Samira Viana[1]
O processo estrutural visa solucionar um problema, geralmente[2] relacionado a políticas públicas, por intermédio da atuação jurisdicional, a partir da reformulação de uma estrutura que, por funcionar de maneira equivocada, acaba originando o litígio coletivo. A reestruturação pode ser feita por meio de um plano de ação, o qual será implementado durante um longo período, com o escopo de transformar o funcionamento da estrutura, visando o futuro (prospectividade)[3].
Há muita produção jurídica acerca dos processos estruturais, tema que ganhou ainda maior notabilidade na última década. A doutrina já tratou de diversas temáticas dentro do processo estrutural, como a atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública, participação social, prova estatística, acordos estruturais, petição inicial estrutural, decisões estruturais, execução estrutural, mas há pouquíssima produção acerca da postura do réu no processo estrutural, que acabou se tornando um tema esquecido.
De acordo com Vitorelli[4], o passo inaugural para que um processo possa ser conduzido como estrutural é a sua identificação ou diagnóstico, conduta normalmente tida pelo autor, por meio de uma petição inicial estrutural. Contudo, e se diante de um litígio estrutural o autor não fizer essa identificação e elaborar pedidos estanques de obrigação de fazer e não fazer? E se o autor não elaborar uma petição inicial estrutural? O processo, que poderia ser estrutural, será conduzido como um processo desestrutural[5]?
Em que pese a elevada quantidade de pesquisas sobre o processo estrutural, ainda pairam muitas perguntas, mas a doutrina tem se incumbido de trazer respostas. E uma resposta possível às perguntas acima pode ser dada pelo réu, por meio de uma contestação estrutural.
Como é cediço, o processo estrutural visa a reestruturação de uma estrutura que não funciona adequadamente – ou sequer funciona – por meio da adoção de medidas prospectivas e gradativas[6]. E, para que a reestruturação ocorra, é necessário que o réu apresente um plano de ação, no qual estejam claramente estabelecidas metas, um cronograma, indicadores de resultado, etc. E este plano pode ser apresentado, inclusive, conjuntamente à uma contestação estrutural.
A contestação estrutural consiste em uma resposta que o réu apresenta no processo estrutural, na qual ele identifica a estruturalidade da demanda e apresenta defesa de mérito, em respeito ao princípio da eventualidade. Ademais, o réu pode apresentar proposta de acordo estrutural.
O réu, no processo estrutural especialmente, costuma ser visto como o litigante habitual, descumpridor de suas obrigações de maneira contumaz. Entretanto, não necessariamente é assim, pois nem sempre se trata de má vontade do gestor público para administrar corretamente e montar uma agenda de políticas públicas eficiente. Não raro, faltam recursos financeiros e recursos humanos, por exemplo.
E, na tentativa de administrar recursos escassos, os legitimados extraordinários surgem demandando o ente ou entidade por meio da tutela coletiva ou surgem uma série de demandas individuais nas quais são deferidas tutelas de urgência, sendo que o contexto maior é de um litígio estrutural. Vamos a um exemplo corriqueiro. Uma mãe procura o município em que reside para matricular seu filho numa creche, pois precisa trabalhar, mas verifica que não há vaga. Diante da necessidade de voltar às suas atividades laborativas, procura a Defensoria Pública, a qual ajuíza uma demanda individual visando o deferimento de tutela de urgência para obrigar o município a conceder uma vaga para aquela criança.
Assim, surge o processo desestrutural, nas palavras de Vitorelli, visto que há um ajuizamento desenfreado de demandas sem caráter estrutural, que não ajudam a resolver o litígio estrutural, pelo contrário, tornam-se um obstáculo, tendo em vista que é possível verificar em alguns municípios do país que o orçamento municipal se encontra comprometido devido ao cumprimento de liminares.
E, nesse contexto, o que o réu pode fazer quando se depara com uma demanda coletiva não estrutural? Ele pode apresentar uma contestação estrutural para identificar que a demanda é estrutural e pedir que ela possa ser conduzida nos moldes de um processo estrutural. A contestação estrutural, portanto, caminha em direção ao paradigma cooperativo de processo, tendo em vista que seus pressupostos são a cooperação e a boa-fé objetiva processual.
O Código de Processo Civil estabelece a cooperação como norma fundamental, em seu art. 6º, dispondo que: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Se todos os sujeitos devem cooperar entre si, seria possível dizer que o réu deve cooperar na tentativa de solução do litígio estrutural? Sim, por mais contraintuitivo que isto pareça.
E é esta a proposta do livro “A Contestação no Processo Estrutural”, no qual, a partir de casos práticos, foi possível fazer uma releitura do instituto da contestação prevista no CPC, pensada para o processo civil individual, adaptando este instituto ao processo estrutural.
A contestação estrutural é uma resposta do réu à demanda do autor coletivo, na qual o requerido identifica que há um litígio estrutural subjacente ao caso e pede que o processo seja conduzido como um processo estrutural, com suas técnicas e a partir de uma maior flexibilidade procedimental.
Ainda que a contestação estrutural seja uma releitura do instituto tradicional, não deixa de ter natureza de contestação, de modo que é necessária a apresentação de defesa de mérito, pelo princípio da eventualidade.
No primeiro capítulo, o livro mergulha na teoria do processo estrutural, partindo da literatura norte-americana sobre o tema, para chegar aos autores brasileiros e estabelecer uma classificação entre as características dos litígios e dos processos estruturais. Por se tratar de conceitos e fenômenos diferentes, suas características diferem em alguma medida.
Além disso, são abordadas duas características que a doutrina do processo estrutural não costuma trazer como características essenciais, mas que podem ser pensadas dessa forma porque podem ser extraídas do pensamento de alguns autores.
No segundo capítulo, parte-se do princípio do contraditório e do instituto da contestação no CPC para se chegar ao conceito de contestação estrutural, seus pressupostos e os elementos que nela estão contidos.
No terceiro capítulo, faz-se um estudo de caso a partir do qual são examinados os incentivos que podem levar o réu a apresentar uma contestação estrutural, partindo da ideia de que, muito embora o réu esteja pautado no princípio da cooperação e na boa-fé objetiva processual, o requerido não é altruísta e, portanto, devem existir incentivos que o levam a apresentar uma defesa estrutural.
O altruísmo é um sentimento muito bonito, mas que fica adstrito ao campo da moralidade. No processo, mesmo que seja o estrutural, não há altruísmo, mas podem existir incentivos, materiais ou não, que levem o réu a apresentar uma contestação estrutural. Com isso, não se quer defender um modelo de processo estrutural-adversarial, pelo contrário. O que se defende, na verdade, é que o réu pode estar imbuído de boa-fé objetiva e disposto a cooperar, devido à existência de incentivos.
Por fim, são trazidos alguns desdobramentos da contestação estrutural com base na economia comportamental, bem como outros momentos processuais nos quais o réu pode identificar a estruturalidade da demanda.
O tema da contestação estrutural ainda não havia sido tratado doutrinariamente e tem ganhado espaço, especialmente, a partir do reconhecimento da Boa Prática nº 15 (Grupo de Processos Estruturais) do FPPC. Inclusive, no Projeto de Lei nº 3/2025, a Comissão de Juristas responsável pela elaboração do projeto de lei do processo estrutural, fez constar no art. 5º, §5º, que qualquer dos sujeitos envolvidos podem identificar que a demanda é estrutural, ou seja, há um avanço em reconhecer que outros sujeitos processuais, como o réu, podem fazer essa identificação e não somente o autor ou o magistrado. Portanto, trata-se de tema inédito e que deve continuar sendo pesquisado.
Certa vez ouvi dizer, com razão, que o processo estrutural é um “museu de grandes novidades”. De fato, pensando na perspectiva de que o Judiciário já lidava com processos estruturais há muito tempo antes de se começar a teorizar sobre o tema no Brasil.
Todavia, a contestação estrutural é fenômeno mais novo, que foge um pouco deste dito “museu de grandes novidades”, pois a lógica do réu ao longo dos anos sempre foi de trazer defesas ineficazes e protelatórias para o processo, de modo que recentemente, apenas, após a disseminação da temática do processo estrutural no país, foi possível verificar a apresentação de contestações estruturais.
Assim, o livro “A Contestação no Processo Estrutural” tem o condão de incentivar uma mudança de postura dos réus, sejam integrantes do conceito de Fazenda Pública ou não, a fim de que tal mudança de postura – e de mentalidade – comece a gerar frutos positivos que beneficiem a coletividade.
A contestação estrutural representa um novo olhar do réu sobre o litígio estrutural, no qual o réu, a partir de incentivos, deixa de ter uma postura recalcitrante e busca cooperar para a solução ou tratamento do litígio, de uma forma que seja viável, inclusive orçamentariamente. Verifica-se, portanto, que o processo estrutural não é, como muitos dizem, favorável somente ao autor. Na verdade, é benéfico também para o réu, tendo em vista que, dentre outros pontos positivos, a solução ou tratamento do conflito ocorrerá de maneira gradual.
Assim, o réu e o processo estrutural estão diretamente relacionados, porque não é possível qualquer reestruturação se não houver um responsável – não no sentido de culpado – pela reestruturação. E muito embora não se defenda a existência de protagonismos no processo estrutural, o réu, ao apresentar uma contestação estrutural, ganha um papel de destaque.
É certo que a ideia de que o réu pode identificar uma demanda como estrutural, em vez de apenas se defender, parece algo muito contra-intuitivo, contudo, o livro “A Contestação no Processo Estrutural” traz algumas respostas de o porquê essa identificação ser possível em contestação, mantendo-se a natureza jurídica de uma contestação. Trata-se, portanto, de uma revisitação ao instituto da contestação, em que são trazidos novos elementos, sem que ela perca a sua natureza.
[1] Mestre em Direitos Humanos com ênfase em Direito Processual Civil – UFPA. Pós-graduada em Direito Processual Civil – CESUPA. Coordenadora do Observatório de Tutela Coletiva e Estrutural – CNPq/UFPA. Integrante do Núcleo de Direito Processual Civil Comparado – UFPR. Membro do IBDP, ABEP e ANNEP.
[2] Diz-se geralmente por que os casos mais comuns são os relacionados a políticas públicas. Entretanto, existem litígios estruturais de natureza privada, visando a mudança de estruturas privadas que prestam serviços públicos ou de estruturas integralmente privadas. Nesse sentido: VITORELLI, Edilson. Processo Estrutural: Teoria e Prática. 5ª Ed. São Paulo: Juspodivm, 2024, p. 66.
[3] VITORELLI, Edilson. Processo Estrutural: Teoria e Prática. 5ª Ed. São Paulo: Juspodivm, p. 75-80, 2024.
[4] VITORELLI, Edilson. Processo Estrutural: Teoria e Prática. 5ª Ed. São Paulo: Juspodivm, p. 75, 2024.
[5] Termo cunhado por VITORELLI, Edilson. Processo Estrutural: Teoria e Prática. 5ª Ed. São Paulo: Juspodivm, p. 139, 2024.
[6] VITORELLI, Edilson. Processo Estrutural: Teoria e Prática. 5ª Ed. São Paulo: Juspodivm, 2024, p. 75-80.