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O acesso à justiça e a importante atuação das Defensorias Públicas nos IRDR

Nossa Constituição Federal prima por seu garantismo e pelo real intuito de proteção dos direitos individuais e, dentre eles, destacamos a previsão contida no art. 5º, LXXIV, da CF/88 de que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

Logicamente, considerando a enorme demanda processual frente ao perfil contencioso apresentado pelos jurisdicionados, as pessoas (ou agrupamentos sociais) em situação de vulnerabilidade podem não ter acesso ao Judiciário no intuito de pleitear determinado direito.

No entanto, pontuamos aqui que, nem sempre o acesso à justiça somente se personifica mediante a proposição de ação individual.

O Código de Processo Civil trouxe em seu bojo, o incidente de resolução de demandas repetitivas - IRDR, instituto processual que se inspirou no direito alemão diante do similar musterverfahren, sofrendo influências ainda do sistema de agregação de causas no direito português e, finalmente do modelo de decisões de litígio de grupo (group litigation order) e demanda-teste (test-claim) do direito inglês (MENEZES, 2018).

O cabimento do IRDR se dá quando se tem, de forma concomitante, uma efetiva repetição de processos tratando de semelhante controvérsia acerca de questão unicamente de direito e que, inclusive, possua o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, conforme determina o art. 976 do Código de Processo Civil de 2015.

Portanto, poderíamos considerar que o IRDR seria um incidente legítimo apto a discutir litígios de interesse coletivo com legitimidade superior à própria ação civil pública?

Pontua-se que o IRDR pode tratar de casos que estão em discussão e que ainda possam surgir, tendo a Ação Civil Pública, por exemplo, a previsão, pelo menos a princípio, da existência de um dano que, contudo, tornará prevento o juízo para eventuais novas ações.

No entanto, embora a Lei nº 7347/85 traga restrições à própria propositura da ação, situação semelhante não ocorre no âmbito do IRDR, pois além do alcance a que se pode dar das decisões proferidas, o Código de Processo Civil prevê diversas particularidades que trazem a discussão a ser realizada no incidente à valorada temática da teoria geral dos precedentes.

Diante dessa nuance, pode-se afirmar que o IRDR se torna importante mecanismo de acesso à justiça, mas não se constitui como técnica processual a se estabelecer como sucedâneo de ações coletivas.

E o CPC/2015 apresentou a possibilidade dos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, verdadeiro aparato processual também a tutelar os direitos dos hipossuficientes de forma a consolidar o entendimento repetitivo proferido com busca à garantia da segurança jurídica, da uniformidade de entendimentos e da igualdade.

Outrossim, trouxe a nova norma, em seu art. 977, a possibilidade da Defensoria Pública, no exercício de suas atribuições da promoção dos interesses individuais e coletivos dos necessitados (art. 185 do CPC/2015), a instauração do incidente diretamente ao presidente de tribunal.

Importante pontuar valiosa colocação da defensora pública Luciana Jordão, ao tratar da importância da atuação da Defensoria nesta seara, perante a qual destaca que esta é instituição pública voltada à implementação de política pública de acesso à justiça, à avaliação técnica a respeito da maximização dos resultados, que podem gerar benefícios ao maior número de cidadãos e, como tal, sugerimos que pode, portanto, o instrumento do IRDR assumir protagonismo nesta prática qualificada.

Em complemento, cabe destacar que o IRDR se caracteriza como incidente processual, considerando que pode ser instaurado por meio de um pedido, exigindo sempre um prévio processo judicial instaurado (MENDES, 2021).

Outrossim, as particularidades apresentadas no CPC/2015 relacionadas ao IRDR trazem inúmeros benefícios em sua tramitação, tais como: a previsão do caput do art. 980, que determina o prazo de prazo de 1 (um) ano para julgamento; e, a suspensão dos processos pendentes, conforme previsto no art. 982, I. E acrescenta-se que, a inadmissão do incidente de resolução de demandas repetitivas por ausência de qualquer de seus pressupostos de admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito, possa ser o incidente novamente suscitado (Art. 976, §3º).

A participação social, a realização de audiências públicas, os amici curiae serão ferramentas importantes para consolidar o acesso à justiça, podendo contar, agora, com a competência da Defensoria Pública para imiscuir-se em tais questões, através do IRDR, podendo a referida discussão ser levada, inclusive, para o âmbito dos Tribunais Superiores e, quiçá, ter a modulação de efeitos também como instrumento de concretização de direitos.

Em breve pesquisa no Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios é possível afirmar que a sistematização de informações dos IRDR não permite saber se a defensoria pública foi a postulante na busca pela promoção dos direitos humanos, ou então pela defesa dos direitos coletivos dos necessitados, conforme determina o art. 185 do CPC/2015.

Com isso, a ausência de informações detalhadas obsta o acompanhamento da defesa dos mais necessitados na criação de precedentes qualificados por meio de julgamento de demandas repetidas.

Seria o caso, portanto, quanto ao ponto, de sugerir ao CNJ (órgão regulador da atividade judiciária conforme esta autora já pontuou em obra anterior) que possa disponibilizar filtros cada vez mais detalhados a fim de facilitar o controle e a consequente melhoria na prestação jurisdicional no que tange aos direitos dos hipossuficientes frente às demandas contidas em IRDR perante todos os tribunais.

Por conseguinte, destaca-se que, funcionando a Defensoria Pública como postulante lhe é conferido melhor meio para desenvolver a tese e levar ao judiciário no tempo adequado às possibilidades de atuação deste órgão.

Guedes (2018) expõe neste sentido:

Tal participação é tão importante quanto a atuação nas demandas individuais, pois, a partir da entrada em vigor do novo CPC, há grande tendência de que todas as questões repetitivas passem a ser decididas por meio do julgamento de IRDR, sendo, então, proferidas decisões e escolhidas as teses jurídicas que vincularão todos os juízes subordinados hierarquicamente ao tribunal.

Em síntese, a consolidação da atuação da defensoria pública como participante da criação de precedentes qualificados deve ficar destacada vez que funciona como guardiã dos interesses da população hipossuficiente de fato.

Com efeito, a defensoria pode, então, identificar tema que possa ser objeto de discussão por meio do IRDR, promovendo a discussão dos direitos dos vulneráveis diante da previsão processual de apresentação de petição, a qual conterá pedido de instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas tal como preceitua o art. 977 do CPC/2015, inaugurando uma nova era na temática dos precedentes frente à proteção do direito dos hipossuficientes.

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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível aqui.

BRASIL. [CPC (2015)]. Código de Processo Civil, Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível aqui.

CARVALHO, Luciana Jordão da Motta Armiliato. A Defensoria Pública e o IRDR: reflexões sobre desafios e caminhos para a consolidação do instituto. In: Acesso à justiça em contexto de litigância repetitiva. DELCHIARO, Mariana Tonolli Chiavone; MAIA, Maurilio Casas. (org.). Belo Horizonte, São Paulo: Editora D'Plácido, 2022.

GUEDES, Cintia Regina. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e o papel da Defensoria Pública como porta-voz dos litigantes individuais na formação da tese jurídica vinculante. REVISTA DE DIREITO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Nº 28 - 2018. Disponível aqui.

MENDES, Bruno Cavalcanti Angelim. Julgamento de casos repetitivos: critérios de seleção dos casos paradigmáticos e formação de precedentes. São Paulo: Editora Juspodivm, 2021.

MENEZES, André Beckmann de Castro. O IRDR Como Política Pública Judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018.

PAULINO, Ana Flávia Borges. CNJ: o regulador da atividade judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021.

Os honorários advocatícios de elevado valor no CPC de 2015: Por uma jurisprudência íntegra, estável e coerente

No dia 13 de dezembro de 2022, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou à Corte Especial os Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM, de Relatoria do Ministro Moura Ribeiro, pretendendo levar à composição máxima do Tribunal o debate acerca do cabimento ou não da fixação de honorários equitativos em causas de valor elevado a partir dos dispositivos do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) que regulamentam o tema.

É importante recordar que a matéria já foi objeto de análise pela Corte Especial do STJ em março de 2022 (acórdão publicado em maio), no julgamento do Tema nº 1.0761, em que foram assentadas as seguintes teses:

1) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação ou da causa, ou o proveito econômico da demanda, forem elevados. É obrigatória, nesses casos, a observância dos percentuais previstos nos parágrafos 2º ou 3º do artigo 85 do Código de Processo Civil (CPC) - a depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa.

2) Apenas se admite o arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo.

Apesar do efeito vinculante das teses fixadas no Tema 1.076, a temática da fixação dos honorários por equidade continua sendo debatida nos tribunais brasileiros e, em consequência, chegando ao STJ. Daí porque, no julgamento dos Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM, a Terceira Turma, por maioria, decidiu afetar novamente a questão à Corte Especial, que teria por finalidade estabelecer uma hipótese de distinguishing em que o enunciado não teria aplicabilidade. No julgamento da questão preliminar, a Ministra Nancy Andrighi destacou que: "Essa dissidência não está acontecendo só na 3ª turma, está acontecendo inclusive nas turmas de Direito Público. A Corte precisa parar para rever se está certo ou errado, se confirma ou não confirma essa decisão". O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva também ressaltou que "É um tema delicado. A desproporção é flagrante"2.

No dia seguinte, 14 de dezembro, conforme noticiado pela imprensa3, após o Ministro Raul Araújo propor a desafetação do REsp 1.822.171, que seria julgado pela 2ª Seção com a mesma discussão, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva esclareceu que o propósito da afetação dos Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM à Corte Especial não é rediscutir a tese e nem promover a superação da tese estabelecida no Tema 1.076, mas definir e uniformizar a interpretação sobre possíveis distinções nas quais a tese não deve ter incidência, garantindo a estabilidade e a coerência das decisões sobre a matéria.

A questão envolve pelo menos dois temas relevantes para o direito processual: (i) preliminarmente, em prol da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, a manutenção da jurisprudência íntegra, estável e coerente; (ii) o acerto da Corte Especial ao decidir sobre a fixação equitativa de honorários advocatícios em causas de elevado valor a partir das disposições do CPC/2015 e a desnecessidade de revisitação da matéria.

Com a edição do CPC/2015, pode-se dizer que há um sistema de pronunciamentos qualificados, ou de jurisprudência e precedentes definidos legalmente, com caráter vinculativo no sentido vertical e horizontal4, isto é, tanto no que diz respeito aos precedentes formados pelos órgãos hierarquicamente superiores como aos próprios precedentes.

A vinculação prevista no artigo 927 do CPC/2015 é um elemento fundamental do sistema estabelecido por lei e está em consonância com o primado da lei fixado na Constituição5. 

A ratio é a observância dos precedentes pelos juízes e pela sociedade, "porque não se trata de opção subjetiva do magistrado, mas de aplicação e de interpretação das leis pelos tribunais, em cumprimento de uma função prevista na Constituição"6, que deve ser feita por meio da adequada instrumentalização da técnica de julgamento pelos tribunais7, para que se possa atingir uma jurisprudência uniforme, íntegra, estável e coerente consagrada no artigo 926 do diploma processual.

Um sistema de precedentes com eficácia vinculante garante julgamentos com margem de previsibilidade e contribui para o fortalecimento institucional e democrático do próprio Poder Judiciário e, por via de consequência, do próprio Estado e da sociedade.

A observância dos precedentes assegura também a isonomia aos jurisdicionados, evitando-se uma dispersão de entendimentos acerca de uma mesma questão de direito. Encontra, portanto, amparo e justificativa na necessidade de proteção da confiança, elemento essencial da segurança jurídica.

É certo que o sistema jurídico brasileiro adotou a técnica de vinculação a precedentes judiciais, própria dos países de common law8, a partir da promulgação do CPC/2015, com a disciplina dos artigos 926 a 928. Inobstante, ainda se verifica, na prática forense, a dificuldade de outorga efetiva de integridade do Direito por meio da uniformização da jurisprudência, em função da não observância e aplicação adequada pelo Poder Judiciário das técnicas e mecanismos disponibilizados pelo sistema, além da ainda insatisfatória função prospectiva realizada pelos Tribunais Superiores.

Para além da previsão do art. 926 do CPC/2015 relativa ao dever de uniformização da jurisprudência pelos tribunais e da manutenção da estabilidade, integridade e coerência, é essencial que o Poder Judiciário (e todos os agentes envolvidos), além de produzir precedentes de eficácia vinculante, maneje adequadamente as técnicas de operacionalização desses precedentes, como a distinção e a superação de entendimentos.

Dessa forma, em prol da manutenção e otimização da segurança jurídica, é preciso que se observem critérios quando há a efetiva necessidade de desenvolvimento e alteração do direito, por meio da mudança de orientação dos tribunais. Não se pode confundir a necessidade de adaptação do direito às mudanças sociais ou eventual correção de erro com alteração de entendimento e opinião dos julgadores em função da mudança de composição de magistrados do tribunal9 ou de pensamento por parte dos julgadores que os compõem.

As funções contemporâneas do Poder Judiciário são fundamentais no sentido de orientar a sociedade diante de novos fatos, da ausência de regras específicas ou da controvérsia estabelecida em relação à interpretação das normas10, mas sempre em consonância com o contexto do Estado Constitucional.

Os órgãos judiciários servem para propiciar a solução dos conflitos e não para fomentá-los, tendo-se a ideia de respeito ao precedente firmado, salvo hipótese de distinção do caso em relação ao precedente e de sua superação, que deve ser feita com a devida cautela, mais amplo respeito ao contraditório e possível modulação, conforme artigo 927, §2º a §4º.

Desta forma, merece destaque que, após a definição da tese com efeito vinculante, é possível que haja divergência considerável entre os órgãos jurisdicionais a respeito das situações de distinção hábeis a afastar a sua incidência, revelando-se possível a atuação do tribunal responsável pela fixação da tese para uniformizar a interpretação acerca das hipóteses de distinguishing.

A técnica de distinção é uma forma de verificar se existem diferenças relevantes entre dois casos ao ponto de se afastar a aplicação de precedente invocado, a qual pode ser realizada por qualquer juiz ou tribunal11. É o que diz, inclusive, o Enunciado n.º 174, do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): a realização da distinção compete a qualquer órgão jurisdicionado, independentemente da origem do precedente invocado.

A Recomendação nº 134/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre o tratamento dos precedentes no Direito Brasileiro, prevê, em seu art. 14, que "poderá o juiz ou tribunal, excepcionalmente, identificada distinção material relevante e indiscutível, afastar precedente de natureza obrigatória ou somente persuasiva, mediante técnica conhecida como distinção ou distinguishing".

Há uma série de recomendações relativas à distinção, quais sejam: a) explicitação pelo órgão julgador, de maneira clara e precisa, da situação material relevante e diversa capaz de afastar a tese jurídica (ratio decidendi) do precedente tido por inaplicável; b) a técnica não deve ser utilizada com a finalidade de afastar a aplicação da legislação vigente nem para estabelecer tese jurídica heterodoxa e em descompasso com a jurisprudência consolidada sobre a matéria; c) não confundir a distinção e nem utilizar a técnica como mecanismo de recusa à aplicação da tese consolidada; d) considerar a impropriedade da utilização da técnica como via indireta de superação dos precedentes.

Há também orientações importantes na Recomendação 134 do CNJ relativas ao procedimento que deve ser levado a efeito pelos tribunais quando houver distinguishing em relação a seus precedentes (arts. 22 e 23): a) a adoção do procedimento do recurso especial ou extraordinário representativo da controvérsia em situações que indiquem distinção, com a admissão de 2 (dois) ou mais processos e o sobrestamento dos demais feitos com mesma questão jurídica possivelmente distinta; e b) prioridade da análise de casos repetitivos em que se discuta a distinção em relação a precedentes relevantes e a avaliação da possibilidade de instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas.

Feitas essas considerações, quando se analisa o julgamento do Tema nº 1.076 pelo STJ, decidido no dia 16 de março de 2022 e com acórdão publicado no dia 31 de maio, verifica-se que houve intensos debates na Corte Especial, que acabou decidindo, por maioria, pela impossibilidade da fixação dos honorários por apreciação equitativa quando os valores da condenação ou da causa, ou o proveito econômico da demanda forem elevados, impondo-se a aplicação dos parâmetros previstos nos §§2º e 3º do art. 85 do CPC/2015. Divergiram as Ministras Nancy Andrighi, Maria Isabel Gallotti, Laurita Vaz, Maria Thereza de Assis Moura e o Ministro Herman Benjamin.

O tema foi analisado com profundidade e no acórdão restaram consignados diversos fundamentos, dentre os quais destacam-se os seguintes:

(i) "não se pode alegar que o art. 8º do CPC permite que o juiz afaste o art. 85, §§ 2º e 3º, com base na razoabilidade e proporcionalidade, quando os honorários resultantes da aplicação dos referidos dispositivos forem elevados";

(ii) "O julgador não tem a alternativa de escolher entre aplicar o § 8º ou o § 3º do artigo 85, mesmo porque só pode decidir por equidade nos casos previstos em lei, conforme determina o art. 140, parágrafo único, do CPC";

(iii) "A suposta baixa complexidade do caso sob julgamento não pode ser considerada como elemento para afastar os percentuais previstos na lei";

(iv) "O art. 20 da "Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (...) prescreve que, "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Como visto, a consequência prática do descarte do texto legal do art. 85, §§ 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 8º, do CPC, sob a justificativa de dar guarida a valores abstratos como a razoabilidade e a proporcionalidade, será um poderoso estímulo comportamental e econômico à propositura de demandas frívolas e de caráter predatório";

(v) "a postura de afastar, a pretexto de interpretar, sem a devida declaração de inconstitucionalidade, a aplicação do § 8º do artigo 85 do CPC/2015, pode ensejar questionamentos acerca de eventual inobservância do art. 97 da CF/1988 e, ainda, de afronta ao verbete vinculante n. 10 da Súmula do STF".

Como se pode constatar, a questão foi decidida este ano, com eficácia vinculante, com clareza e respeito ao contraditório, considerando não só o teor do artigo 85 do CPC/2015, mas tomando por base uma interpretação do ordenamento jurídico em consonância com a visão de um Estado Democrático de Direito, no qual devem prevalecer o respeito à vontade da maioria, a valorização da Advocacia e de sua forma de remuneração através dos honorários, sem esbarrar no respeito aos direitos fundamentais de todos. A adequada fixação de honorários, como analisada pela Corte Especial do STJ em março de 2022, permite a promoção da máxima de que o processo deve ser instrumento para a tutela e efetivação de direitos12, evitando-se a litigância frívola, com demandas aventureiras que sobrecarregam de forma desnecessária o Poder Judiciário.

É certo que o tema ainda está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), no RE 1.412.073, de forma que a abordagem constitucional da matéria poderá ensejar mudanças na aplicação dos §§2º, 3º e 8º do art. 85 do CPC/2015.

Entrementes, em relação ao entendimento fixado pelo STJ, tem-se que os fundamentos contidos no Tema 1.076 são adequados e suficientes para o deslinde da questão, devendo-se pontuar que, quanto mais especificada uma tese jurídica, maior a precisão de sua aplicação ao caso concreto.

Destarte, o que se espera é que, em um curto espaço de tempo, não haja a superação do julgamento da Corte Especial realizado em março de 2022, sob pena de se violar a proteção da confiança e de se estabelecer a insegurança jurídica. Dito de outro modo, ainda não se verifica um quadro de alteração substancial de realidade social a ensejar a superação do entendimento já sedimentado.

No que concerne ao argumento de que a finalidade seria a de uniformizar a interpretação acerca das hipóteses de distinguishing nas quais a tese não deve ter incidência, o fato é que, em relação ao Tema 1.076, o que tem se verificado nos tribunais e no próprio STJ é uma discordância em relação à ratio do precedente firmado, de modo que a técnica da distinção tem sido empregada para fins de recusa e afastamento da aplicação da tese estabelecida, em contrariedade à teoria dos precedentes e à Recomendação 134 do CNJ.

Por isso, revela-se preocupante o retorno da matéria à Corte Especial: pretende-se efetivamente uniformizar as situações de distinção relativas ao Tema 1.076 ou promover, por via transversa, a superação do precedente? Nesse último caso, haveria desrespeito flagrante à estabilidade e à proteção de confiança necessárias para a efetividade de um sistema de precedentes, que deve primar pela estabilidade e pela unidade do Direito.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), enquanto órgão máximo competente para análise da legislação federal, deve assegurar a máxima eficácia do artigo 926 do CPC/2015.

Portanto, no que pertine ao Tema 1.076 e à afetação dos Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM à Corte Especial do STJ, espera-se que o argumento da uniformização da interpretação a respeito das situações de distinção não esteja sendo utilizado como pretexto para a superação das teses fixadas e que sejam seguidas à risca as orientações da Recomendação nº 134/2022 do CNJ, inclusive com a utilização do rito

dos repetitivos para fins de propiciar a ampliação da discussão acerca das hipóteses de distinção identificadas, a fim de uniformizá-las e de preservar os precedentes firmados, propiciando segurança jurídica e previsibilidade ao jurisdicionado.

Nesse ponto, cabe uma reflexão final sobre o sistema jurídico brasileiro de precedentes. Não se pode ter a ilusão de que apenas a previsão legal de institutos processuais e técnicas de julgamento visando à celeridade e isonomia de tratamento a casos análogos tornarão o Judiciário mais célere, imprimindo maior segurança jurídica. Dessa forma, é nítida a necessidade de mudança cultural e operacional da comunidade jurídica para que as reformas legislativas possam colher positivos resultados quanto à obtenção de estabilidade e unidade do Direito13.

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1 O Tema nº 1.076 do STJ pode ser consultado em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1076&cod_tema_final=1076. Acesso em 14 dez. 2022.

2 Os destaques em questão estão disponíveis em notícia trazida pelo Migalhas: MIGALHAS. Corte Especial deve analisar casos de honorários fixados pelo CPC. Disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/378551/stj-3-turma-afeta-a-corte-especial-casos-de-honorarios-milionarios. Acesso em 14 dez. 2022.

3 CONJUR. Afetação de casos sobre honorários é para uniformizar distinções, diz ministro. Acesso em 15 dez. 2022.

4 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Sistematização, análise e interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 97.

5 FUX, Luiz; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; FUX, Rodrigo. Sistema brasileiro de precedentes: principais características e desafios. Revista Eletrônica de Direito Processual, vol. 23, n. 3, set.-dez. 2022, p. 227.

6 FUX, Luiz; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; FUX, Rodrigo. Op. Cit., p. 227-228.

7 WELSCH, Gisele. A autoridade dos precedentes judiciais e a unidade do direito: uma análise comparada Brasil-Alemanha (II). Revista de Processo, vol. 13, mar. 2021, versão eletrônica.

8 No common law, os precedentes judiciais são dotados de força vinculante e figuram como a mais importante fonte do direito: pelo princípio da stare decisis, a decisão anterior cria o direito. Nessa órbita, os juízes do common law têm o dever funcional de seguir os precedentes de casos análogos, não bastando que os utilize como relevantes subsídios persuasivos. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 13).

9 WELSCH, Gisele. Op. Cit.

10 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Op. Cit., p. 118.

11 PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 212.

12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2020, p. 5260.

13 WELSCH, Gisele Mazzoni. Precedentes Judiciais e Unidade do Direito. Análise comparada Brasil-Alemanha. Londrina, PR: Thoth, 2021. p. 66.

O caso da execução de alimentos e a virada tecnológica: novos paradigmas sobre processo, procedimento e processamento

Mudanças à vista no mar de processos das varas de família. É que o STJ começou a "desnormalizar" a máquina de gerar processos de execução por uma mesma obrigação: a de pagar alimentos. A discussão é antiga, mas alguma coisa mudou depois da pandemia e o REsp 1.930.593/ MG sinaliza essa nova direção.

O assunto é da maior relevância. Os processos em varas de família ocupam o 3º e o 4º lugar na Justiça Estadual, conforme o Justiça em Números/ 20221, e as cobranças alimentícias contribuem bastante. Mesmo que a lei determine o cumprimento nos próprios autos, surgem "filhotes processuais" em execuções autônomas, diante do alto potencial de litigiosidade da obrigação mensal.

Vamos lembrar que a dívida alimentícia a justificar a prisão, é apenas aquela devida nos 3 meses anteriores ao ajuizamento da ação e todas que vencerem em seguida. As prestações mais antigas, diante da inércia do exequente, perdem o elemento sobrevivência e deixam de justificar a prisão, conforme a Súmula 309 do STJ, positivada no CPC/2015 pelo §7º do art. 528.

A possibilidade de prisão foi, e ainda é, o elemento utilizado para distinguir uma suposta existência de diferentes ritos, mesmo que a lei alerte que o cumprimento da pena de prisão não exime o executado do pagamento. É uma diferenciação feita, portanto, na largada e não na chegada do procedimento, pois poderá haver penhora para ambas as dívidas. A diferença é que se houver pedido de prisão, este adiará o pedido de penhora2, em uma lógica de sequência.

Em contexto histórico, apesar das reformas sobre execução no CPC/73, a de alimentos sofreu certo abandono legislativo. Isso forjou gerações de advogados que diante da urgência de seus clientes em receberem os créditos, não deixavam de perguntar "como o juiz daqui faz?". Sinceramente, a melhor "técnica processual", sempre foi - e ainda é - conversar com o juiz ou o chefe de serventia, para que se entenda o "CPC da Comarca", antes de formular qualquer pedido.

No CPC/73, em geral, predominou a aplicação do art. 732 para cumprimento de sentença (adequado ao art. 475-J) e o art. 733 como processo autônomo (ou vice-versa). E assim a comunidade jurídica acostumou-se à proliferação de processos para uma mesma obrigação com um monte de discussão sobre processo e/ou procedimento, fundamentado numa suposta celeridade do rito destinado à dívida de "caráter alimentar", com prazo de resposta menor, de 3 (três) dias para a justificativa, diferente do prazo maior, de 15 (quinze) dias, para a impugnação da dívida pretérita.

O CPC/2015, no capítulo sobre cumprimento de sentença de alimentos podia ter ajudado a clarear as coisas, mas o 8º do art. 528 manteve a limitação da utilização do rito do cumprimento de sentença no caso de pedido de prisão. Supostamente uma limitação bem-intencionada, destinada a proteger o menor da opção menos célere, ao mesmo tempo que não diminui o prazo de defesa no caso da penhora. Ocorre que, na prática, em especial para a população de mães solos e pobres que movimentam a Justiça, importa o acompanhamento de tudo em dobro, em 2 (dois) processos, o que é difícil de explicar pra quem quer simplificar uma vida já bem complexa.

Também na prática, após a rapidez na apresentação da justificativa, é necessária nova oitiva do credor seja sobre um pagamento integral, uma proposta de acordo ou sobre uma total inércia a justificar a prisão. No correr comparativo do tempo dos dois processos, um acaba alcançando o outro, e na época em que o juiz vai decidir no rito da penhora, em geral, já é a hora de decidir no de prisão também, sendo incompreensível a dicotomia de processos.

O concatenar desses tempos processuais, porém, pode ser encaixado com a previsão de flexibilização de procedimentos do § 2º do art. 327 e do parágrafo único do art. 1.049, viabilizando técnicas especiais no procedimento comum3, trazido pelo CPC/2015.

E o art. 531, §2º, anterior à pandemia e digitalização, reforça muito essa ideia: "o cumprimento definitivo da obrigação de prestar alimentos será processado nos mesmos autos em que tenha sido proferida a sentença." A palavra "processado" é importante, e talvez seja a fechadura, pra a qual faltava uma chave, que foi encontrada com a virada tecnológica da digitalização do processo4.

Enquanto predominava o processo físico, as argumentações metajurídicas sobre a junção dos processamentos eram praticamente invencíveis: reunir as duas execuções "dá muita confusão", diria o serventuário processante, o que na decisão do juiz virava "tumulto processual", e assim esse conceito jurídico indeterminado fundamentou a necessidade de processos apartados.

Maria Berenice Dias, certeira como sempre, já alertava sobre o problema do processamento para defender a dicotomia dos processos: "A diversidade de rito entre as duas formas de cobrança certamente retardaria o adimplemento da obrigação se processadas em conjunto".5

Nessa análise retrospectiva, fica claro que a discussão envolvendo argumentos teóricos bem sofisticados, ao fim e ao cabo, acabava por sucumbir ao argumento prático da dificuldade do processamento simultâneo de técnicas em um mesmo processo. A indisponibilidade do processo (físico) era um argumento forte e simples: tirar cópias para um Habeas Corpus, quando o processo estava no processamento para a penhora on line, tumultuava mesmo. Não raro, horas depois de apensados "por linha" os processos, literalmente cortava-se o barbante que os unia, para permitir o processamento apartado.

Era assim. Mas não é mais. A possibilidade de se processar com rapidez um único processo em fase de execução que envolva mais de uma técnica executiva simultânea, pode finalmente emplacar.

Não estamos falando nem de processo tampouco de procedimento, que com a virada tecnológica e o processo eletrônico, deixam se ser limitados pelo antigo processamento estanque. Processamento são os atos de documentação do processo, de organização das informações, dos dados. Quando o juiz decide que vai prender, é o serventuário processante que irá - pelo menos enquanto não se aprimoram ferramentas de automação - preparar o mandado, remeter e-mail e outros atos que, necessariamente, devem ser documentados dentro do processo.

Enquanto o processo físico possuía uma lógica de sequência de atos estanques, em necessária sequência, o processo eletrônico possui a lógica do concomitante, com os atos acontecendo simultaneamente. Enquanto o processo físico é linear, indisponível para duas pessoas ao mesmo tempo, o processo eletrônico bifurca para dois processantes independentes.

O processo eletrônico ao invés de permitir atos em cascata, permite atos em enxurrada, e isso muda muita coisa nos comportamentos repetitivos, acostumados com esses atos em sequência.

No espírito deste tempo que o Núcleo de Assistência Jurídica da Universidade Federal de Ouro Preto (NAJOP), antes da pandemia, recorreu ao STJ para permitir a concomitância de duas técnicas executivas num mesmo procedimento. No RESP 1.930.593/ MG, a questão é até mais sofisticada: foi pedida a execução concomitante da dívida alimentar recente e pretérita, com o pedido de prisão para a primeira e o pedido de desconto em folha (que não é penhora) para a segunda, no mesmo processo e com o mesmo procedimento (aí a novidade!), nos exatos termos do art. 528, §§ 1º, 3º e 7º, e 529, §3º do CPC.

Foi preciso desmistificar que o art. 528 restringiria, no caput, o procedimento ali previsto somente às 3 prestações anteriores ao ajuizamento da execução e seguintes. Para além do senso comum, defendeu-se que o rito se aplique às prestações mais antigas, com caráter não alimentar, usando a técnica de protesto do título e de desconto em folha.

O TJ/MG cravou o velho: "mostra-se inapropriada a cumulação, nos mesmos autos, de execuções utilizando simultaneamente as duas técnicas". Mas o STJ apontou o novo: "a possibilidade de cobrança de alimentos, com a cumulação das técnicas executivas da prisão civil quanto da expropriação, no mesmo procedimento executivo."

O Min. Luís Felipe Salomão primeiro assentou o que envolve cumular procedimentos em um processo; depois avançou para cumular os próprios procedimentos, com utilização de técnicas executivas, na visão mais avançada de processo civil6. Na ementa, de novo, a palavra "processamento":

"Na hipótese, o credor de alimentos estabeleceu expressamente a sua "escolha" acerca da cumulação de meios executivos, tendo delimitado de forma adequada os seus requerimentos. Por conseguinte, em princípio, é possível o processamento em conjunto dos requerimentos de prisão e de expropriação, devendo os respectivos mandados citatórios/intimatórios se adequar a cada pleito executório".

O acórdão discorre sobre a história, a doutrina moderna e diversos julgados de Tribunais do Brasil, em especial o IRDR do TJ/ AM7. Leitura obrigatória8! Apesar dos argumentos, nos parece que o mais forte (e que não consta do acórdão) é: não faz nenhum sentido, no processo digital, manter o mesmo comportamento do processo de papel. A virada tecnológica serve à superação de paradigmas.

Essa evolução decorre do processo eletrônico e também da percepção de que as execuções de alimentos são processos simples nos quais, em geral, apura-se o que é devido e o que é pago numa planilha para determinar uma ordem (prisão, desconto em folha, penhora, etc.). Agora, aliás, temos a "teimosinha", uma função do SisbaJud que busca autonomamente valores em contas bancárias9, o que é possível diante do avanço das tecnologias aplicadas ao processo.

Questões podem surgir sobre prestação de alimentos in natura e da divisão igualitária de tempo parental, com a fixação de divisão de custos ao invés de alimentos. Mas isso já acontecia antes, e quando se reúnem as execuções, fica até mais fácil compreender os fatos. Também podem surgir questões sobre a possibilidade de prisão civil, mas nos casos extremos a discussão se desloca para a arena do Habeas Corpus.

Em um país onde até 70% por cento dos brasileiros recebem até 2 salários-mínimos10, há dois aspectos importantes: a urgência em receber alimentos e execuções não complexas. No passado, estes processos poderiam até ser qualificados como difíceis, mas hoje em dia, são fáceis. Fazem parte do "inferno conhecido" dos processos que abarrotam as prateleiras (virtuais) do sistema: se for possível um link, ao invés de dois, talvez a confusão diminua.

Alguns poderão dizer que juntar processamentos dificultará o que era fácil. Contudo, parece boa a aposta de que a agregação de processos/procedimento/processamento pode melhorar o que, no mérito, já deixou de ser difícil, e agora precisa ser feito com mais agilidade na forma.

É preciso compreender o fenômeno de simplificação e agregação diante das análises de comportamentos repetitivos e padrões. Muitas repetições permitem fusões e assimilações a serem aprendidas naturalmente. Inclusive, essas são diretrizes - para o bem e para o mal - tanto do aprendizado humano, quanto do "machine learning": aprendizado por repetição e observação de padrões11.

Assim, o que era feito em dois ou três processos, poderá ser feito em um. Imagine o ganho em escala disso nas numerosas varas de família. É um movimento mais simples, por exemplo, que as ainda inovadoras técnicas de coletivização12 em processos complexos, mas fundadas no mesmo espírito de gestão otimizada de recursos judiciais disponíveis. Começar pelo mais simples pode abrir frente para o que parece mais difícil.

"Reduzir litigiosidade" é um discurso corrente no Brasil. No caso, a quantidade de processos vai diminuir e, em princípio, a qualidade permanecerá a mesma, somente com a reunião de duas decisões antes apartadas em uma só. Não se pode descartar, porém, que a redução da quantidade retroalimente a diminuição qualitativa da litigiosidade, com entendimento fático em processo único.

Aliás, perceber que a própria defesa pode ser cumulada em uma peça única dividida por capítulos, foi sugerido pelo Min. Salomão: "A defesa do requerido, por sua vez, poderá ser ofertada em tópicos ou separadamente, com a justificação em relação às prestações atuais e com a impugnação ou os embargos a serem opostos às prestações pretéritas."

A conferir qual nossa maturidade diante de mudanças. Um cenário trágico seria imaginar um tema de IRDR: "a decisão deve ser dada em dois parágrafos na mesma folha, ou em duas folhas com um parágrafo cada?"

Toda alteração de rotina é difícil, e se desvencilhar de regras comportamentais familiares pode aprisionar as vítimas das pilhas processuais e das metas de (im)produtividade. Tomara que eventuais resistências, naturais quando se avizinham mudanças, sejam breves e que rapidamente ocorra a aceitação e a ação em prol de um processo que naturalmente evolui para ser mais efetivo.

__________

1 Disponível aqui.

2 Com a pandemia, essa lógica de sequência (primeiro a prisão, e residualmente a penhora) em um dos ritos foi balançada com a proibição da prisão pela lei 14.010/20 e as Resoluções 62 e 78 do CNJ. Vide STJ - REsp 1.914.052-DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 22/06/2021.

3 TARTUCE, Fernanda. Cumulação de requerimentos de prisão e penhora no cumprimento da sentença que fixa alimentos. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 10, n. 1, p. 257-268, abr. 2022.

4 NUNES, Dierle. Virada tecnológica no direito processual (da automação à transformação): seria possível adaptar o procedimento pela tecnologia. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART, Erik Navarro. (org.) Inteligência artificial a direito processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

5 DIAS, Maria Berenice. A execução dos alimentos frente às reformas do CPC. Disponível aqui.

6 DIDIER JR., Fredie; CABRAL, Antonio do Passo; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais: dos procedimentos às técnicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.

7 Tese firmada no IRDR 0004232-43.2018.8.04.0000: "é possível a cumulação, nos mesmos autos, dos ritos da prisão e da expropriação para o cumprimento de sentença que reconhece a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos, nos termos do art. 531, §2º, do Código de Processo Civil".

8 Vale a leitura também das ponderações da Min. Maria Isabel Galloti, que refutou qualquer possibilidade de penhora dentro do rito do art. 528, e foi mais conservadora sob uma suposta impossibilidade de reação do executado. A preocupação ocorreu referenciando a penhora de bens imóveis. O curioso é que essa é uma fase até mais gradativa da expropriação do que o desconto em folha, e também menos imediata do que a prisão, nos quais não há menção à impossibilidade de defesa.

9 Disponível aqui.

10 Dados do Pnad do IBGE. Informativo disponível aqui.

11 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. P. 706.

12 ZANETTI, Giulia; PASCHOAL, Thaís Amoroso. Por um tratamento eficiente da prova: notas sobre o multidistrict litigation enquanto técnica coletiva de gestão de processos. Revista eletrônica de direito processual, v. 22, p. 409-428, 2021.

Possibilidade de aplicação, em caráter principal, das medidas executivas atípicas à luz da lei 8.078/90

O presente artigo tem como escopo analisar a possibilidade jurídica de ser realizada a aplicação das medidas executivas atípicas, sub-rogatórias e coercitivas, em caráter principal, nos processos sob a égide da Lei 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor.

O Código de Processo Civil de 2015 inovou ao prever a possibilidade de haver meios executivos atípicos, isto é, não previstos em lei. Através da cláusula geral de atipicidade o magistrado pode-se valer de medidas sub-rogatórias e coercitivas como forma de favorecer o cumprimento do princípio da efetividade da execução. Nesses termos, dispõe a legislação:

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.

§ 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.

Embora o limite da atipicidade trate-se de matéria controversa, já que não existe consenso na doutrina, tampouco na jurisprudência, é pacífico o entendimento acerca da subsidiariedade da medida, ou seja, as medidas atípicas são sempre secundárias e sua utilização só é permitida se ficar demonstrado o exaurimento dos meios típicos executivos.

Nesse raciocínio manifestou-se o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Resp 1.782.418/RJ:

De se observar, igualmente, a necessidade de esgotamento prévio dos meios típicos de satisfação do crédito exequendo, tendentes ao desapossamento do devedor, sob pena de se burlar a sistemática processual longamente disciplinada na lei adjetiva" (DJe 26/04/19).1

O FPPC também já se posicionou através do enunciado de número 12:

A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II (grifo nosso).

O raciocínio dominante é muito simples: não existe motivo para o magistrado utilizar mecanismos não previstos em lei, correndo o risco de violar a segurança jurídica do jurisdicionado, se a legislação prevê um rol exaustivo de formas para se fazer cumprir a execução.

O art. 4º do CPC traz como norma fundamental do processo civil brasileiro o direito à atividade satisfativa, ou seja, o direito à execução ao estabelecer que: "as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa".

Marcelo Lima Guerra defende que a tutela executiva exige um sistema jurisdicional como "deveres":

a)a interpretação das normas que regulamentam a tutela executiva tem que ser feita no sentido de extrair a maior efetividade possível; b) o juiz tem o poder-dever de deixar de aplicar uma norma que imponha uma restrição a um meio executivo, sempre que essa restrição não se justificar como forma de proteção a outro direito fundamental; c) o juiz tem o poder-dever de adotar os meios executivos que se revelem necessários à prestação integral de tutela executiva2.

No entanto, apesar de louvável o entendimento, não se pode ignorar que não são raras às vezes que o direito buscado através da execução típica não se materializa. De acordo com dados do CNJ, a fase de conhecimento do processo dura em média cinco anos e quatro meses, enquanto a fase executiva dura seis anos e nove meses3, de modo que se verifica de forma muito clara que a fase de certificação do direito no qual, em regra, demanda a necessidade dilação probatória, é mais curta do que a efetivação no plano material desse mesmo direito já reconhecido.

Nas relações de consumo, esse problema assume um contorno ainda maior em virtude da natureza dos direitos discutidos, além da vulnerabilidade técnica e econômica do consumidor (art. 4º CDC) evidenciadas, principalmente, em razão da discrepância entre os litigantes e da clara hipossuficiência do consumidor.  

Na prática forense, alguns tribunais chegam a exigir a demonstração da utilização prévia das vias administrativas para a propositura da ação judicial, como prova do "interesse de agir". Existem decisões que chegam a impor ao consumidor que procure a plataforma consumidor.gov.br, aguarde o prazo para manifestação da empresa e só depois inicie a ação judicial, como já ocorreu, por exemplo, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais4 e no Tribunal de Justiça do Maranhão5.

Após a referida diligência, deve-se aguardar um moroso processo judicial e havendo a negativa de cumprimento voluntário da obrigação, se iniciar mais uma longa fase executiva, por vezes, inexitosa. Só após o exaurimento das vias típicas (que pode durar anos) que o consumidor pode se valer das medidas atípicas para ver satisfeito o seu direito, mesmo quando se trata de serviços ou bens essenciais.

Isso tudo ganha destaque se analisada a posição ocupada pelos fornecedores. Na maioria esmagadora dos casos, trata-se de grandes empresas que possuem sofisticada blindagem patrimonial, além do fato de serem amparadas por corpo jurídico especializado - o que só demonstra a disparidade de forças dos sujeitos de direito envolvidos na relação de consumo.

Por exemplo, as construtoras, a cada lançamento de uma obra, criam uma SPE diferente: ao se ingressar com processo judicial contra tal SPE não se localiza bens passiveis de penhora, fazendo com que o consumidor ingresse em uma investigação patrimonial longa e cansativa, jogando com a sorte para conseguir demonstrar sucessão empresarial, grupo econômico, confusão patrimonial e outras.

Diante da premissa de que existe um direito fundamental à tutela executiva, sendo indispensável que o Judiciário, diante de um cumprimento de sentença ou execução em que o credor é um consumidor em busca incessante de patrimônio do fornecedor/prestador/devedor - que sempre resulta infrutífera -, sejam tomadas medidas capazes de satisfazer o crédito.

É direito básico do consumidor a facilitação da defesa dos seus direitos, isto é, o tratamento processual diferenciado para que seja efetivada a isonomia, conforme prevê o art. 6º, inciso VIII do CDC. Essa garantia fica clara, por exemplo, na possibilidade de inversão do ônus da prova, que possibilita ao magistrado transferir ao fornecedor o dever de levar aos autos a comprovação necessária para elidir a pretensão estabelecida em favor do consumidor, havendo em favor do último (caso concedida a inversão) uma presunção de veracidade. 

O Código de Defesa do Consumidor brasileiro é uma lei claramente protetiva, tanto que em seu primeiro artigo consta: "O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor."6. No ordenamento brasileiro não existe margem para discutir se é um "direito ao consumo" ou de um "direito do consumidor", não se discutindo a relação jurídica em detrimento do sujeito de direitos7.

Ressalta-se que na CF/88 o direito do consumidor foi elevado à condição de direito humano fundamental (art. 5º, XXXII). Como direito fundamental, requer ações positivas para sua plena realização. A opção pela tutela subjetiva foi, por fim, consagrada no texto do artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual determinou que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborasse código de defesa do consumidor.

A determinação para a elaboração do Código de Defesa do Consumidor advinha de uma preocupação da manutenção de uma ideologia jurídico-econômico mista, a qual privilegia a liberdade de iniciativa privada e liberdade econômica, mas que ao mesmo tempo preza pela proteção por meio de mecanismos de viés social para evitar eventuais desvirtuamentos indesejados do comportamento dos agentes econômicos, capazes de gerar a autodestruição da própria economia de mercado8.

Portanto, a finalidade foi a de manter um equilíbrio entre o consumidor e o mercado, compensando desequilíbrios naturais não apenas para o consumidor, mas também para o próprio desenvolvimento nacional global e que, ao fim e ao cabo, atingirá, novamente, as pessoas humanas9.

Em sendo assim, a lei federal assegurou aos consumidores direitos e proteção, em quatro dispositivos: artigos 2º, PU, 4º, 17º e 29º. O artigo 4º, inciso I, prevê a vulnerabilidade como seu princípio informador, reconhecendo a "vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo". É de se destacar que a vulnerabilidade do consumidor não é mera desigualdade entre ele e a outra parte, mas é exatamente a circunstância de desigualdade presente na relação jurídica e que justifica a norma de proteção10.

Nessa toada, conclui-se que o consumidor deve sempre ser considerado vulnerável na relação, como presunção legal de vulnerabilidade. Portanto, deve ser aplicado o critério de justiça, da lei e afastados eventuais excessos que podem existir. Logo, os conceitos de "consumidor" e de "vulnerabilidade" se "retroalimentam" no estatuto consumerista, tornando a lei uma norma protetiva.

A hipossuficiência está ligada ao direito processual, à posição desfavorável do consumidor dentro da relação processual advinda de uma ação consumerista (dificuldade de produzir provas, demonstrar ocultação de patrimônio etc.). Ressalta-se que diferente da vulnerabilidade, a hipossuficiência não se presume, mas decorre da situação fática.

Considerando-se a hipossuficiência do consumidor, a necessidade que se defende não é apenas quanto à inversão do ônus da prova, mas a aplicação incisiva do princípio da efetividade com foco no princípio da igualdade entre as partes, afastando-se o princípio da menor onerosidade da execução como forma de forçar o executado/devedor a cumprir a obrigação.

Assim, percebe-se que o legislador deixa em aberto a possibilidade de o magistrado adotar as medidas que entender adequadas, desde que não sejam contrarias à lei, para facilitar ao consumidor a certificação e a materialização do bem da vida que foi violado. Portanto, não existe vedação para a aplicação, em caráter principal, das medidas executivas atípicas.

Partindo do entendimento de Marcos Minami sobre a noção da proibição de non liquet para justificar as medidas executivas atípicas, o magistrado não poderá se eximir de decidir diante de um título executivo existente, devendo mesmo - em verdade - haver uma proibição de o processo jurisdicional terminar em uma situação de inefetividade, o que chamou de vedação ao non factibile11.

Assim, defende-se que, após a devida demonstração de que as medidas ordinárias, como a exemplo, o INFOJUD, RENANJUD, SISBAJUD, SNIPER, restarão infrutíferas, poderá o juiz utilizar de medidas atípicas como forma de coerção para a satisfação do crédito, aplicando a lei de tal forma que afaste eventuais excessos contra o consumidor.

Por outro lado, não é possível que tal medida seja aplicada sem nenhum parâmetro, de forma irrestrita e indiscriminada se ficar demonstrada que a medida executiva típica e menos gravosa será suficiente para garantir a efetividade do direito.

Nessa toada, parece ser razoável que seja exigida a demonstração de quatro requisitos:

a)       Prévio requerimento do autor;

b)      Indícios de ocultação patrimonial;

c)       Demonstração da prática processual reiterada;

d)      Fundamentação do magistrado.

Em síntese, não basta apenas o requerimento do consumidor, mas que esse requerimento seja fundado na demonstração de indícios de ocultação patrimonial, de que o exaurimento das vias ordinárias se mostre como diligência inútil para a finalidade desejada. Além disso, caso o executado seja um litigante habitual, é importante demonstrar a adoção consecutiva da prática processual que visa obstar o cumprimento da decisão, ou seja, quem age de má-fé em reiterados processos tem grandes chances de replicar a mesma conduta. Por fim, como trata-se de medida excepcional deve haver a fundamentação do magistrado, oportunidade em que deve especificar a pertinência e adequação da determinação no caso concreto.

A proposta é a proibição de se deixar de entregar a tutela jurisdicional ao credor/consumidor quando os meios executivos disponíveis demonstrarem-se infrutíferos em um cenário de um devedor/fornecedor ativo no mercado e com notória saúde financeira.

Portanto, diante da análise da legislação processual civil, conclui-se que não existe vedação legal para a utilização das medidas executivas atípicas, em caráter principal. Apesar da construção doutrinaria e jurisprudencial pela subsidiariedade, devem ser consideradas as peculiaridades das relações de consumo, como a exemplo, a vulnerabilidade do consumidor e a hipossuficiência que possibilitam o tratamento jurídico diferenciado. Além disso, restou evidenciada a finalidade protecionista do legislador, que através de vários mecanismos buscou a equiparação de forças entre partes naturalmente desiguais. Assim, possibilitar a utilização direta das medidas atípicas não só irá observar os ditames da Lei 8.078/90, mas viabilizará o cumprimento do princípio da efetividade da execução, corolário do devido processo legal.

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1 STJ, REsp 1.782.418/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3º T., j 23/04/2019, DJE 26/04/2019

2 GUERRA, Marcela Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2002, p. 103-104.

3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Justiça em números 2021.  Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf-Acesso em 24 de agosto de 2022.

4 BRASIL, Juizado Especial Cível. Processo nº 9050444.08.2019.813.0024, Juíza Maria Dolores Giovine Cordovil, 11º Vara de Belo Horinzonte/MG, j. 05/092019.

5 BRASIL, Juizado Especial Cível. Processo nº 0800285-61.2021.8.10.0036, Rel. Juiz Carlos Eduardo Coelho de Sousa, 2º Vara de Estreito/MA, j. 05/03/2021, DJE 31/03/2021.

6 A ementa da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, estabelece: "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências".

7 Na França, na Itália, em Portugal, por exemplo, a discussão acerca de se dever proteger o "o ato de consumo" ou o "consumidor" já foi ou ainda é cabível. Não é o caso do Brasil. Para saber mais sobre o ponto: BENJAMIN, Antonio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009 e também ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Direito do Consumo. Coimbra: Almedina, 2005.

8 Sobre a característica mista ou plural da Constituição Econômica de 1988, recomenda-se: SOUZA,Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

9 Diz-se assentar o fundamento dos direitos humanos na qualidade de vida (Nesse sentido, FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. 7a ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 26). O mesmo deve-se esperar da busca constante pelo desenvolvimento econômico e da escolha de modelo econômico feita pelo Constituinte.

10 Nesse sentido, Lorenzetti afirma ser a vulnerabilidade o impacto mesmo que a circunstância de desigualdade tem sobre a relação jurídica. LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. PG 36 (s.d.).

11 MINAMI, Marcos Youji, Da Vedação ao non factibilie, uma introdução às medidas executivas atípicas. Salvador. Juspodivm, 2019, p. 125-139.

O pedido de desconsideração da personalidade jurídica em inicial de processo de execução

Por mais de uma década (de 1994 a 2005) o Código de Processo Civil de 1973 passou por reformas que tornaram necessário um novo olhar sobre a dicotomia processo de conhecimento - processo de execução.

A tutela antecipada, introduzida pela lei 8.952/94, trouxe a lume a existência de atividade executiva em um processo de conhecimento1, e o sincretismo processual (duas atividades jurisdicionais distintas em um mesmo processo) colocou em xeque a referida dicotomia.

Conforme assevera Cassio Scarpinella Bueno, não há como negar que "boa parte da sistematização histórica do direito processual civil levou em conta a distinção entre o processo de conhecimento e o processo de execução"2, no entanto, consiste em critério classificatório3 que, ao longo dos anos, mostrou-se insuficiente. Insuficiente porque existe execução no processo de conhecimento, existe cautelar no processo de execução, existe conhecimento no processo de execução, e assim sucessivamente.

Há inegável proveito prático em realizar classificações, mas temos que tomar cuidado para não cair em armadilhas. Nas palavras de Barbosa Moreira, temos que controlar "nosso animus classificandi, antes que ele tome o freio nos dentes e se transforme em cego e obsessivo furor classificandi"4.

Quando a classificação consta na Lei o risco de cair em armadilhas é ainda maior, era o que ocorria com o processo cautelar no Código de Processo Civil de 1973. Não bastava a compreensão doutrinária de que seria possível proteger a efetividade da tutela final sem a necessidade de um processo autônomo5, foi preciso que a lei 8.952/94 introduzisse no sistema a tutela antecipada. A expressa menção de um processo cautelar engessava a compreensão a respeito do ambiente processual em que a tutela cautelar (fosse de natureza antecipada ou cautelar)6 poderia ser requerida.

Com as denominadas tutelas provisórias o Código de Processo Civil 2015 logrou êxito em demonstrar que há tutela cautelar, sem precisar existir um processo cautelar. No entanto, essa compreensão de que somente existe 'uma ação' na qual podem coexistir tutelas de diferentes naturezas, não ocorreu com o processo de conhecimento e processo de execução.

Apesar de algumas mudanças que, ao lado do sincretismo, robusteceram a inexistência de autonomia entre as atividades de conhecimento e execução, tal como as decisões parciais de mérito (art. 356, CPC), bem como as já conhecidas atividades essencialmente cognitivas no processo de execução (ex: fraude à execução7), a manutenção das expressões: "processo de conhecimento" e "processo de execução", nos Livros I e II do CPC, respectivamente, fez permanecer vivo (ainda que com temperamentos) o dogma de que tutela cognitiva é exclusiva do processo de conhecimento e tutela executiva do processo de execução.

Manter-se expressamente a dicotomia do continente (processo) mostra-se descabida "por força da unitariedade e universalidade do conceito de ação"8 (conteúdo).

Ação é "o direito de romper a inércia da jurisdição e de atuar ao longo do processo com vistas à concretização da tutela jurisdicional. É a tutela jurisdicional - se concedida - que desempenhará o papel que as diversas ações, seus respectivos pedidos e correlatas sentenças desempenhavam"9. Não existe ação de conhecimento ou ação de execução, existe apenas ação, que pode ter como pedido tutela cognitiva, executiva, cautelar, tudo convivendo em um mesmo ambiente (processo).

Nas execuções de títulos extrajudiciais, o rompimento da inércia da jurisdição se dá com base em pedido de tutela executiva, portanto, classifica-se como sendo ação de execução. Por outro lado, se já existia prévia atividade jurisdicional (conhecimento), definir se no momento de buscar a tutela executiva haverá exercício de ação, ou mera continuidade do direito constitucional já iniciado, dependerá da análise do objeto litigioso, que, geralmente, mantém-se o mesmo10.

Se o objeto litigioso for o mesmo da fase cognitiva, não haverá "ação de execução", mas mera fase processual (cumprimento de sentença). Há evidente paradoxo, na medida em que a tutela de predominância requerida em um processo de execução de título extrajudicial é a mesma de um cumprimento de sentença - tutela executiva, mas no primeiro caso haverá classificação em "ação de execução", e no segundo "fase da ação de conhecimento".

Ponto fulcral é que a classificação de processo e ação, em conhecimento ou execução, leva à limitação no desenvolvimento da atividade jurisdicional. E limitar a atividade jurisdicional é ir de encontro com as normas fundamentais de processo civil de razoável duração do processo, celeridade e economia processuais.

Mas, se por um lado o Código de Processo Civil de 2015 manteve as expressões processo de execução e processo de conhecimento, trouxe inovação que expressamente autoriza a concessão de tutelas de naturezas diversas em um mesmo processo, e isso, no ambiente menos aceito pela jurisprudência11: tutela cognitiva no processo de execução.

O Código de Processo Civil atual pouco inovou em matéria de execução, no entanto, com a introdução da possibilidade de requerer desconsideração da personalidade jurídica em inicial de processo de execução12 (do art. 134, §2º) acabou, ainda que não intencionalmente, afastando o dogma de que em processo de execução só há tutela executiva.

Quando há Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica em inicial de processo de execução o que existe é cumulação de pedidos de naturezas distintas e direcionados a partes diversas, tudo convivendo em um só processo. Há um litisconsórcio inicial, passivo, eventual e simples.

Para cada ocupante do polo passivo haverá um pedido de natureza distinta. Para aquele que figura como devedor no título executivo, a tutela será executiva, sendo qualificado processualmente como executado. Já em relação ao pedido direcionado ao pretenso responsável patrimonial secundário (art. 790, VII, CPC), a tutela inicialmente requerida será de conhecimento (desconsideração da personalidade jurídica), e por isso, de início, qualifica-se processualmente como réu. Somente se houver decisão de procedência do pedido desconsideração da personalidade jurídica é que o réu do IDPJ passará a ostentar a qualidade de executado13.

O processo com cumulação de pedidos de natureza cognitiva (desconsideração da personalidade jurídica) e executiva (em face do devedor constante no título) deveria prescindir de qualificação14, pois a adjetivação causa equívocos procedimentais.

Entre estes equívocos procedimentais podemos citar a autorização de penhora de bem do réu do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, e até mesmo o emprego de expressões que, em nosso sentir, são tecnicamente erradas como "penhora cautelar"15.

No processo de execução com pedido de desconsideração da personalidade, o executado pode sofrer penhora, pois em face dele há pedido de tutela executiva. Já o réu do IDPJ (pretenso executado) pode sofrer arresto (cautelar)16, pois em face dele há pedido de tutela cognitiva e a apreensão de bens somente se justifica como tutela provisória. Embora o resultado da penhora e do arresto sejam praticamente iguais: segregar patrimônio para garantir a dívida, há diferenças entre os referidos institutos que não podem ser ignoradas.

A intenção do incidente de desconsideração da personalidade jurídica é autorizar que terceiro17 passe a responder com seu patrimônio por dívida alheia; e este terceiro somente poderá responder com seu patrimônio próprio, por dívida alheia, após o trâmite do IDPJ (art. 795, §4º18). Até a prolação da decisão interlocutória que decide o referido incidente, nenhum ato típico de tutela executiva deve se voltar ao sócio19, ainda que, no mesmo processo, possam acontecer atos típicos de tutela executiva em face do executado.

Como se vê, a autorização legal de instaurar incidente de desconsideração da personalidade jurídica em inicial de processo de execução disse mais do que queria dizer, mas, por se manter legalmente a dicotomia entre processo de conhecimento e processo de execução, experimentam-se na prática erros procedimentais, concedendo-se tratamentos distintos para situações idênticas20.

Da mesma maneira que a tutela antecipada introduzida no CPC/73 por meio da Lei 8.952/94, ao conceber que pode haver tutela executiva no processo de conhecimento, colocou em xeque a dicotomia processo de conhecimento - processo de execução21; o art. 134, §2º, CPC, ao autorizar que seja requerida desconsideração da personalidade jurídica em processo de execução (cumulação de pedidos de conhecimento e execução), exacerbou a prescindibilidade de se colocar em compartimentos estanques as tutelas jurisdicionais.

O pedido de desconsideração da personalidade jurídica em inicial de processo de execução demonstra que é possível haver tutela essencialmente cognitiva dentro de um processo de execução. Mas, mais do que isso, a possibilidade de convivência de tutela cognitiva e tutela executiva em um mesmo processo, legalmente autorizada pelo art. 134, §2º, CPC, convida à reflexão sobre a utilidade de manutenção da dicotomia entre processo de conhecimento e processo de execução, que mais parece dificultar o alcance das tutelas jurisdicionais que auxiliar.

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1 "A própria generalização da tutela antecipada (CPC, art. 273), por obra da lei 8.952/1994, sinaliza a quebra de autonomia tanto da ação-processo de execução, quanto da ação-processo cautelar.
Essa revolucionária inovação pôs a nu, de início, que atividade cognitivas e executivas podem se mesclar no processo, de tal sorte que o processo de conhecimento poderia abrigar atividade para realização concreta de um provimento antecipatório de tutela (sem que haja autônoma ação de execução)."  (SICA, Heitor Vitor Mendonça. O direito de defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011, p. 40).

2 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Vol. 1. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 313

3 Critério que leva em consideração a atividade jurisdicional predominante: reconhecer o direito, satisfazer o direito e proteger o direito

4 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões velhas e novas em matéria de classificação das sentenças. In Temas de direito processual, oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 142

5 Antes da Lei já havia obras a respeito da cautelaridade por meio de antecipação: Ver GUERRA, Marcelo Lima. Reflexões em torno da distinção entre execução provisória e medidas cautelares antecipatórias. In Revista de Processo vol. 57. São Paulo: RT. Jan-mar. 1990. p. 208 - 210 e MARINONI, Luiz Guilherme, Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: RT. 1992.

6 Partimos dos ensinamentos de Piero Calamandrei de que a tutela antecipada é mera espécie do gênero cautelar: "...qui, in questo terzo grupo, il provvedimento cautelare consiste proprio in una decisione anticipata e provvisoria del merito, destinata a durare fino a che a questo regolamento provvisorio del rapporto controverso non si sovrapporà il regolamento stabilmente conseguibile attraverso il più lento processo ordinario." (CALAMANDREI, Piero. Introduzione Allo Studio Sistematico dei Provvedimenti Cautelari. Pádua : CEDAM, 1936, p. 38/39).

Protege-se entregando o próprio bem da vida (tutela antecipada/satisfativa), ou protege-se a tutela jurisdicional final por outro meio (cautelar pura). 

7 Embora o §4º do art. 792, CPC determine que antes de declarar a fraude à execução deve haver intimação do terceiro adquirente, para que esse, se quiser, apresente embargos de terceiro, a decisão que reconhece ou nega a existência de fraude é proferida no bojo no processo de execução e não nos embargos de terceiro.

Ilustrando, no caso ligado ao agravo de instrumento 2156917-86.2018.8.26.0000, não houve apresentação de embargos de terceiro, o que não impediu o juiz de primeira instância, exercendo cognição, negasse a existência de fraude. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2156917-86.2018.8.26.0000; Relator (a): Rebello Pinho; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/06/2020; Data de Registro: 26/06/2020).

8 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do juiz na execução civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 56.

9 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Vol. 1. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 282.

10 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do juiz na execução civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 106.

11 Desde a inserção das tutelas antecipadas no sistema processual há aceitação de que pode haver atos executivos em um processo de conhecimento.

12 Heitor Vitor Mendonça Sica entende em sentido oposto, asseverando que quando a desconsideração da personalidade jurídica é requerida na inicial do processo de execução aplica-se "a técnica de cognição sumária com inversão de contraditório (art. 134, § 2º). (SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do juiz na execução civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 205).

13 Sem adentrarmos na problemática de falta de compatibilidade dos incisos do art. 779 e 790, CPC, fato é que o art. 790, VII, em uma leitura sistêmica, nos leva à conclusão de que somente haverá legitimidade do sócio para constar como executado após decisão de desconsideração da personalidade jurídica.

14 "O que precisa haver (...) enquanto houver necessidade de atuação do Estado-juiz é processo, sem nenhuma adjetivação. O processo é um só: o devido desde o modelo constitucional, o devido processo constitucional." Grifos originais (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Vol. 1. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 316).

15 No julgamento do Agravo de Instrumento 2166422-62.2022.8.26.0000 (Relatora: Maria Lúcia Pizzotti; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 18/08/2022; Data de Registro: 18/08/2022), embora tenha ficado claro que o IDPJ ainda não tinha sido decidido na origem, foi deferida penhora cautelar de imóvel. Penhora é ato típico de tutela executiva, de tal sorte que não poderia ter sido deferida antes do desfecho do IDPJ.  O que poderia ter sido requerido como forma de garantir o resultado útil do processo, seria o arresto cautelar (tutela provisória) do imóvel. Embora em ambas situações (penhora e tutela provisória de arresto) ocorra a segregação do patrimônio, o mecanismo que leva a essa tem desdobramentos distintos, e por isso, é necessário deixar claro qual a motivação da segregação.

16 TJ/SP;  Agravo de Instrumento 2072634-91.2022.8.26.0000; Relator: Rebello Pinho; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 11ª Vara Cível; Data do Julgamento: 23/05/2022; Data de Registro: 23/05/2022.

17 A posição de terceiro do réu do IDPJ ficou bastante clara com a opção legislativa de inserir o IDPJ como uma espécie de intervenção de terceiro.

18 O PL 487/2013, projeto de lei de Código Comercial, assevera no art. 199: "Decretada a desconsideração da personalidade jurídica, deve ser incluído no processo o nome do sócio, administrador ou da pessoa, natural ou jurídica, a quem se imputar responsabilidade.", deixando de maneira ainda mais evidente que o sócio só passa a ser parte no processo após todo o trâmite do IDPJ.

19 Mencionamos a palavra sócio, pois é a forma mais corriqueira de pedido de desconsideração da personalidade jurídica: desconsideração direta (devedor é a pessoa jurídica) e restritiva (limita-se aos integrantes da pessoa jurídica devedora).

20 Quando o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é instaurado depois que o processo de execução já se iniciou, forma-se autos apartados (denominado pela Lei de incidente). Nesses autos apartados não há erro de qualificação processual, o desconsiderando é qualificado como réu do IDPJ e não executado, e não há atos executivos voltados contra ele até que se decida o IDPJ.

Há de maneira não intencional tratamentos distintos para o pedido de desconsideração requerido na inicial do processo de execução (IDPJ interno) e o pedido de desconsideração da personalidade jurídica incidental (IDPJ externo). Com isso há evidente desequilíbrio, pois são situações materiais idênticas (busca de responsabilização secundária) em que o que menos deveria importar é o local na qual se pede (se na inicial ou de maneira incidental).

21 A própria generalização da tutela antecipada (CPC, art. 273), por obra da lei 8.952/1994, sinaliza a quebra de autonomia tanto da ação-processo de execução, quanto da ação-processo cautelar.
Essa revolucionária inovação pôs a nu, de início, que atividade cognitivas e executivas podem se mesclar no processo, de tal sorte que o processo de conhecimento poderia abrigar atividade para realização concreta de um provimento antecipatório de tutela (sem que haja autônoma ação de execução).  (SICA, Heitor Vitor Mendonça. O direito de defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011, p. 40).

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Roberta Dias Tarpinian de Castro é mestre em Processo Civil pela PUC/SP, MBA em direito tributário pela FGV/SP, professora de processo civil dos cursos de pós-graduação da PUC/SP e Mackenzie para publicação na nossa coluna de sexta-feira - Elas no Processo.

 

As diretrizes judiciais para realização da alienação particular

A alienação judicial por iniciativa particular1 é meio expropriatório que pode ser considerado tradicional na execução civil brasileira, já que se fez presente em todos os códigos federais (CPC/39, CPC/73 e CPC/15) e em legislação esparsa (lei 9.099/95).

Apesar da permanência normativa, a produção acadêmica sobre o tema não tem sido expressiva, mesmo na busca em periódicos especializados. Para ilustrar essa afirmação, ao inserir os parâmetros "alienação por iniciativa particular" e "alienação particular" no acervo eletrônico de cinco das principais revistas de processo2, são encontrados oito trabalhos, sendo apenas dois deles publicados durante a vigência do atual CPC. No âmbito jurisprudencial, o enfrentamento da questão é igualmente reduzido3, tornando evidente a importância da presente análise, que servirá para demonstrar os seus potenciais e, assim, incentivar a ampliação do seu uso.

De acordo com o art. 825 do CPC, a expropriação de bens pode se realizar pela adjudicação (arts. 876 a 878), pela alienação (arts. 880 a 903) ou pela apropriação de frutos e rendimentos (arts. 862 a 869). Por sua vez, a alienação possui duas modalidades ou espécies: por iniciativa particular, e por leilão público (art. 879, incisos I e II).

Se a penhora tiver recaído sobre quantia suficiente, é intuitivo concluir que o caminho para a satisfação do crédito será mais fácil, bastando a entrega imediata dos valores ao credor. Havendo constrição de frutos e rendimentos de bens do devedor, o pagamento ocorrerá por transferências periódicas. Por outro lado, se os bens penhorados forem outros móveis ou imóveis, poderão ser adjudicados ou alienados na execução4.

A adjudicação consiste na transferência do bem penhorado para a propriedade do exequente ou de outros sujeitos legitimados (art. 876, caput e § 5º). Não sendo realizada, será oportunizada a alienação particular ou, em último caso, a alienação por leilão.

Assim, existe uma escala de preferência legal: atualmente, a adjudicação é prioritária, seguida da alienação particular, subsidiária com relação à primeira, e prioritária quanto ao leilão público, última modalidade de expropriação judicial.

A disciplina legislativa da alienação particular é encontrada no art. 880 do CPC, restando aplicáveis algumas previsões do leilão público (arts. 881-903), mais extensas e detalhadas, desde que compatíveis com o seu regramento.

Conforme o dispositivo estabelece, não ocorrida a adjudicação dos bens do executado, o exequente pode requerer a alienação por sua própria iniciativa ou por meio de corretor ou leiloeiro público credenciado perante o órgão judiciário5. Esse mecanismo objetiva converter forçadamente o patrimônio penhorado em dinheiro, a fim de satisfazer o exequente. Não é a alienação em si que realiza o crédito, mas a atividade de conversão e entrega da quantia para o titular (art. 904, I).

A principal diferença entre a alienação particular e a alienação por leilão repousa sobre a simplicidade do procedimento da primeira6. Embora realizada no curso do processo judicial, a procura por interessados é simplificada, não depende da prática de excessivos atos solenes, dispensando a publicação de editais. Ambas são formas de expropriação do patrimônio do executado, pleiteadas perante órgão jurisdicional estatal, mas com distintos graus de burocracia pública.

Nesse instituto, a prática de atos negociais para busca de adquirentes e formulação de propostas convive com a presença soberana do órgão jurisdicional7. Ainda se está diante de expropriação judicial, porém, com natureza negocial e pública8.

O § 1º do art. 880 indica que o magistrado deve fixar as condições básicas para que a alienação se realize, tais como: a forma de publicidade, o preço mínimo, as condições de pagamento, as garantias e, sendo necessária, a comissão de corretagem. A partir daqui, passa-se ao exame, de forma crítica, desses vetores - objeto central do texto.

Como aponta Fredie Didier Jr., as diretrizes judiciais para realização da alienação particular devem ser interpretadas com flexibilidade, permitindo a alteração dos seus componentes durante o curso do processo, condicionada à concordância das partes9. Inclusive, elas podem definir prévia e consensualmente os requisitos da alienação, criando diferenças convencionais compatíveis com os seus interesses, ao encontro da cláusula geral de negociação processual (art. 190) e do regime de disponibilidade da execução (art. 775), os quais estimulam a atipicidade negocial executiva10.

A publicidade da alienação é fator crucial para o seu êxito, pois envolve preocupações com: a divulgação da oferta do bem para um nicho específico do mercado, a descrição do tempo de uso, o estado de conservação, despesas de manutenção, condições especiais de pagamento, e demais vantagens competitivas do patrimônio disponível.

O bem precisa ser oferecido de modo amplo e assertivo, com publicidade realizada em ambientes, físicos ou virtuais, frequentados pelo maior número de potenciais adquirentes. Como a alienação alcança bens com distintas características, a variação das estratégias de divulgação deve ser proporcional a essa pluralidade, não sendo a mesma, por exemplo, para edifícios, automóveis, embarcações, pedras preciosas e obras de arte.

O magistrado não está autorizado a impor formalidades publicitárias excessivas, uma vez que isso igualaria ou superaria a burocracia do leilão11, além de tornar a alienação particular mais custosa para o executado ou para o profissional responsável pela intermediação do negócio (quando responsável por estes custos), na medida em que os gastos com publicidade são incluídos nas despesas da execução.

Portanto, a melhor solução é a reduzida intervenção judicial sobre esta diretriz, favorecida pela fixação de parâmetros gerais de publicidade, incumbindo-se a especificação das estratégias de divulgação ao agente habilitado para intermediar o negócio12, detentor de conhecimentos técnicos sobre o bem e seu mercado - o que não exclui a adoção de cautelas adicionais pelas partes, interessadas em potencializar as chances de êxito da transação.

Como se pode imaginar, o valor a ser pago pelo bem é um dado relevante para todos os sujeitos envolvidos na alienação particular: ao exequente, por ter interesse na satisfação integral do débito; ao executado, para obtenha o maior preço possível, e assim tenha chances de receber eventual excedente ao valor da dívida e às despesas executivas; e ao adquirente, para que consiga celebrar negócio jurídico vantajoso e competitivo frente ao mercado. E, por fim, acrescente-se ainda o interesse de eventuais corretores ou leiloeiros que atuem na transação, já que o pagamento do percentual da comissão costuma ter como referência o preço do negócio efetivamente realizado e não o valor da avaliação do bem.

Vale destacar que corretores e leiloeiros podem atuar de maneira informal na alienação, sem a aprovação do custeio desses gastos no plano de alienação judicial, ou com a formalização de sua participação perante o juízo executivo, quando serão auxiliares eventuais da justiça (art. 149, CPC) e as despesas suportadas pelo executado13.

De modo relevante, o art. 880, § 4º estipula que nas localidades em que não houver corretor ou leiloeiro público credenciado nos termos do § 3º a indicação será de livre escolha do exequente, com privilégio ao exercício de vontade.

A interpretação que exigia a necessidade de cadastramento prévio do profissional nos bancos dos tribunais foi um significativo obstáculo para a utilização do instituto na vigência do CPC/73, sobretudo considerando a demora ou inexistência de regulação, não podendo subsistir14. Mesmo se houver profissional credenciado na localidade, o desatendimento a essa exigência não invalida o negócio jurídico de alienação do bem, salvo prejuízo comprovado pelo executado, como adequadamente reconheceu o Enunciado 192 do FPPC.

É necessário criticar a definição em abstrato de período mínimo de experiência de três anos para o profissional (art. 880, § 3º). Apesar de o legislador, em comparação com o CPC/73, ter reduzido o lapso temporal de cinco para três anos, ainda parece ter errado. Existem outros critérios mais apropriados para aferir a qualificação do corretor ou leiloeiro, como o seu histórico quantitativo de trabalhos, acesso às plataformas digitais para oferta dos bens ou extensa capilaridade do seu ofício em interiores, zonas rurais ou áreas de difícil acesso, a depender do local e perfil do acervo patrimonial em oferta15.

Embora o pagamento à vista pelo adquirente seja modalidade preferencial, por encurtar o tempo até a fruição dos valores pelo credor, o parcelamento do preço é permitido16. O pagamento em parcelas preserva o orçamento do adquirente, favorece a celebração de negócios de grande porte, além de ser autorizado pelo art. 895 do CPC, compatível com a alienação particular17. Havendo interesse em parcelar o valor, a fixação de garantias é fundamental para reduzir os riscos de inadimplemento.

O preço mínimo da alienação é um dos seus pontos mais relevantes18.

Para analisar o tema, é fundamental considerar a atual dicção do caput do art. 891, de ser inaceitável lance com preço vil na alienação judicial, aliado ao texto do seu parágrafo único, o qual indica que será vil o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz, ou, na ausência dessa definição, o preço inferior a 50% do valor da avaliação19.

A estipulação judicial do preço mínimo produz presunção absoluta de vileza do valor abaixo desse parâmetro, sendo o preço inferior a 50% da avaliação também indutor dessa circunstância, embora critério de reserva, acionado apenas na ausência do primeiro20. Como se vê, a não definição do preço mínimo da alienação pelo órgão judicial não acarreta a invalidação do negócio, havendo solução normativa mais apropriada.

Nota-se que o art. 891 dissolveu restrição temporal do art. 692 do CPC/73, que considerava que a vileza do preço invalidava a alienação apenas em segundo leilão. Em reforma elogiável, o caráter vil do preço da alienação passou a induzir vício desde a primeira oportunidade. A definição do que se entende por preço vil (art. 891, par. único) também é inédita, já que o antigo art. 692 não oferecia baliza para esse fim.

Outra mudança importante está na supressão pelo atual art. 680, § 1º da referência que o art. 685-C, § 1º, do CPC/73 fazia ao revogado art. 680. Quando aquele dispositivo indicava a fixação do preço mínimo da alienação pelo juiz, realizava menção à avaliação, induzindo raciocínio de que o preço da alienação estava condicionado a patamar idêntico ou superior21. Essa remissão desapareceu, sendo o silêncio eloquente.

O legislador ordinário não deixou dúvidas a respeito da admissão de que o bem penhorado seja alienado, por iniciativa particular ou por leilão, por valor inferior ao da avaliação, desde que não se enquadre como preço vil22. A redação atual tende a superar as históricas resistências doutrinárias em torno dessa possibilidade23.

Em tal caso, autoriza-se a transmissão forçada do patrimônio por valor abaixo ao avaliado para incentivar a concretização do negócio por preço atrativo, ampliando as chances de êxito na busca por adquirentes e na seleção de propostas no mercado, sem sacrifício excessivo dos interesses do devedor.

Aliás, a vedação de arrematação do bem por preço vil protege o executado, que não perderá seu patrimônio por preço irrisório ou aviltante, ao passo que tutela a esfera patrimonial do exequente, sobretudo quando o montante devido for superior ao valor da avaliação dos bens, desnível que seria significativamente agravado pela vileza do preço.

De igual modo, não há óbices para que a alienação se dê por preço maior ao da avaliação, considerando as circunstâncias específicas do bem e a dinâmica atual do mercado em que se localiza o patrimônio. É situação econômica favorável para exequente e executado, podendo se revelar interessante diante do caso concreto24. Além disso, as partes podem autorizar consensualmente a alienação por valor distinto da avaliação.

Em suma, diante do cenário patrimonial em que o executado não possui quantia suficiente em espécie, tendo ocorrido a constrição de bens móveis ou imóveis, sem interesse na adjudicação, a alienação particular é meio expropriatório preferencial, mais simples e potencialmente menos custoso que o leilão, devendo ser mais utilizado25, com observância à adaptabilidade das diretrizes judiciais para sua realização.

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As autoras aprofundaram o tema no artigo: SANTOS, Clarice; SILVEIRA, Bruna Braga da. Aspectos relevantes da alienação por iniciativa particular no processo executivo. In: ASSIS, Araken de; BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord). Processo de execução e cumprimento de sentença: temas atuais e controvertidos. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2022, p. 751-768.

2 Revista de Processo (RePro), Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro), Revista Eletrônica de Direito Processual (REDP), Civil Procedure Review e Revista ANNEP de Direito Processual.

3 Poucas decisões abordam questões jurídicas relevantes do instituto, ao menos perante o Superior Tribunal de Justiça. O REsp 1.312.509/RN e o AgREsp n. 929.244/SP são exemplos que valem a menção.

4 Marcelo Abelha salienta a diferença temporal entre os meios expropriatórios: "A rigor, todas as formas são expropriatórias e voltadas à satisfação do credor, mas a diferença entre elas é que a linha que separa cada espécie de ato do resultado a ser obtido é variável no tempo. Mais curta na adjudicação, mais longa, e às vezes incerta, na alienação em leilão. O meio-termo, em tese, está na percepção de frutos e rendimentos de bem penhorado" (RODRIGUES, Marcelo Abelha. Fundamentos da tutela executiva. Brasília: Gazeta Jurídica, 2019, p. 187).

5 Ressalta-se que a alienação particular é compatível com a execução em autocomposição. Sobre o assunto: BRAGA DA SILVEIRA, Bruna; MEGNA, Bruno Lopes. Autocomposição: causas de descumprimento e execução - um panorama sobre meios alternativos de solução de conflitos e processo de execução no novo CPC. Revista de Processo, São Paulo, v. 264, fev., 2017, p. 473-495.

6 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução, v. 5. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 970.

7 Razão pela qual não se pode ignorar a existência do caráter coativo desse meio de expropriação (LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 142-150).

8 ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.104. Cabe registrar que, por ser um meio sub-rogatório, exercido contra a vontade do executado, distancia-se do contrato de compra e venda, o qual pressupõe comunhão de vontades entre os envolvidos.

9 "As peculiaridades do mercado e as vicissitudes de qualquer negociação podem impor, contudo, que a venda seja feita em desconformidade com o quanto estabelecido, desde que o juiz assim o permita em decisão posterior, contando com prévia concordância do exequente e do executado" (DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução, v. 5. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 970). Em mesma linha, Daniel Neves pontua que o juiz não está adstrito às condições fixadas, podendo admitir propostas com outras formas de pagamento, garantias ou preço (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1.292).

10 Sobre o tema: DIDIER JR., Fredie; CABRAL, Antonio do Passo. Negócios jurídicos processuais atípicos e execução. Revista de Processo, São Paulo, v. 275, jan., 2018, p. 193-228; NOGUEIRA, Pedro Henrique. Gestão da execução por meio de negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, v. 286, dez., 2018, p. 325-342; GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Convenções processuais atípicas na execução civil. Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, ano 15, v. 22, n. 1, jan.-abr., 2021, p. 283-321; SANTOS, Clarice. Análise crítica do controle de validade dos negócios processuais na execução civil brasileira. Empório do Direito. Disponível em: [https://emporiododireito.com.br/leitura/analise-critica-do-controle-de-validade-dos-negocios-processuais-na-execucao-civil-brasileira].

11 Por todos: ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.107.

12 Em sentido semelhante: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1.291

13 "Ressalta-se, ademais, que, uma vez concluída a alienação por corretor ou leiloeiro público credenciado, sua comissão, aprovada pelo juiz, será incluída nos custos processuais da execução a serem suportados pelo executado. Todavia, pode o próprio exequente assumir o encargo de alienar o bem penhorado, procurando auxílio de um corretor de modo particular. Nessa hipótese, o executado não deverá a comissão de corretagem, não sendo tal valor incluído nas custas processuais. Tal montante será pago diretamente pelo exequente" (BECKER, Rodrigo Frantz. A alienação por iniciativa particular e o princípio da menor onerosidade da execução. In: ASSIS, Araken de; BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord). Processo de execução e cumprimento de sentença: temas atuais e controvertidos. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2020, p. 724).

14 BECKER, Rodrigo Frantz. A alienação por iniciativa particular e o princípio da menor onerosidade da execução. In: ASSIS, Araken de; BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord). Processo de execução e cumprimento de sentença: temas atuais e controvertidos. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2020, p. 724.

15 DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1.200.

16 TALAMINI, Eduardo. Alienação por iniciativa particular como meio expropriatório executivo (CPC, art. 685-C, acrescido pela Lei 11.382/2006). Revista Jurídica 385, v. 57, n. 385, nov., 2009, p. 39; ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 1.108; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1.292.

17 Alexandre Pimentel e Rafael Medeiros admitem com reservas a possibilidade de pagamento em prestações da alienação particular, ressaltando que o juízo deve levar em consideração peculiaridades como condições mercadológicas, o risco de deterioração ou a desvalorização do bem penhorado, sem dispensar a adoção de diversas cautelas para deferir a proposta (PIMENTEL, Alexandre Freire; MEDEIROS, Rafael Asfora. Da alienação por iniciativa particular: raízes históricas e principais inovações do CPC-2015. Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, ano 10, v. 17, n. 2, jul.-dez., 2016, p. 29-32).

18 Em texto escrito na vigência do CPC/73, Marco Muscari afirma ser o preço mínimo o maior entrave ao êxito da alienação particular, dedicando trabalho exclusivamente ao tema: MUSCARI, Marco Antonio Botto. Alienação por iniciativa particular: qual o preço mínimo? Revista de Processo, v. 170, abr., 2009, p. 115-122.

19 O exequente não pode adjudicar o bem por preço inferior ao da avaliação (art. 876, CPC), o que desestimula a utilização desse meio expropriatório, apesar de ser legalmente preferencial: "Ora, a não ser que o exequente queira muito, muito mesmo, ficar com o bem penhorado e não esteja disposto a encarar um procedimento de leilão judicial, pois do contrário ele irá aguardar o referido leilão e, quem sabe, arrematar o mesmo bem pela metade do preço (art. 890, parágrafo único). É que na arrematação ele pode adquirir o mesmo bem por até 50% a menos do valor fixado na avaliação. Assim, porque o exequente teria pressa em adjudicar (sempre pelo preço da avaliação)? Só fará isso se ele estiver muito interessado no referido bem" (RODRIGUES, Marcelo Abelha. Fundamentos da tutela executiva. Brasília: Gazeta Jurídica, 2019, p. 188).

20 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução, v. 5. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 977.

21 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 257.

22 Esse tem sido o entendimento majoritário. "Em relação à fixação das condições para a realização da alienação particular, o CPC-2015 desvinculou-se da orientação consagrada no art. 685-C do CPC-1973, que atrelava a validade da alienação particular à venda por valor igual ou superior ao da avaliação, bem como da regra constante do art. 52, VII, da Lei nº 9.099/1995, pela qual se o valor obtido na alienação particular for inferior ao da avaliação, as partes devem ser ouvidas. O art. 880 do CPC-2015 não condicionou a validade da alienação particular por valor mínimo idêntico ao da avaliação nem à concordância das partes quando o valor obtido for inferior, simplesmente o dispositivo reza que o juiz fixará as condições do procedimento dentre as quais queda-se o estabelecimento do preço mínimo, o qual pode ser inferior ao da avaliação desde que reflita uma situação real de mercado e, sobretudo, que não seja vil" (PIMENTEL, Alexandre Freire; MEDEIROS, Rafael Asfora. Da alienação por iniciativa particular: raízes históricas e principais inovações do CPC-2015. Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, ano 10, v. 17, n. 2, jul.-dez. 2016, p. 35).

23 Apesar das alterações legislativas, há quem continue a defender a proibição do valor da alienação ser inferior ao da avaliação do bem: "Embora o art. 880, § 1.º, inclua a fixação do preço mínimo nas disposições acerca da alienação por iniciativa particular, o valor não poderá ser inferior ao da avaliação. E isso porque a alienação forçada não pode provocar a espoliação do executado e, de resto, há o impedimento geral à alienação por preço vil (art. 891, caput), apesar de considerar-se viável o preço superior a cinquenta por cento do valor da avaliação. Era o sentido da remissão ao valor da avaliação, no direito anterior. O princípio subsiste no NCPC - ou é melhor eliminar a avaliação" (ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.108).

24 "Ao órgão judicial é dado, ao revés, fixar preço superior ao da avaliação, reunindo elementos objetivos que indiquem o êxito da alienação nessas condições" (ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.108). Em sentido contrário: "a segunda solução - possibilidade de definição de preço mínimo superior ao da avaliação - conduziria a uma hipótese verdadeiramente absurda: numa alienação de bem penhorado em processo judicial, com todas as implicações negativas daí advindas, o juiz cometeria ao exequente ou ao corretor a missão de encontrar, no mercado, quem se dispusesse a pagar pelo bem... mais do que ele vale! Não é preciso dom divinatório para perceber que, se o magistrado fixar como preço mínimo um valor superior ao da avaliação, não haverá interessados" (MUSCARI, Marco Antonio Botto. Alienação por iniciativa particular: qual o preço mínimo? Revista de Processo, São Paulo, v. 170, abr., 2009, p. 115-122).

25 Há diversas propostas doutrinárias e legislativas para definição de novos agentes executivos, públicos ou privados, em exclusividade ou em concorrência de funções, com maior ou menor controle judicial, como o tabelião de serventia extrajudicial, oficial de justiça, árbitro, advogado e outros profissionais liberais. A título de exemplo e por sua relevância, menciona-se o Projeto de Lei 6.204, de 20.11.2019, de iniciativa da senadora Soraya Thronicke, com relatório do senador Marcos Rogério em 12.04.2022, bem como o Anteprojeto de Lei, de 12.11.2020, do grupo de pesquisa da UERJ liderado por Antonio do Passo Cabral. O Anteprojeto, inclusive, propõe a reforma do art. 880, caput e parágrafos, CPC, para inserir a atuação do agente de execução no contexto da alienação judicial por iniciativa particular. Nesse cenário, o trabalho não ignora os debates contemporâneos sobre a desjudicialização da execução no país e as autoras consideram que o instituto deve ser mantido em um futuro modelo de execução extrajudicial.

A compreensão do significado da razoável duração do processo, com enfoque constitucional

O acesso à justiça comporta significado que compreende uma gama de princípios processuais, entre eles o devido processo legal, o contraditório e a efetividade, que, conjugados, proporcionam ao jurisdicionado o processo justo, corolário do tema.

A razoável duração do processo, alçada a nível constitucional pela Emenda Constitucional 451, não surgiu como novidade no sistema pátrio, não só porque revela-se como resultado do princípio da inafastabilidade da jurisdição na concepção que se coloca, como também porque já encontrava previsão na Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, subscrita em 4.11.19502, sob a égide do qual sobreveio o Pacto de San Juan da Costa Rica3,  incorporado ao direito pátrio pelo decreto 678, de 6.11.19924.

Para a figuração do exato significado e alcance do tema, a doutrina tem debatido os diversos enfoques capazes de dar suporte à efetividade do direito fundamental à celeridade processual.

Não se pode negar autoaplicabilidade ao dispositivo5, mas será de extrema fragilidade a exegese que se resulta for considerada, em razão do assento constitucional, verdadeira panaceia, não só porque, se assim fosse, já o seria exigível por conta dos preceitos constitucionais pré-existentes, como porque não se solucionam problemas estruturais do Judiciário sob tão pálida iniciativa.

A doutrina desde logo revelou preocupação com a elasticidade do conceito, mencionando Uadi Lamêgo Bulos6 que "o problema está em saber o que significa 'razoável duração do processo', bem como quais os meios para assegurar a rapidez de seu trâmite. Oxalá o legislador logre o êxito em esclarecer tal ponto".

Tenha-se presente que incumbe às partes provocar a atuação jurisdicional, evitando delongas e demoras injustificadas, e disso exsurge o princípio da cooperação entre os sujeitos do processo, dispondo as partes de meios hábeis a coibir as condutas meramente procrastinatórias, que revelam temeridade sujeita à reparação e punições legais.

Portanto, não só ao juiz cabe zelar pela rápida solução do litígio (CPC, art. 139, I) como também aos jurisdicionados incumbe a fiscalização e requerimento de imediatas providências, como se verifica, por exemplo, no diploma processual (CPC, art. 143), de acordo com o qual

O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando: I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte.

Parágrafo único. As hipóteses previstas no inciso II somente serão verificadas depois que a parte requerer ao juiz que determine a providência e o requerimento não for apreciado no prazo de 10 (dez) dias.

Com isso, a duração razoável do processo tem seu verdadeiro sentido na disponibilização dos meios capazes de assegurar a celeridade, no expresso termo da norma constitucional e não com a sua medida em tempo. Socorrem a parte institutos presentes no ordenamento processual civil. Sendo, por exemplo, caso de urgente fruição, cabível será o pleito de antecipação de tutela (CPC, art. 300), hábil a impedir o perecimento do direito. O Superior Tribunal de Justiça bem delineou o tema ao trazer como suposição que "a tutela de urgência pressupõe a impossibilidade de cumprimento de liturgias que posterguem a prestação jurisdicional, sendo essa a ratio aferível na gênese do novel instituto".7

De fato, o instituto da antecipação de tutela inaugurou um novo capítulo na história do direito pátrio, fazendo vigorar de modo efetivo a prestação jurisdicional, diante da possibilidade de perecimento e da volatividade do direito subjetivo, capaz de, por si, dar real significado à solução do tempo no processo, em aquilo que seja cabível ou suficiente a aplicação desse recurso, sem prejuízo da utilização das medidas cautelares, tendentes à segurança do direito posto em juízo.

Em seguida, com a institucionalização das astreintes e a ampliação dos poderes de atuação oficiosa do juiz, bem como a possibilidade da utilização de técnicas processuais adequadas para a consecução do fim perseguido, foi o demandante municiado de meios eficazes a fazer valer o cumprimento das determinações judiciais, que abreviam a atuação no direito e tornam suportável a espera do trâmite processual8.

A par disso, dispõem as partes do sistema recursal que comporta também nessa sede, a antecipação de tutela ou a suspensividade, inclusive de efeito ativo, conforme o caso, ferramentas essas também disponíveis e acessíveis a quem demonstre, desde logo, a verossimilhança do direito.

A atuação irresponsável da parte que venha a provocar empecilho no processo em qualquer de suas fases também pode ser contida pela cominação de penalidades resultantes do reconhecimento da temeridade processual, cada vez mais específicas, ora previstas para a atuação genérica, ora previstas em sede recursal ou de execução e a sua imposição traduz exatamente o atendimento, por meio do devido processo legal, do fim colimado, de abreviação do tempo de duração do processo.

Dinamarco9 bem demonstra a intenção do legislador, ao veicular por meio da EC-45 não só o direito à razoável duração do processo, como outras medidas capazes de reduzir os trâmites processuais. Afirma o Autor que

(...) os reformadores estiveram conscientes de que a maior debilidade do Poder Judiciário brasileiro em sua realidade atual reside em sua inaptidão a oferecer uma justiça em tempo razoável, sendo sumamente injusta e antidemocrática a outorga de decisões tardias, depois de angustiosas esperas e quando, em muitos casos, sua utilidade já se encontra reduzida ou mesmo neutralizada por inteiro. De nada tem valido a Convenção Americana de Direitos Humanos, em vigor neste país desde 1978, incorporada que foi à ordem jurídica brasileira em 1992 (dec. n. 678, de 6.11.92); e foi talvez por isso que agora a Constituição quis, ela própria, reiterar essa promessa mal cumprida, fazendo-o em primeiro lugar ao estabelecer que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (art. 5º., inc. LXXVIII, red. EC n. 45, de 8.12.04). E, passando da palavra à ação, a emenda n. 45 trouxe também três disposições de caráter eminentemente pragmático e destinadas a acelerar, que são: (a) a que suprime férias coletivas em todas as Justiças e em todos seus graus jurisdicionais e (b) a que consagra em nível constitucional o automatismo judiciário e (c) a que determina a distribuição imediata em todos os juízos e tribunais.

Acrescente-se ao rol a criação das súmulas vinculantes e dos recursos repetitivos, tentativa do legislador de uniformizar a conduta jurisdicional como modo de agilizar a atividade do Judiciário, exterminando initio litis as pretensões a respeito das quais já se tenha pronunciado desfavoravelmente as Cortes Superiores.

Prazo razoável e celeridade não são sinônimos, posto que a razoabilidade pode assumir diferentes feições de acordo com a necessidade instrutória de cada processo e suas circunstâncias particulares; e o processo dispõe de técnicas avançadas e hábeis, em sua moderna versão instrumental. Claro está que o processo de conhecimento, porque visa à definição do direito, requer atos e ritos distintos daqueles exigidos para a execução, onde se cuida da realização coativa do direito declarado, assim como em relação ao processo cautelar, que busca a segurança do interesse em lide. Há adequação teleológica também quando o procedimento é adaptado aos valores preponderantes em cada caso.               

Portanto, respeitados os princípios que norteiam o direito processual, mais especificamente o devido processo legal, atendido estará o preceito, posto que o conceito fluido que resulta do termo "razoável" melhor se coaduna com a sua adaptação ao cumprimento exato dos ritos processuais, sem dilações desnecessárias ou imprestáveis10, revelando-se mais que o acesso à justiça, o acesso ao processo justo, resultado do qual às partes serão assegurados todos os meios de atuação previstos no ordenamento jurídico, hábeis à consecução do direito e ao amplo exercício da defesa, mantido o equilíbrio processual11.

Verifica-se com essa abordagem que o direito processual dispõe de instrumentos capazes de abreviar o tempo no processo, rejeitando idas e vindas desde que preservada a plena atuação do contraditório e do devido processo legal, o que, muito antes da "novidade", já tinha vinha sendo operacionalizado e constantemente buscado nas sucessivas reformas a que esteve sujeito o processo civil até a consagração da nova ordem, em 2015.

Portanto, o melhor enfoque resulta da análise sistemática, capaz de dar razoabilidade à sua aplicação e, ao mesmo tempo, proporcionar a exegese abrangente do instituto, compreendido não como um direito isolado, mas resultado de toda a atuação constitucional no terreno do processo.

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira12 a respeito bem destacou que - revelando ao fim e ao cabo a preocupação com a leitura constitucional do processo, que tem pautado as recentes reformas:

(...) o processo, na sua condição de autêntica ferramenta de natureza pública indispensável para a realização da justiça e da pacificação social, não pode ser compreendido como mera técnica, mas, sim, como instrumento para a realização de valores e especialmente valores constitucionais, impõe-se considerá-lo como direito constitucional aplicado. Nos dias atuais, cresce em significado a importância dessa concepção, se atentarmos para a íntima conexidade entre a jurisdição e o instrumento processual na aplicação e proteção dos direitos e garantias assegurados na Constituição. Aqui não se trata mais, bem entendido, de apenas conformar o processo às normas constitucionais, mas de empregá-las no próprio exercício da função jurisdicional, com reflexo direto no seu conteúdo, naquilo que é decidido pelo órgão judicial e na maneira como o processo é por ele conduzido.

Nessa linha, são critérios capazes de dar molde à razoável duração do processo (i) a complexidade e natureza da causa e dos interesses envolvidos, que serão a medida da instrução e do devido processo legal; (ii) a atuação das partes, que deverá ser exigente e responsável na condução do processo, com a utilização de todos os meios disponíveis a dar efetividade ao direito imediato e (iii) da jurisdição, onde dispõe Estado-juiz de meios cada vez mais ampliados de dar efetividade às decisões judiciais e de punir as condutas procrastinatórias13.

Em célebre monografia, Capelletti e Gart14 na qual tratam do acesso à justiça, mencionam que a falta de atendimento da justiça em um prazo "razoável" traduz uma justiça inacessível. A lição não pode ser entendida de modo isolado e vem ocupando o estudo do processo civil, revelando-se as recentes reformas como desdobramento da denominada "terceira onda" que rende ensejo a um novo "enfoque", mais bem abrangido na leitura proporcional dos ditames constitucionais.

Não por outro motivo, o texto magno expressamente alia "a razoável duração do processo" aos "meios que garantam a celeridade de sua tramitação", de modo que o alcance da garantia será resultado da conjugação da tempestividade e do consagrado due process of law e não de um determinado tempo que seja aquilatado em um juízo aleatório e subjetivo, sem parâmetro legal.

A virtude da ascensão constitucional do tema, que não tem ares de novidade, reside mais na inspiração que trouxe às reformas do processo, todas visando a efetividade e a aceleração de ritos, como por exemplo a adoção do sincretismo processual; a simplificação da atuação da fase executiva, com a adoção da não-suspensividade como regra e assim por diante, considerado que o preceito já se encontrava implicitamente abrangido pela garantia de acesso ao Judiciário.

Portanto, ao invocar o direito fundamental à "razoável duração do processo", deverá o jurisdicionado utilizar-se dos meios disponíveis e aptos a dar efetividade à aceleração de ritos e à obediência das formas indispensáveis, sendo essa a ferramenta apta à aplicação da nova regra constitucional, sob o molde do due process of law.

Em conclusão, pode-se dar colorido cético ao retrato aqui figurado, posto que não traduz nenhuma solução mágica como a sugerida por quem empreste ao texto constitucional exegese revolucionária, mas não se trata de concluir pela inoperância do direito erigido a garantia constitucional, mas dar-lhe ares de realidade, revelando as vertentes de sua operacionalização, hábeis a colocar em equilíbrio a efetividade e a garantia da observância do devido processo legal.

No mais, cabe à administração do Judiciário a árdua tarefa de localizar as causas internas de enredo das demandas judiciais, eliminar as etapas "mortas" do processo, enfim, modernizar o aparelho, pois não há na seara do Legislativo aptidão para, pelo meio normativo, ainda que com autoridade constitucional, reduzir o tempo no processo ou o volume de demandas que hoje entulham os escaninhos. Muritiba15, muito oportunamente anota que "a sociedade pós-moderna exige resultados rápidos. O próprio direito subjetivo é um fenômeno efêmero, capaz de perder a sua significância se a tutela jurisdicional for postergada".

__________

1 Art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".

2 Artigo 6.º (Direito a um processo equitativo) 1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.

3 Art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto San José de Costa Rica: Toda pessoa tem direito a ser ouvida com as garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, instituído por lei anterior, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

4 O Brasil não foi signatário do Pacto de São José da Costa Rica, mas sim, aderiu à Convenção posteriormente, pelo Decreto 678/92. A adesão de um Tratado ou Convenção é o ato posterior do Estado aderente que se compromete a aplicar no seu ordenamento jurídico interno sem confrontá-lo, ao passo que se o Brasil fosse signatário este assumiria a obrigação de cumprimento total e somente se eximiria do cumprimento total através da denúncia do Tratado à Corte Internacional de Justiça, o que não ocorre na adesão, que é ato posterior e que o Estado pode adequá-lo ao ordenamento jurídico interno, independente de denúncia no âmbito internacional.(Disponível aqui -  acesso em 10.02.2008).

5 O Min. Celso de Mello, em voto proferido, afastou o cabimento do mandado de injunção para "viabilizar e operacionalizar o princípio da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII)." Em sua decisão traz elenco de medidas constantes de inúmeros projetos legislativos, todos visando a maior celeridade dos ritos processuais. (STF-MI 715/DF, rel. Min. CELSO DE MELLO, 25.2.2005).

6 BULOS, Uadi Lamêgo - Constituição Federal Anotada, SP:Saraiva 2007, p. 397

7 REsp 834.678/PR, Rel. Ministro  LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 26.06.2007, DJ 23.08.2007 p. 216. Marinoni acompanha esse entendimento, destacando que "o procedimento ordinário, como é intuitivo, não é adequado à tutela de todas as situações de direito substancial e, portanto, a sua universalização é algo impossível. Aliás, ao que hoje se assiste nos sistemas do direito romano-canînico é uma verdadeira demonstração de superação do procedimento ordinário, tendo a tutela urgente se transformado em técnica de sumarização e, em última análise, em remédio contra a ineficiência deste procedimento" (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução Imediata da Sentença, 2ª. Ed., SP:RT, 1998, p. 24)

8 Kazuo Watanabe destaca a respeito que "particularmente no artigo 461, para a tutela específica da obrigação de fazer ou não fazer ou para a obtenção do resultado prático correspondente, valeu-se o legislador da técnica de combinação de todos eles para conceber um processo que realmente propiciasse uma tutela efetiva, adequada e tempestiva, como determina o princípio constitucional da proteção judiciária". (WATANABE, Kazuo, Da cognição  no processo civil, 2ª. Ed., SP:Central de Publicações Jurídicas:Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, 1999, p. 48)

9 DINAMARCO,Cândido Rangel. O Processo Civil na Reforma Constitucional do Poder Judiciário. Disponível aqui, acesso em 10.02.2008

10 O Supremo Tribunal Federal decidiu a respeito que "o julgamento sem dilações indevidas constitui projeção do princípio do devido processo legal" (RTJ 187/933, rel. Min. Celso de Mello)

11 Por óbvio que o monopólio da jurisdição gera ao jurisdicionado o direito de servir-se do processo e, como na lição de Chiovenda, "a necessidade de servir-se do processo para obter razão não deve se reverter em dano para quem não pode ter o seu direito satisfeito senão mediante o processo" (CHIOVENDA, Giuseppe, Instituições de Direito Processual Civil, v. I, tr. Da 2ª ed. Por Paolo Capitanio, Bookseler 1998, p. 199).

12 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais, Revista de Processo n. 113. SP-jan-fev 2004, p. 10

13 Frequentemente tem sido aplicada a multa a que se refere o parágrafo 2º do artigo 557 do CPC, ao recorrente que pretenda veicular pretensão manifestamente improcedente, com intuito evidentemente procrastinatório, contra decisão emitida pelo juízo singular, decorrência da ampliação dos poderes do relator.

14 Acesso à Justiça, CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryan, trad. Ellen Gracie Northfleet, Sergio Antonio Fabris:PA, 1988

15 MURITIBA, Sérgio. Ação Executiva Lato Sensu e Mandamental, São Paulo:RT, 2005 p. 106.

Plataforma Digital Do Poder Judiciário Brasileiro – Pdpj-Br: Em Busca Da Interoperabilidade

Recentemente no site do Supremo Tribunal Federal foi veiculada notícia anunciando o desenvolvimento de uma nova plataforma para a gestão da jurisdição digital, o Projeto Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro (PDPJ-Br) [1]. O Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, o Exmo.  Ministro Luiz Fux, em reunião por videoconferência com diversos Presidentes de Tribunais, ao anunciar o projeto, ressaltou a importância de se integrar todos os tribunais do país, mantendo o sistema Processo Judicial eletrônico (PJe) como uma espécie de “sistema oficial” patrocinado pelo CNJ.

Aprovada e publicada a Resolução nº 335, de 29 de setembro de 2020 [2], passa-se a analisar alguns aspectos importantes sobre a interoperabilidade e a sua especial relevância na gestão de processos judiciais eletrônicos tendo-se o PJe como sistema prioritário do Conselho Nacional de Justiça.

A interoperabilidade é uma característica dos sistemas que sempre foi muito valorizada na área de informatização e de telecomunicações, que veio ganhando cada vez maior força no mundo do direito diante dos inúmeros problemas encontrados pelos usuários ao longo da implementação dos processos judiciais eletrônicos, que se perpetuam até os dias atuais, sem qualquer solução efetiva.

O conceito de interoperabilidade, resumidamente, traduz a necessidade de os sistemas serem integrados, intuitivos, de fácil manuseio, e que proporcionem de alguma forma uma ágil comunicação com outros sistemas que se encontrem logicamente na cadeia de um determinado fluxo de trabalho ou em uma linha de produção.

Não raro, são encontrados relatos de advogados que possuem dificuldade para acessar os sistemas processuais de um Estado da Federação por serem completamente diferentes de outro, ou até para peticionar ou visualizar peças eletrônicas no sistema de um mesmo órgão, que varia de uma instância para outra dentro daquela mesma estrutura. Cada plataforma possui limitações e peculiaridades que tornam hercúlea a simples tarefa de protocolizar uma petição.

Imagine-se esta problemática em relação aos jurisdicionados que teriam, em tese, a possibilidade de ingressar em juízo exercendo o seu jus postulandi. Trata-se, indubitavelmente, de um novo obstáculo ao acesso à justiça.

Em meio a esta “Torre de Babel” tecnológica é extremamente salutar e oportuna a iniciativa do Ministro Luiz Fux de manter um diálogo aberto com os presidentes de todos os tribunais e assim promover um sistema processual eletrônico interoperável, ou seja, que funcione de maneira orquestrada, tendo como ponto de união o PJe, que, dividido em módulos hospedados em nuvem, servirá como um verdadeiro hub [3] para que se acoplem os diversos sistemas usados pelos tribunais. Se tudo correr como o esperado, este será um dos maiores legados na história do processo judicial eletrônico.

A interoperabilidade, por sua vez, encontra-se na pauta do CNJ desde a sua criação. São inúmeros os atos registrados historicamente que tiveram por objetivo promoverem-na e alcançá-la [4].

Embora tenha sido o processo judicial eletrônico implementado normativamente de maneira gradual desde os anos oitenta, a partir da Lei nº 7.232/84 (Plano Nacional de Informatização) sua incorporação e desenvolvimento se deram de maneira desordenada e bastante difusa, o que teria acarretado o problema atual a ser enfrentado. Cada tribunal tem o seu sistema, e cada sistema ignora as funcionalidades de outro tribunal [5].

Com isto, pode-se afirmar que o grande marco do desenvolvimento do processo judicial eletrônico brasileiro foi, de fato, a Emenda Constitucional nº 45 de 30 de dezembro de 2004. Além de incluir no art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil a previsão expressa da garantia da razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (estando aqui o processo judicial eletrônico), ela criou o Conselho Nacional de Justiça.

A criação do Conselho Nacional de Justiça foi essencial para o surgimento da discussão da interoperabilidade, pois o que faltava em toda esta equação tecnológica era justamente um ponto focal para que se desse um seguimento adequado e sustentável para o desenvolvimento dos sistemas processuais eletrônicos. Neste sentido, o art. 196 do CPC de 2015 enuncia que ao CNJ compete velar pela compatibilidade dos sistemas, disciplinando a incorporação progressiva de novos avanços tecnológicos e editando, para este fim, os atos que forem necessários.

O processo judicial eletrônico quando implantado inicialmente não considerou o ponto de vista do usuário, mas sim, as necessidades e as facilidades a partir dos prestadores da jurisdição. Esta é uma falha comum em vários segmentos tecnológicos. Se alguém pensa em oferecer um serviço no meio tecnológico, este alguém não pode passar ao desenvolvedor daquele sistema as suas necessidades rotineiras sem pensar no destinatário daquela prestação.

Exatamente por esta razão, um dos sistemas mais elogiados pelos jurisdicionados foi o Eproc do Tribunal Regional Federal da 4ª Região [6]. Este sistema foi construído a partir de um processo dialógico do conhecimento.

Neste ensejo, de forma muito feliz, a Resolução nº 335/2020 revela em todo o seu texto a necessidade de colaboração no desenvolvimento como uma verdadeira constante. Ela coloca o CNJ como o coordenador do projeto, e em vários dispositivos menciona a necessidade de se manter um desenvolvimento colaborativo não só por parte dos tribunais, mas também pela comunidade, no art. 18, norma digna de aplausos.

Tal medida reforça a necessidade de se trabalhar igualmente a interoperabilidade em sede administrativa, pois, de nada adiantará um processo uniformizado dentro do Poder Judiciário sem que haja uma ponte de comunicação igualmente interoperável com outras esferas de Poder que fatalmente estarão envolvidas nos litígios em tramitação. A cada processo judicial, logicamente se conectam diversos módulos de processos administrativos oriundos de várias esferas do Poder Público que, sem a desejada interoperabilidade, continuarão representando pontos indesejados de retenção na tramitação que se propõe, a priori, de maneira mais célere e efetiva.

No âmbito do Ato Normativo 0007555-97.2020.2.00.0000, registra-se que o CNJ vem desenvolvendo desde 2009 o sistema PJe em cooperação com tribunais e conselhos de todos os segmentos do Poder Judiciário, tendo como objetivo primordial criar um sistema de tramitação processual no meio eletrônico que possa ser utilizado por todos os órgãos, em qualquer de suas especializações e competências.

Dois pontos merecem atenção com base no que já foi explicitado anteriormente. O primeiro está na importância de se ter como premissa basilar o fato de que as adequações extraídas das necessidades do tribunal aderente devem incorporar obrigatoriamente as experiências e a resposta dos usuários, sejam eles operadores ou destinatários da prestação jurisdicional. O segundo ponto refere-se ao desenho deste projeto, que, de maneira bastante salutar, parece estar sendo pensado a partir de um ponto focal (PJe) que serviria não apenas como um conector de todos os sistemas processuais eletrônicos do país, mas como uma espécie de marketplace, explanado pelo ato normativo como uma espécie de sala virtual, na qual todos os desenvolvedores de sistemas poderiam trocar experiências e recursos que poderiam ser acoplados a cada sistema.

De fato, vê-se comumente que as plataformas digitais, após serem desenvolvidas, precisam passar por um processo constante de adequação e de adaptação e, com isto, surge periodicamente a necessidade de se atualizarem os sistemas com a inserção de aplicativos auxiliares, novas ferramentas e programas de atualização para a correção de falhas, instabilidades e o aumento da segurança contra malwares.

Além disso, é necessário que seja mantido um banco de dados para que os diferentes gestores e desenvolvedores integrantes da PDPJ-Br tenham conhecimento de todas as novidades tecnológicas existentes, fator imprescindível para que o aprimoramento seja efetuado de maneira horizontal e equilibrada, eliminando-se com isto eventuais assimetrias geográficas ou entre segmentos e instâncias diferenciadas dentro do Poder Judiciário. Destarte, poderia o Conselho Nacional de Justiça adequar dentro da concepção de marketplace ora aventada a incorporação de um Road Map, uma ferramenta visual que demonstra de maneira clara o caminho que deverá ser percorrido em etapas produtivas, seja para o desenvolvimento de um novo sistema, ou para sua manutenção e aperfeiçoamento.

Outra ideia que se pode extrair, ainda nesta mesma linha, seria a adoção do mecanismo do blockchain, conhecido mais popularmente como o “protocolo da confiança”, com inúmeras funcionalidades. O blockchain incorporado ao PDPJ-Br permitiria o aumento da transparência [7] e do grau de confiança dos jurisdicionados no Poder Judiciário ao permitir a adoção de meios de fiscalização mais efetivos, mas também o aumento da segurança sobre os dados veiculados em toda a rede, minimizando-se os riscos advindos de eventuais invasões ou falhas do sistema em maior escala.

blockchain consiste em uma tecnologia desenvolvida para se descentralizar um registro de uma informação. Cada elo da corrente representaria um local hospedando o registro realizado. Cada registro se conecta a outro, que seria um novo elo da corrente. Quanto maior a corrente, maior a segurança sobre as informações inseridas. A principal benesse trazida residiria no fato de que, ao invés das informações estarem armazenadas em um computador central, ou uma nuvem, como se propõe, estariam salvas em milhares de computadores espalhados por todo o território brasileiro. Se cada computador detiver uma cópia integral do banco de dados, passa-se a se descentralizar o ponto de uma possível invasão por hackers. Assim, estar-se-ia formatando um sistema nos termos do art. 194 do CPC de 2015, segundo o qual os sistemas de automação processual respeitarão as garantias de publicidade e de participação no processo, observadas as garantias da disponibilidade, independência da plataforma computacional, acessibilidade e interoperabilidade dos sistemas, serviços, dados e informações que o Poder Judiciário administre no exercício de suas funções.

Uma sugestão construtiva que se alinha com o “espírito” da Resolução nº 335, de 29 de setembro de 2020, reside na propositura de um fluxo de constante acompanhamento e alinhamento de cada plataforma digital judicial integrante. Além de interoperáveis, as plataformas devem possuir ferramentas e layouts padronizados dentro das possibilidades reais, proporcionando ao usuário uma navegação simples e intuitiva, com a possibilidade de migrar de um sistema para outro sem dificuldades.

Como bem destacam Marcos Nóbrega e Juliano Heinen, vive-se na era do “Estado-digital”, destacando-se que a pandemia ora vivenciada, tem funcionado como catalizador de transformações que estavam em curso, potencializando assim, arranjos institucionais e jurídicos. Assim, tem-se, no caso em questão, a possibilidade de implementar por meio destes mecanismos tecnológicos a chamada “transparência 2.0”, além de uma nova maneira do Estado se relacionar com o cidadão – ou, neste caso, do Poder Judiciário com os seus jurisdicionados – com a entrega de facilitadores em ambos os sentidos. Daí exsurge a necessidade de popularizar um ambiente digital que esteja literalmente na palma da mão das pessoas que seguram um smartfone, ótima analogia para que se compreenda o ideal acesso à justiça informatizado [8].

Por fim, como último alerta, frise-se a relevância de se intensificarem os projetos de capacitação de servidores e operadores do direito, ao lado de uma ampla oferta de programas de ensino acerca do uso das novas tecnologias, acessíveis a todos os cidadãos, sem custo, para que se garanta a continuidade da prestação dos serviços jurisdicionais sem a criação de empecilhos no acesso informatizado, garantindo-se um  especial tratamento para os portadores de deficiência [9], idosos e pessoas que se encontrem em alguma situação de hipossuficiência, resguardando-se deste modo, uma evolução processual digital isonômica e democrática.

Neste ensejo, Evie Nogueira e Malafaia e Júlio Cesar Rossi destacam muito bem que “a tecnologia é bem-vinda, mas as garantias processuais são imprescindíveis e inflexíveis às mitigações infralegais”[10]. O acesso à justiça deve, portanto, ser ampliado e potencializado pelas novas tecnologias e não o oposto. Em igual sentido, Fernanda Gomes e Souza Borges pondera de maneira categórica que o uso da tecnologia alicerçado nos direitos e garantias fundamentais é algo inafastável à consolidação do Estado Democrático de Direito não havendo espaço para qualquer tipo de violação ao sistema de garantias constitucionais [11].

Espera-se de verdade que este seja um novo marco no desenvolvimento tecnológico, que, como visto, trará impactos significativos não apenas PDPJ-Br em termos de celeridade, efetividade e qualidade, mas também rumo a uma nova ruptura do mais moderno obstáculo ao acesso à justiça (que se defende como barreira tecnológica), com potencialidade para o incremento da segurança dos dados e do aumento da transparência e do grau de confiança no Poder Judiciário.

Notas e Referências

[1] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452600. Acesso em 01/10/2020.

[2] Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3496. Acesso em 01/10/2020.

[3] Hub é um termo bastante utilizado na tecnologia para se referir a uma máquina que conecta vários computadores juntos, ou o centro, parte principal de algo, que concentra a maior parte das atividades desenvolvidas. Fonte: https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/hub. Acesso em 01/10/2020.

[4] Dentre os diversos atos do CNJ em relação à interoperabilidade destacam-se: Resolução CNJ nº 12/2006 (Institui o Grupo de Interoperabilidade); Resolução CNJ nº 41/2007 (Criação do domínio jus.br); Resolução CNJ nº 70/2009 (Estabelece as metas do processo eletrônico); Resolução Conjunta nº 3 de 16 de abril de 2013 (institui o Modelo Nacional de Interoperabilidade); Resolução CNJ nº 181/2003 (Institui o PJe).

[5] IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Princípio da Interoperabilidade: Acesso à Justiça e Processo Eletrônico. São Paulo: Dialética Editora, 2020, p. 37-41.

[6] Ibidem, p. 42-45.

[7] CARDOSO, Andre Guskow. Blockchain em governos da transparência e acaba com venda de dados de cidadãos. Blocknews. Disponível em: https://www.blocknews.com.br/index.php/2020/02/26/blockchain-em-governos-da-transparencia-e-acaba-com-venda-de-dados-de-cidadaos-diz-advogado/. Acesso em 27/09/2020.

[8] HEINEN, Juliano e NÓBREGA, Marcos. A administração pública pós-covid: transparência 2.0, blockchain e smart contracts. Estadão Blogs. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-administracao-publica-pos-covid-transparencia-2-0-blockchain-e-smart-contracts/. Acesso em 01/10/2020.

[9] A respeito da inclusão dos portadores de deficiência visual, veja-se recente notícia sobre o uso de tecnologia permitindo acesso integral de pessoas com deficiência visual aos processos que tramitam no STJ. Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/25092020-Tecnologia-permite-acesso-integral-de-deficientes-visuais-aos-processos-que-tramitam-no-STJ.aspx. Acesso em 01/10/2020.

[10] E MALAFAIA, Evie Nogueira e ROSSI, Júlio. As recentes mudanças nos julgamentos virtuais perante o STF não podem restringir direitos. Empório do Direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-129-as-recentes-mudancas-nos-julgamentos-virtuais-perante-o-stf-nao-podem-restringir-direitos. Acesso em 01/10/2020.

[11] BORGES, Fernanda Gomes e Souza. A já inafastável relação entre processo e inteligência artificial: dominação estatal ou democratização processual? Empório do Direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdrpro-53-a-ja-inafastavel-relacao-entre-processo-e-inteligencia-artificial-dominacao-estatal-ou-democratizacao-processual. Acesso em 01/10/2020.

Imagem Ilustrativa do Post: Metas nacionais do Poder Judiciário // Foto de: Divulgação/TJGO // Sem alterações

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Citação eletrônica e a Resolução 455 do Conselho Nacional de Justiça

A comunicação processual pelas vias eletrônicas não é mais uma exceção à regra no Brasil.

O regramento da citação no ordenamento brasileiro demonstra bem esta evolução. No Código de Processo Civil de 1973 não havia sequer previsão acerca da citação eletrônica, até porque, o movimento de informatização no Brasil só teve início a partir da década dos anos oitenta.

Assim, o CPC de 1973 limitava-se a trazer no texto do art. 221 a citação por três formas: correio, oficial de justiça e edital.

A lei 11.419/06, por sua vez, avançou ao estabelecer a possibilidade de se realizar a comunicação eletrônica dos atos processuais, de onde se destaca a norma prevista no art. 9º, caput, enunciando que "no processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, serão feitas por meio eletrônico, na forma desta lei". Posteriormente, o CPC de 2015 veio a consagrar a prática eletrônica, e vem até o presente momento passando por modificações, dentre as quais se destacam aquelas promovidas pela recente lei 14.195/21 (com objeto bastante amplo, relacionado tanto com o direito empresarial e como com o direito processual civil), que está pendente de julgamento acerca de sua constitucionalidade por questões formais1.

Com relação à intimação eletrônica, ato que pressupõe a preexistência de uma relação processual já consolidada, não se vislumbra qualquer obstáculo de ordem técnica ou principiológica para a sua realização, pois todas as partes estão devidamente identificadas e em plenas condições para atuarem no processo.

Diferente é a citação eletrônica. Trata-se de ato que tem por objetivo integrar a relação processual, dando cientificação ao réu, ao executado ou ao terceiro acerca da existência da demanda, e convocando-lhe para se defender em juízo. Não houve, até este ato, um contato inicial com as partes do processo, imprescindível para que sejam definidos as regras e os contornos da lide.

A eficiência de um meio depende da averiguação das circunstâncias em que ele se insere. E pelas circunstâncias naturais, a realidade no mundo digital ainda não é uma regra, estamos em um processo de transformação. Justamente por este motivo, a citação eletrônica precisa ser pensada de forma muito mais cautelosa que as demais, pois, ali, há ainda um cenário de incertezas em relação às posições das partes que integrarão aquela relação processual.

A intensificação do processo de digitalização no âmbito do Judiciário restou delineada em uma série de atos normativos emanados do Conselho Nacional de Justiça, no exercício de suas atribuições previstas no art. 196 do CPC de 2015.

Todavia, algumas questões importantes precisam ser debatidas em meio a este processo "apressado de modernização do Poder Judiciário".

A primeira delas diz respeito à previsão da citação como realizável, preferencialmente, pelo meio eletrônico, no prazo de dois dias úteis, contado da decisão que determinar seu encaminhamento ao endereço eletrônico indicado pelo citando, que se fará constar no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do CNJ. Três problemas podem ser apontados: 1) como se fará a confirmação segura acerca do recebimento da citação eletrônica recebida por e-mail? 2) existe esse banco de dados do Poder Judiciário, com capacidade de armazenamento e segurança cibernética, em consonância com os ditames da Lei Geral de Proteção de Dados? 3) Não houve ainda a referida regulamentação pelo CNJ.

A Resolução n. 455, do CNJ instituiu o Portal de Serviços do Poder Judiciário (PSPJ), na Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br), para usuários externos.  Segundo o art. 3° da Resolução, entre outras funcionalidades, o Portal permitirá a efetivação de citações, intimações e comunicações processuais em todos os sistemas de tramitação processual eletrônica conectados à PDPJ-Br.

A definição do que seja endereço eletrônico encontra-se no art. 2° da Resolução, que considera toda forma de identificação individualizada para recebimento e envio de comunicação/mensagem digital, tal como o correio eletrônico (e-mail), aplicativos de mensagens, perfis em redes sociais, e o Domicílio Judicial Eletrônico.

Já o Domicílio Judicial Eletrônico constitui o ambiente digital para a comunicação processual entre os órgãos do Poder Judiciário e os destinatários que sejam ou não partes na relação processual. É por ele que as intimações e citações ocorrerão.

O cadastro do Domicílio Judicial Eletrônico será obrigatório para a União, para os Estados, para o Distrito Federal, para os Municípios, para as entidades da administração indireta e para as empresas públicas e privadas (art. 16), excluindo-se desta obrigatoriedade as pessoas físicas e as microempresas e empresas de pequeno porte, mesmo que estas últimas possuam endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim).

Quanto às pessoas físicas, a Resolução faculta ao cadastramento do domicílio judicial eletrônico por meio do Sistema de Login Único da PDPJ-Br, via autenticação no serviço "gov.br" do Poder Executivo Federal, com nível de conta prata ou ouro; ou por meio de autenticação com uso de certificado digital. Também prevê o compartilhamento de banco de dados cadastrais de órgãos governamentais com o órgão do Poder Judiciário, nos termos da legislação aplicável ao tratamento de dados pessoais.

A questão a ser pensada a esse respeito é se o banco de dados utilizado para o compartilhamento de dados pessoais está atualizado. Muito embora o art. 77, tenha sofrido alteração pela lei 14.195/21, no sentido de acrescentar como dever da parte informar e manter atualizados seus dados cadastrais perante os órgãos do Poder Judiciário e, no caso do § 6º do art. 246 deste Código, da Administração Tributária, para recebimento de citações e intimações, entendemos que, para aplicação de multa por ato atentatório à dignidade da justiça, em caso de ausência de confirmação de recebimento pelo citando ou intimando, deve ocorrer em caso de má-fé apenas. É muito comum que as empresas deleguem aos seus contadores o ônus do recebimento de correspondência tributária. Assim, a excludente de ilicitude por ato de terceiro deve ser aplicada.

No que tange especificamente à criação de uma base de dados pelo CNJ, Dierle Nunes e Catharina Almeida destacaram ser este um pressuposto básico para a eficácia prática da medida, ao lado da cooperação das partes para que este novo mecanismo de comunicação processual seja implementado com sucesso2.

Outra questão que deve ser discutida é a vulnerabilidade digital. Segundo pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros - TIC Domicílios 2021, 18% dos domicílios brasileiros não possuem acesso à internet. Destes 18%, 39% estão inseridos nas classes D e E e 29% estão localizados na área rural.

O parágrafo 2° do art. 6° da Resolução 455 do CNJ atribui à parte a responsabilidade ao usuário acerca: a) do acesso ao seu provedor da internet e a configuração do computador utilizado nas transmissões eletrônicas; e b) do acompanhamento do regular recebimento das petições e documentos transmitidos eletronicamente. Assim, a norma desconsidera as regiões que não possuem acesso à internet, os custos para se manter um sistema eficiente, bem como a estabilidade da rede da empresa que fornece os serviços de internet, o que pode prejudicar a eficiência da citação e, consequentemente, o acesso à justiça do cidadão.

Neste quesito, não há igualdade de tratamento pela Resolução, pois prevê situações de instabilidade nos serviços prestados pelo Portal (art. 6°, caput), mas não trata de forma tão compreensiva os usuários externos. Pelo contrário, prevê consequências jurídicas negativas para eles.

É indubitável que a Resolução 455 do CNJ expressa os vários avanços tecnológicos ocorridos na sociedade brasileira e no seu sistema jurisdicional, mas não afasta a cautela que se deve ter diante de fragilidades e dificuldades que possam impedir as citações eletrônicas e o acesso à justiça dos cidadãos.

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1 Tendo em vista se tratar de matéria de cunho processual não constante no texto original da Medida Provisória que lhe deu origem, incorporada ao texto da Lei por uma emenda, em consonância com decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 5.127.

2 NUNES, Dierle; ALMEIDA, Catharina. Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do Legal Design. Disponível em: Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do legal design. Acesso em: 20 jul 2022.

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