartório extrajudicial sejam também aproveitados em juízo, na hipótese de desistência ou impossibilidade de continuação do procedimento na via extrajudicial.

Por fim, é importante destacar a atuação dos próprios órgãos judiciais que, por intermédio de decisões ou da edição de atos normativos, têm garantido a facilitação da tramitação de procedimentos desjudicializados, através da prática de atos cooperativos praticados pelas serventias, pelo Ministério Público e pelo Judiciário.

Isso tem acontecido, por exemplo, nos casos de inventário por escritura pública, em razão da restrição contida no art. 610 do CPC, no sentido de que, se houver testamento ou herdeiros incapazes, não se admite a via extrajudicial. Há decisões judiciais que têm permitido o inventário por escritura, ainda que haja incapazes, mediante a concessão de alvará judicial, desde que resguardados os seus interesses19.

Além disso, há iniciativas como a do juízo da Vara de Registros Públicos, Órfãos e Sucessões e de Cartas Precatórias Cíveis da Comarca de Rio Branco, cujo titular é o juiz Edinaldo Muniz dos Santos, que editou a Portaria nº 5914-12, de 08.09.202120, a qual dispõe sobre a realização de inventário extrajudicial, em tabelionatos de notas, quando houver herdeiros interessados incapazes. A minuta final da escritura deve ser previamente submetida à aprovação da vara, antecedida de manifestação do Ministério Público, a fim de que sejam protegidos os interesses dos herdeiros incapazes.

O inventário envolvendo menores, nesses termos, é elaborado extrajudicialmente, mas depende, para a sua validade, de manifestação favorável do Ministério Público e de aprovação do juízo competente. A tramitação em juízo se torna evidentemente menos complexa, a partir de uma atuação conjunta do órgão judicial, do Ministério Público e da serventia extrajudicial, o que facilita sobremaneira a solução da questão relativamente a todos os envolvidos.

Como se vê, a cooperação interinstitucional entre os cartórios extrajudiciais e os órgãos judiciais já é uma realidade, a qual pode e deve ser mais bem aproveitada e dimensionada, especialmente a partir das diretrizes definidas pelo CNJ por intermédio da Resolução nº 350/2020, com a finalidade de reorganizar o sistema de justiça, conferir maior celeridade e efetividade à solução dos conflitos e, em consequência, reduzir o quantitativo de demandas judiciais.

__________

1 Sobre a cooperação judiciária nacional em matéria de arbitragem, vide resolução 421/2021 do CNJ.

2 Cooperação judiciária nacional: esboço de uma teoria para o Direito brasileiro (arts. 67-69, CPC). Salvador: Jus Podivm. 2020, p. 61-62)

3 HILL, Flávia Pereira. A desjudicialização e o necessário incremento da cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial. SENA, Lucelia Santos e Fernanda Gomes (Coordenadoras). Coletânea "4 anos de vigência do Código de Processo Civil de 2015

4 Não se tem notícia do efetivo cumprimento da Recomendação pelos tribunais.

5 São eles: a) o Ministério Público; b) a Ordem dos Advogados do Brasil; c) a Defensoria Pública; d) as Procuradorias Públicas; e) a Administração Pública; e f) os Tribunais arbitrais e árbitros(as).

6 ADI 2415, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 22/09/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-028 DIVULG 08-02-2012 PUBLIC 09-02-2012

7 ADI 5672, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 21/06/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-128  DIVULG 29-06-2021  PUBLIC 30-06-2021.

8 DIP, Ricardo. Prudência Notarial. São Paulo: Quinta Editorial, 2012, p. 28

9 Em texto escrito na década de 50, Francesco Carnelutti, embora reconhecendo que os notários, como os juízes, julgam, refere que os notários o fazem em momento anterior, para evitar o conflito. (CARNELUTII, Francesco. La figura giuridica del Notaro. Rivista del notariato, Anno V. Milano: Dott. A. Giuffré Editore, 1951, p. 12).

10 Ensina Leonardo Brandelli que "(...) notariado latino é o tipo de notariado adotado nos países de origem latina e que seguem o direito herdado dos romanos, dotados de determinadas características que tornam possíveis o seu agrupamento". (BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 98).

11 A autora do presente texto e Clarice Santos definem a desjudicialização como "um movimento ou fenômeno contemporâneo que tem por principais objetivos reorganizar o sistema de justiça e ampliar as formas de acesso à justiça, manifestando-se em duas principais vertentes: (a) o estímulo à utilização de meios de solução de questões e controvérsias diversos da solução adjudicada judicial, como a negociação, a conciliação e a mediação extrajudiciais, e a arbitragem; e o compartilhamento ou a transferência de (b) procedimentos ou (c) medidas, atos, fases ou institutos, cujo desenvolvimento era exclusivamente judicial, para órgãos ou agentes não judiciais" (A desjudicialização como diretriz do Processo Civil Brasileiro. In: MAIA, Benigna Araújo Teixeira, BORGES, Fernanda Gomes e Souza, HILL, Flávia Pereira, RIBEIRO, Flávia Pereira e PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. Acesso à Justiça: um novo olhar a partir do CPC de 2015. Londrina, PR: Thoth, 2021, p. 307.

12 GARGOLLO, Javier Arce. Arbitraje y función notarial. México: Librería Porrua, 2007, p. 42-43.

13 O enunciado foi proposto por Bruno Coêlho, que inclusive escreveu com Flávia Pereira Hill artigo nesta coluna sobre o tema: O papel das serventias extrajudiciais na justiça multiportas a partir do enunciado 707 do Fórum Permanente de Processualistas Civis. Disponível aqui. Acesso em 15 mai. 2022.

14 Enunciado nº 32 da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios, correspondente ao nº 125 se considerados os enunciados aprovados na I Jornada.

15 A harmonização de procedimentos e rotinas administrativas; gestão judiciária; a elaboração e adoção de estratégias para o tratamento adequado de processos coletivos e ou repetitivos, inclusive para a sua revenção;  e mutirões para análise do enquadramento de processos ou de recursos nas hipóteses em que há precedentes obrigatórios.

16 Disponível aqui.

17 Disponível aqui.

18 "Em caso de desistência ou suspensão do processo judicial de usucapião para utilização da via extrajudicial, poderão ser aproveitados os atos processuais já praticados na via judicial".

19 Nesse sentido, foi concedido, em julho de 2021, alvará no Processo nº 1002882-02.2021.8.26.0318, da 3ª Vara Cível da Comarca de Leme - SP, para que fosse lavrada escritura pública de inventário e partilha de A.L., P.K. e A.S.K., apesar da existência de herdeiros menores.

20 Publicada no Diário da Justiça Eletrônico do Acre do dia 9/9/2021.

O novo termo inicial da prescrição intercorrente e o velho desfecho da execução civil brasileira

Desde que o Conselho Nacional de Justiça passou a divulgar os relatórios do "Justiça em Números", a execução civil - e aqui emprega-se a palavra em sentido amplo, abrangendo tanto o cumprimento de sentença quanto o processo de execução autônomo - tem sido vista como o maior problema do Judiciário Brasileiro.

De fato, os dados da 17ª edição do Relatório Justiça em Números 2021 demonstram que, no primeiro grau de jurisdição, o Poder Judiciário contava com acervo de 75 milhões de processos pendentes de baixa no final de 2020, sendo que mais da metade desses processos (52,3%) era referente à referia à fase de execução1.

A lei 14.195, sancionada em 26 de agosto de 20212, que trata da facilitação para abertura de empresas, entre outros temas do ambiente de negócios, também tratou de temas de direito processual civil e implementou uma mudança no Código de Processo Civil que pode modificar o cenário das execuções.

Cuida-se da alteração promovida no art. 921 do Código. A nova lei antecipou o termo inicial do prazo para a consumação da prescrição intercorrente, o que significa que os processos de execução nos quais o credor não consegue encontrar o próprio devedor ou seus herdeiros, ou ainda, bens passíveis de expropriação, poderão se encerrar mais cedo.

Caso reconhecida a prescrição intercorrente, o litígio será finalizado sem um fim efetivo, ou seja, sem o cumprimento da obrigação que deu origem ao litígio. O processo será considerado menos um para fins estatísticos, mas não terá sido útil e não terá realizado a justiça. É sobre esse problema que o singelo artigo deseja se debruçar.

Sem maiores delongas, a prescrição intercorrente pode ser definida como a perda da pretensão de executar causada pela demora exagerada por parte do credor, autor da execução, para viabilizar, através da prática de atos processuais, o efetivo cumprimento da obrigação estabelecida no título executivo, que pode ser judicial (art.515 do CPC/2015) ou extrajudicial (art.784 do CPC/2015).

Como é sabido, se o título executivo for judicial haverá o cumprimento de sentença (art.513 do CPC). Por outro lado, se for extrajudicial, haverá um processo de execução autônomo (art.771 do CPC). Tanto em um procedimento como no outro, encontrar o devedor ou os bens capazes de satisfazer a obrigação pode se transformar em uma verdadeira via crucis para o credor. Ainda assim, se o processo ficar paralisado em razão da inércia do credor, autor da execução, o art. 921 do CPC prevê a possibilidade do reconhecimento da prescrição intercorrente3.

De acordo com as novas regras introduzidas pela lei 14.195, foi criada mais uma hipótese de suspensão do processo executivo. Antes da reforma legislativa, o inciso III, do art. 921, do CPC admitia a suspensão da execução quando o executado não possuísse bens penhoráveis. Após a reforma, o inciso III foi alterado para incluir a hipótese de suspensão da execução quando o próprio executado (e não apenas seus bens) não for localizado.

A suspensão do processo, no entanto, não pode ocorrer por prazo indeterminado. Nessa direção, o CPC dispõe que o juiz suspenderá a execução pelo prazo de 1 ano, durante o qual se suspenderá a prescrição (art.921, §1, do CPC). Findo esse prazo sem a manifestação do credor/exequente, deve ter início a contagem do prazo da prescrição intercorrente, conforme estabelecem o art. 206-A, Código Civil4 e a Súmula 150 do STF5.

Nessa direção, qual seria o termo inicial para a suspensão da execução pelo prazo de um ano, durante o qual também se suspenderá a prescrição? Segundo as mudanças introduzidas pela Lei nº 14.195/2021, o termo inicial foi antecipado. A partir da nova lei, ele corresponde ao dia em que o exequente teve ciência da primeira tentativa infrutífera de se encontrar o devedor ou seus bens (§4º, do art. 921 do CPC). Nessa hipótese, o processo e a prescrição poderão ficar suspensos, por uma única vez, pelo prazo máximo de 1 ano. Exaurido esse prazo, a prescrição intercorrente voltará a correr.

Após a suspensão do processo pelo lapso temporal de 1 ano, o juiz deverá determinar a intimação das partes para que se manifestem no prazo de 15 dias (§5º). Nessa oportunidade, o credor poderá justificar o motivo da paralisação do processo.

Após a manifestação das partes, não acolhida a justificativa, o juiz poderá reconhecer a prescrição intercorrente, proferindo sentença extintiva do processo, com resolução do mérito, fundamentada no inciso V, do art. 9246 do CPC.

Antes mesmo da reforma do art. 921 do CPC, a prescrição intercorrente já vinha sendo o desfecho mais comum da execução civil brasileira. De acordo com os dados do CNJ, apenas 13% dos processos de execução atingem a satisfação do crédito perseguido, enquanto a taxa de congestionamento é de 87% em 20207. Isso significa que dentre 100 processos de execução apenas 13 terminam de maneira satisfativa. Seguramente, com as modificações trazidas pela Lei nº Lei nº 14.195/2021, a prescrição intercorrente passará a eliminar mais rápido os processos parados a espera do devedor ou de seus bens.

Esse triste desfecho diz muito sobre a forma como os operadores do direito têm tratado o processo de execução no Brasil: empurra-se o processo "com a barriga" até a consumação da prescrição intercorrente. Acostumados a essa lamentável realidade na qual os débitos não são honrados e as decisões judiciais não são cumpridas, os operadores desistem prematuramente de executar e, dessa forma, não se valem das inúmeras ferramentas processuais disponíveis para perseguir o devedor e os bens penhoráveis.

Todos já ouviram falar da insolvência civil (arts. 743 a 748 do CPC/1973), da hipoteca judicial (art.495 do CPC/2015), da anotação premonitória (art. 828 do CPC/2015), do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts 133 a 137 do CPC/2015), da fraude à execução (art.792 do CPC/2015), mas, comumente, como não se debruçam sobre esses institutos nas faculdades de direito, raramente utilizam-se deles nos processos de execução.

Quanto ao uso das ferramentas tecnológicas, na prática, os operadores de direito limitam-se ao uso do SISBAJUD, Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário, do RENAJUD, Sistema de Restrição Judicial sobre Veículos Automotores e do SERASAJUD, sistema que confere acesso ao Poder Judiciário à base de dados do SERASA S.A. No entanto, deixam de se valer de inúmeras outras ferramentas, muitas vezes por simples desconhecimento, outras pelo indeferimento judicial, uma vez que - em verdade - o Poder Judiciário também apresenta resistência em proceder para com a investigação patrimonial em colaboração com o credor/exequente.

De acordo com Dierle Nunes e Tatiane Costa de Andrade, o uso efetivo da tecnologia pode auxiliar o credor na busca do devedor e de seus bens*. Atualmente, para além dos conhecidos SISBAJUD, RENAJUD e SERASAJUD, existe, pelo menos, outras 9 ferramentas de informação e outras 9 de busca patrimonial à disposição do credor, do Judiciário e dos órgãos públicos.  

Entre as ferramentas de informação, pode-se citar (i) o SIEL, Sistema de Informações Eleitorais; (ii) a REDESIM, Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios; (iii) a INFOSEC, a Rede Nacional de Integração de Informação de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização; (iv) a CRC, a Central Nacional de Informações do Registro Civil; (v) a CENSEC, a Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados; (vi) a CNIB, a Central Nacional de Indisponibilidade de bens; (vii) o SREI, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis; (viii) a CENPROT, a Central Nacional de Serviços Eletrônicos dos Tabeliães de Protesto de Títulos; (ix) o E-NOTARIADO, Sistema de Atos Notariais Eletrônicos. Já entre as ferramentas de busca patrimonial propriamente ditas há (i) o SACI, o Sistema Integrado de Informações da Aviação Civil; (ii) o NAVEJUD, Sistema de Integração entre o Poder Judiciário e o SISGEMB, Sistema de Gerência de Embarcações; (iii) o SNCR, o Sistema Nacional de Cadastro Rural; (iv) o SPED, o Sistema Público de Escrituração Digital; (v) o CCS, o Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional; (vi) o Dossiê integrado da Receita Federal do Brasil; (vii) o COAF, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras; (viii) o SIMBA, o Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias.

O desconhecimento e a falta de manejo dessas ferramentas processuais e tecnológicas, como já se destacou, é sintomática: revela, no mínimo, a apatia dos operadores do direito diante dos processos de execução. Definitivamente, não parecem dispostos a encarar a execução civil, preferindo aguardar - agora por menos tempo - a consumação da prescrição intercorrente.

Realizar a execução no ordenamento jurídico brasileiro é uma atividade complexa e requer dedicação da comunidade jurídica. Enquanto o tema não receber o seu devido cuidado, sempre se terá uma atividade executiva insatisfatória, com processos subaproveitados, sem resultados, fadados a prematura extinção pelo decurso do tempo.

__________

* NUNES, Dierle e ANDRADE, Tatiane Costa de. Recuperação de créditos. A virada tecnológica a serviço da execução por quantia certa. ISBN: 978-65.89904-05-2. Creative Commons, 2021. Disponível para download aqui.

1 Disponível aqui. Consultado em 28 set.2021.

2 Disponível aqui. Consultado em 01 ma.2022.

3 Art. 921 Suspende-se a execução:

III - quando não for localizado o executado ou bens penhoráveis.

(...)

§4º O termo inicial da prescrição no curso do processo será a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis, e será suspensa, por uma única vez, pelo prazo máximo previsto no §1º deste artigo.

§4º-A A efetiva citação, intimação do devedor ou constrição de bens penhoráveis interrompe o prazo de prescrição, que não corre pelo tempo necessário à citação e à intimação do devedor, bem como as formalidades da constrição patrimonial, se necessária, desde que o credor cumpra os prazos previstos na lei processual ou fixados pelo juiz.

§5º O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição no curso do processo e extingui-lo, sem ônus para as partes.

§6º A alegação de nulidade quanto ao procedimento previsto neste artigo somente será conhecida caso demonstrada a ocorrência de efetivo prejuízo, que será presumido apenas em caso de inexistência da intimação de que trata o §4º deste artigo.

§7º Aplica-se o disposto neste artigo ao cumprimento de sentença de que trata o art. 523 deste código.

4 Art.206-A. A prescrição intercorrente observará o mesmo prazo de prescrição da pretensão, observadas as causas de impedimento, de suspensão e de interrupção da prescrição previstas neste Código e observado o disposto no art.921 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 - Código de Processo Civil.

5 Súmula 150 do STF: prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação.

6 Art. 924. Extingue-se a execução quando:

(...)

V - ocorrer a prescrição intercorrente.

7 Disponível aqui. Consultado em 01 de maio de 2022, f.169.

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