Honorários advocatícios de sucumbência: natureza alimentar? Prestação alimentícia? Os possíveis reflexos do julgamento do tema 1153 sobre o tema 1230, ambos do STJ

 

Daiana Arruda[i],

Priscila Seifert[ii] 

Natacha Nascimento Gomes Tostes Gonçalves de Oliveira[iii]

 

Tanto nos processos judiciais, como nos livros de doutrina, a natureza dos honorários advocatícios de sucumbência sempre foi alvo de celeumas. Recentemente, no entanto, as discussões ficaram ainda mais acaloradas. Ao julgar o Tema 1153, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o salário não pode ser penhorado para garantir o pagamento dos honorários de sucumbência já que eles não se caracterizariam como verbas de natureza alimentícia, razão pela qual escapariam da exceção prevista no §2°, do art. 833 do CPC.

Inspirado por esse assunto tão caro à comunidade jurídica, este singelo artigo tem como finalidade lançar algumas reflexões acerca do decidido pelo STJ[iv]

Propõe-se, em um primeiro momento, ressaltar o teor dos argumentos trazidos no voto condutor, de lavra do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Posteriormente, faz-se a análise dos argumentos lançados nos Embargos de Divergência ERESP 1.874.222. Por fim, aborda-se o julgamento, ainda pendente no STJ, do Tema 1230, que também cuida da possibilidade de penhora do salário. Em outras palavras, o assentado no julgamento do tema 1153, nem de longe, encerrou as discussões.

Por uma maioria apertada (6x5), a Corte da Cidadania decidiu que os honorários de sucumbência, não obstante sua natureza alimentar, não são considerados prestação alimentícia, donde não ser permitida a aplicação, para sua excussão, da regra prevista no § 2º do art. 833 do CPC. A tese firmada foi a seguinte: “A verba honorária sucumbencial, a despeito da sua natureza alimentar, não se enquadra na exceção prevista no § 2º do art. 833 do CPC/2015 (penhora para pagamento de prestação alimentícia)”[v]

Da leitura do voto condutor, é possível extrair que a ratio decidendi da referida tese foi a necessidade de distinguir a prestação de natureza alimentar em sentido amplo da prestação alimentícia em sentido estrito. Somente esta última se enquadraria na excepcionalidade da penhora.

Segundo o Relator, a solução da controvérsia estaria em reconhecer a existência de sutil, mas crucial, distinção entre as expressões "natureza alimentar" e "prestação alimentícia", a que se referem os arts. 85, § 14, e 833, § 2º, do Código de Processo Civil de 2015, estando elas de fato interligadas por uma relação de gênero e espécie, como já defendido em alguns julgados da Corte Superior, no entanto, em sentido inverso, ou seja, a "prestação alimentícia" é que ressai como espécie do gênero "verba de natureza alimentar", e não o contrário.

Dessa forma, formou-se maioria a favor da tese de que os honorários advocatícios, apesar da sua inquestionável natureza alimentar, não se confundiriam com a prestação de alimentos, sendo esta última obrigação periódica, de caráter ético-social, normalmente lastreada no princípio da solidariedade entre os membros do mesmo grupo familiar, embora também possa resultar de condenações por ato ilícito e de atos de vontade.

Apesar dos 05 votos a favor da penhorabilidade proferidos pelos ministros Humberto Martins, Luís Felipe Salomão, Mauro Campbell, Raul Araujo e Antonio Carlos Ferreira, percebe-se que os ministros não aprofundaram a discussão.

O Ministro Raul Araujo, por exemplo, propôs uma tese para que a questão seja analisada caso a caso pelo julgador, assim sugerindo: "Os honorários advocatícios, diante de sua natureza reconhecidamente alimentar, enquadram-se no conceito de prestação alimentícia, podendo o julgador, sopesando as circunstâncias de cada caso concreto e observando a proporcionalidade e razoabilidade, afastar a regra de impenhorabilidade das verbas remuneratórias e das quantias depositadas em caderneta de poupança, na forma prevista do parágrafo 2º do artigo 833 do CPC." Deixar a cargo do magistrado a análise de cada caso concreto, porém, não parece ser a solução ideal, uma vez que traria mais incerteza ainda.

Já o Ministro Humberto Martins foi muito suscinto, ao propor a seguinte tese: "A verba honorária sucumbencial, em razão de sua natureza alimentar, amolda-se à exceção prevista no parágrafo 2º do artigo 833 do Código de Processo Civil (penhora para pagamento de prestação alimentícia)."

Vê-se, portanto, que os dois ministros não esmiuçaram suas razões, dando azo à prevalência da tese contrária – pela impenhorabilidade[vi].

A partir do momento em que o STJ decide que os honorários não são equivalentes às prestações alimentícias, para fins de penhora, conforme o § 2º do art. 833 do CPC, é necessário buscar uma compatibilização desta decisão com a tese fixada na ocasião em que foram julgados os Embargos de Divergência n. 1.874.222.

Reafirmando jurisprudência que já se destacava nos julgamentos da Corte da Cidadania, o julgamento dos embargos de divergência, visando uniformizar o entendimento no seio daquele Tribunal, confirmou a possibilidade de penhora de até 30% do salário do devedor, desde que não se acarretasse risco à subsistência digna do devedor e de seus familiares.

Em um primeiro momento, pode parecer incongruente o STJ permita a penhora de salário, até o montante de 30%, para pagamento de quaisquer dívidas, independentemente de sua natureza, e negue esta mesma possibilidade para fins de constrição de valores para pagamento de honorários advocatícios de sucumbência, verba de natureza alimentar. As disposições, porém, não são excludentes, mas sim complementares.

O que o tema 1153 do STJ vedou foi a penhorabilidade do salário do devedor de honorários advocatícios sem nenhum limite ou critério objetivo, por aplicação da regra de exceção do § 2º do art. 833, considerando apenas a natureza da verba.

Não há, porém, qualquer vedação que o advogado, credor de honorários sucumbenciais (ou mesmo contratuais), requeira a penhora de até 30% do salário do devedor, medida que pode ser deferida, desde que não afete a subsistência deste último. Tal compreensão não retira a possibilidade de penhora de parte das verbas remuneratórias elencadas no art. 833, IV, do CPC/2015, desde que seja preservado percentual capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.

Nessa direção, é possível concluir que, se de um lado não se reconheceu ao advogado o direito de buscar a excussão de seus honorários sucumbenciais como prestação alimentícia, de outro lado continua aberta a possibilidade de se pleitear a relativização da impenhorabilidade salarial, com pedido de penhora de até 30% das verbas, nos termos dos julgados citados no voto.

Pensa-se inclusive que na eventualidade de um “concurso de credores”, com pedidos de penhora de parte do salário do devedor, deve ser dada preferência ao crédito do advogado, por sua natureza alimentar.

A discussão, porém, ainda não está encerrada.

É que apesar de se destinarem os embargos de divergência à uniformização da dissidência interna no seio dos Tribunais Superiores, ainda que de seus julgamentos se extraiam teses, eles carecem de força obrigatória perante os Tribunais inferiores.[vii]

Esta é a razão pela qual parece justificável e adequada a afetação do Tema 1230, onde se busca rediscutir o assunto, com caráter vinculante.

O Tema 1230 busca definir o “alcance da exceção prevista no § 2º do art. 833 do CPC, em relação à regra da impenhorabilidade da verba de natureza salarial tratada no inciso IV do mesmo dispositivo, para efeito de pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a cinquenta (50) salários mínimos”[viii].

Aguarda-se, assim, que a Corte da Cidadania estabeleça, agora com força de precedente qualificado, a regra da possibilidade (ou não) de relativização da regra da impenhorabilidade de salário, inclusive em relação a hipóteses em que a renda do devedor seja inferior a 50 salários-mínimos. Espera-se que a questão agora pendente de debate, inobstante se refira à dívida não alimentar, não exclua as verbas alimentares, mas não equiparadas à prestação alimentícia, como os honorários advocatícios.

Com efeito, interpretação neste sentido irá relegar um crédito reconhecidamente privilegiado, por sua natureza salarial, a um desprestígio ignóbil e assistemático.

Noutro sentido, se a lei processual civil expressamente dispôs em seu §14, art. 833 que os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, por que nas execuções trabalhistas - em que se pretende receber verba salarial/honorários – essa natureza é reconhecida de forma mais pacífica, enquanto nas execuções cíveis o advogado encontra barreiras?

Assim, a dificuldade imposta ao advogado em executar seu próprio salário – honorários – infringe a ordem processual, uma vez que ao impedir a execução do salário do devedor, impõe-se ao advogado - de maneira transversa, a penhorabilidade de seu próprio salário.

A controvérsia aqui abordada está longe de ser definitivamente solucionada. Inobstante a corrente que se adote, vencedora ou vencida, é certo que o julgamento do Tema 1153 se deu por estreita maioria. A questão ainda pode ser alvo de revezes. Caso o STJ, ao julgar o Tema 1230, confirme a possibilidade de relativização da regra da impenhorabilidade salarial, a comunidade jurídica terá que buscar compatibilizar a tese (hoje constante em embargos de divergência), com a decidida no tema comentado, ou se terá uma verba alimentar relegada a um patamar inferior a de uma verba não alimentar, na medida em que esta permite penhora de parte de vencimentos, e aquela não.

Como defendido, crê-se que, a prevalecer a posição do STJ tomada nos ERESP 1.874.222, firmando-se neste sentido o tema 1230, será possível penhorar o salário do devedor para satisfação dos honorários advocatícios, inclusive com preferência, em caso de eventual concurso de credores.

 

[i] Pós-Graduada em Direito de Família e Sucessões e Direito Processual Civil. Secretária-adjunta da OAB vai à Escola da Seccional RJ. Mentora de Direito das Sucessões da OAB/RJ. Advogada. Membro da ABEP.

[ii] Pós-doutoranda em Direito pela UFF. Professora de Processo Civil da Pós Graduação da FGV. Advogada da União. Membro da ABEP.

[iii] Mestre em Direito. Desembargadora do TJRJ. Professora de Processo Civil da EMERJ. Membro da ABEP.

[iv]As discussões aqui tratadas foram alvo de debate pelas autoras, em live realizada no Instagram da Associação Brasileira Elas no Processo, no dia 24.06.2024. Disponível em https://www.instagram.com/reel/C8nbvG6vqdz/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D, acesso em 16.07.2024.

[v]REsp n. 54382 – SP, voto do relator disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/6/E9393652762802_votocuevapenhorasalariohonorar.pdf , acesso em 16.07.2024.

[vi] O que se verifica é que, apesar da decisão favorável quanto à impenhorabilidade do salário para pagamento de honorários advocatícios, o debate ainda não está encerrado, pois não é crível imaginar que o legislador pretendia proteger o salário do devedor em prol do salário do credor, ambos de natureza alimentar.

[vii] Tomamos a liberdade de remeter o leitor ao texto sobre esse tema: OLIVEIRA, NATACHA NASCIMENTO GOMES TOSTES GONÇALVES DE. SOBRE A NECESSIDADE DE APRIMORAR A FORÇA VINCULANTE NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA: BREVES CONSIDERAÇÕES. In: HILL, FLAVIA PEREIRA; CORTEZ, Renata, HILDEBRAND, Cecilia. (Org.). PROCESSOS NOS TRIBUNAIS SUPERIORES. 01ed. Londrina: Editora Thoth, 2024, v. 10, p. 147-153.

[viii] STJ. Precedentes Qualificados. Tema 1230. Disponível em https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp, acesso em 16.07.2024.

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