Da alegação de violência doméstica como justificativa para dispensa de audiência de conciliação: comentários ao Enunciado 765 do FPPC

Cecilia Hildebrand[i]

Marina Sanches[ii]

Em 2025, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), um evento democrático que reúne processualistas civis anualmente em Brasília e aprova enunciados interpretativos e boas práticas do processo civil por unanimidade em plenária, aprovou importante enunciado com objetivo de prestigiar tratados internacionais e legislação protetiva para pessoas em situação em situação de violência com a seguinte redação:

Enunciado 765. (arts. 334, § 8º, 694 e 695) A alegação de violência doméstica ou familiar é justificativa para o não comparecimento à audiência de conciliação ou mediação, sem aplicação de multa. (Grupo: Sistema brasileiro de justiça multiportas; XIV FPPC-Brasília)

A audiência de tentativa de conciliação e mediação previstas nos arts. 334 e 695, do CPC é contraindicada nas situações em que uma das partes está em situação de violência doméstica, pois essa parte está em situação de vulnerabilidade.

Além disso, a presença da pessoa vítima de violência no mesmo ambiente que seu agressor, ainda que de maneira virtual[iii] seria uma forma de revitimizá-la, conduta que deve ser evitada pelo Poder Judiciário em razão das previsões da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e suas recomendações, além do protocolo do CNJ para julgamento com perspectiva de gênero.

A não realização de audiência em situações de violência compactua-se com as previsões da Recomendação Geral nº 35 da CEDAW, que prevê que, os casos de violência, não sejam obrigatoriamente encaminhados a procedimentos alternativos de resolução de litígios, incluindo mediação e conciliação e que os procedimentos alternativos não devem constituir obstáculo ao acesso das mulheres à justiça formal[iv].

Com a alteração promovida pela Lei 14.713/2023 ao Código de Processo Civil, incluindo o art. 699-A, que determina que o juiz indague as partes e ao Ministério Público para os fins do art. 695, abriu-se a possibilidade ao juízo de apurar a situação de violência doméstica nos casos concretos e, se for o caso, dispensar a audiência de conciliação nas ações de guarda.

No mesmo sentido, a Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo editou o Provimento nº 39/18, que, ao dispor regramentos para atuação procedimento dos juízos de primeira instância, considerou que “o disposto no artigo 41 da Lei Maria da Penha se mostra, em primeira análise, incompatível com a conciliação/mediação prevista no artigo 695 do Código de Processo Civil, porque a violência sofrida pela vítima de violência doméstica e familiar retirada mulher a sua capacidade volitiva, e, via de consequência, de transigir”[v].

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), no julgamento da Apelação Cível nº 1.0000.23.256061-5/001, anulou um acordo de partilha de bens em que uma das partes era vítima de violência doméstica ou familiar. Para o colegiado, houve vício de consentimento por coação, posto que “a violência doméstica altera a percepção da vítima que, temendo por sua própria vida e de seus próximos, tem o consentimento corrompido pelo temor excessivo”.

No FPPC, tal preocupação já havia sido debatida em outras edições, tendo sido a proposta inicial: “O juiz poderá dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações de família em que a mulher estiver em situação de violência”. Foram vários os ajustes de redação, trocando mulher por parte em situação de violência, tendo em vista outras leis protetivas, como estatuto do idoso e estatuto da criança e adolescente. Todavia, em plenária, só foi possível aprovar com o acréscimo de texto restritivo, ficando o enunciado inicialmente com a seguinte redação: Enunciado “639. (arts. 695 e 334, §4º, II) O juiz poderá, excepcionalmente, dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações de família, quando uma das partes estiver amparada por medida protetiva”. No IX FPPC-Recife a redação foi revista para abarcar outras ações: “(arts. 334, §4º, II e 695) O juiz poderá, excepcionalmente, dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações em que uma das partes estiver amparada por medida protetiva”.

E, finalmente, em 2024, houve nova proposta de revisão no XIII FPPC sugerida por Cecilia Hildebrand com a seguinte redação: “O juiz deverá dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações de família quando uma das partes estiver amparada por medida protetiva ou quando houver requerimento da pessoa em situação de violência”. Tal redação não foi aprovada na plenária que sugeriu ajustes, ficando o enunciado revisado com a seguinte redação: “639. (arts. 334, §4º, II e 695) O juiz poderá dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações de família, quando uma das partes estiver amparada por medida protetiva. (Grupo: Mediação e conciliação)”. Essa é a atual redação do enunciado 639.

Em 2025, buscando ampliar o alcance prático, novo enunciado foi elaborado por Nilsiton Aragão, Cecilia Hildebrand e Marina Sanches, com a seguinte redação: Enunciado 765. (arts. 334, § 8º, 694 e 695) A alegação de violência doméstica ou familiar é justificativa para o não comparecimento à audiência de conciliação ou mediação, sem aplicação de multa. (Grupo: Sistema brasileiro de justiça multiportas; XIV FPPC-Brasília).

Esse enunciado é mais abrangente que o anterior, aplicável a qualquer procedimento e não exige a prévia existência de concessão de medida protetiva. Afinal, “existe uma parcela da violência que não entra nas estatísticas oficiais, por razões diversas como desconfiança nas instituições, fatores psicológicos como medo e culpa, burocracia e dificuldade do acesso a serviços, entre outros.[vi]

Importante destacar a expressão “alegação de violência”, que se coaduna com a redação do § 4º do art. 19 da Lei Maria da Penha, que dá valor à mera alegação da situação de violência pela ofendida. Diz a redação do dispositivo: “As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes”.

As violências contra mulheres ocorrem, majoritariamente, no âmbito familiar, sendo, em 63% dos casos, praticados por parceiros íntimos, em 21,2% por ex-parceiros íntimos e em 8,7% por familiares[vii]. Ao final dessa relação, a mulher-vítima precisa regularizar questões nas Varas de Família, tais como: divórcio, partilha de bens, alimentos, guarda e convivência. Ocorre que é comum a postura de magistrados e magistradas em promoverem uma cisão na prestação jurisdicional ao separarem o que deve ser alegado nas Varas de Família e o que deve ser dirimido no Juízo das Varas Especializadas em Violência Doméstica ou Familiar contra a Mulher. Tal conduta desconsidera a interseccionalidade das questões apresentadas, especialmente quando envolvem relações familiares atravessadas por assimetrias de poder e marcadas por violência de gênero. Dessa forma, o mais novo enunciado do FPPC é vanguardista ao prever uma maior cooperação entre os Juízos de Família e Violência Doméstica na proteção integral de mulheres.

Noutro giro, continuar designando audiências de conciliação ou mediação, cuja parte alega ser vítima de violência doméstica ou familiar, pode ser considerada violência institucional de gênero, nos termos do artigo 15-A da Lei de Abuso de Autoridade (Lei Nº 13.869/2009), acrescido pela Lei Nº 14.321/2022, que afirma:

Violência Institucional. Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade: I - a situação de violência; ou II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços). § 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.

Trata-se, portanto, de um procedimento desnecessário e invasivo, sobretudo considerando que os advogados de ambas as partes possuem legitimidade para conduzir tratativas extrajudiciais na defesa dos interesses de seus representados.

A própria Lei Maria da Penha, alterada pela Lei n.º 13.505/2017, prevê, no artigo 10-A, § 1º, III, a diretriz de “não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.”

É certo que “impor às mulheres vítimas de violência doméstica o comparecimento de forma compulsória à audiência de conciliação em ações de família, as quais já fora demonstrado o seu desinteresse, é compactuar com uma leitura fria e literal do art. 695 do CPC, ignorando, inclusive, a obrigação de se adotar uma perspectiva de gênero no exercício da judicatura (Resolução 492/2023 do CNJ). Mais do que isso. É a concessão por parte do Estado-juiz de espaço institucional apto à germinação de situações traumatizantes e que violam o direito à integridade física e psicológica de mulheres vítimas de violência doméstica.[viii]

Flavia Hill[ix] e Fernanda Tartuce[x] entendem possível a dispensa da audiência em situações de violência.

América Nejaim e Cecilia Hildebrand destacam que “basta a alegação da pessoa que sofre violência para justificar a dispensa da audiência, pois a palavra da vítima tem valor probante”[xi].

Dessa forma, o juiz tem o dever de dispensar a audiência quando a vitima assim o requerer ou aceitar como justificativa suficiente para a não imposição da multa a alegação de situação de violência por parte dela.

A discussão de temas processuais com perspectiva de gênero no FPPC demonstra a maturidade do evento e um olhar para um processo civil que caminha rumo à igualdade processual de gênero.

Entender que a alegação da pessoa em situação de violência seja justificativa suficiente para a sua ausência na audiência de conciliação e mediação pode evitar a violência institucional e proteger a integridade da vítima, deixando o processo civil mais próximo do cumprimento dos tratados internacionais e normas protetivas.

 

[i] Mestre em Direito Processual pela UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora. Advogada. Especialista em Direito Processual Civil. Vice-presidente da Associação Brasileira Elas no Processo (ABEP), membra do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil IBDP) e da ABMCJSP.

[ii] Mãe solo do Vitor, de seis anos. Advogada para mulheres, com perspectiva de gênero, nas áreas de Direito de Família e Violência Doméstica ou Familiar Contra a Mulher. Graduada em Direito na Universidade Cândido Mendes (UCAM). Membra da Associação Brasileira Elas no Processo (ABEP).

[iii] No dia 02/04/2025, foi noticiado que uma mulher foi mantida refém durante uma audiência online sobre violência doméstica. Segundo informações da PM, o sequestro aconteceu na noite de segunda-feira, 31, no Recanto das Emas, mas veio à tona apenas na tarde desta terça, enquanto a vítima participava de uma audiência judicial virtual relacionada à lei Maria da Penha. Durante a sessão, realizada dentro de um veículo, ela estava acompanhada pelo próprio agressor, que respondia por agressões anteriores. Integrantes do Ministério Público, do Tribunal de Justiça e da Defensoria Pública perceberam que a mulher estava sendo coagida e, na verdade, era vítima de um sequestro. Notícia disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/427543/mulher-vitima-de-violencia-e-sequestrada-durante-audiencia-virtual. Acesso em: 03 abr. 2025.

[iv] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Recomendação Geral n. 35 sobre violência de gênero contra as mulheres do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/769f84bb4f9230f283050b7673aeb063.pdf. Acesso em: 20 mar. 2025.

[v] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. PROVIMENTO CG Nº 39/2018. Disponível em:http://esaj.tjsp.jus.br/gecon/legislacao/consulta?deTiponorma=%22PROVIMENTO%22&deOrgaoexpedidor=%22CORREGEDORIA+GERAL+DA+JUSTI%C3%87A+DO+ESTADO+DE+S.PAULO%22. Acesso em: 07 mar. 2025.

[vi] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024, p. 136. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/253. Acesso em: 15 abr. 2025.

[vii] Ibid., p. 16.

[viii] HEEMANN, Thimotie Aragon. Violência Doméstica: ações de família e dispensa da audiência de conciliação. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/violencia-domestica-acoes-de-familia-e-dispensa-da-audiencia-de-conciliacao. Acesso em: 15 abr. 2025.

[ix] HILL, Flavia Pereira. Uns mais iguais que os outros: Em busca da igualdade (material) de gênero no Processo Civil brasileiro. In: Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro, a. 13, v. 20, n. 2, maio‑ ago. 2019, p. 221.

[x] TARTUCE, Fernanda. Audiência consensual inicial, violência doméstica e empoderamento. 2017. Disponível em: https://www.fernandatartuce.com.br/wp-content/uploads/2017/11/Dispensa-da-audiencia-inicial-em-acoes-de-familia-Fernanda-Tartuce.pdf. Acesso em: 16 abr. 2025.

[xi] NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima; HILDEBRAND, Cecilia Rodrigues Frutuoso. Há obrigatoriedade da designação da audiência de mediação e conciliação em ações de família com violência doméstica e familiar? Revista de Direito do Poder Judiciário do Rio de Janeiro, v.2, n.2, jan. jul. 2024. Disponível em: https://portaltj.tjrj.jus.br/documents/d/portal-conhecimento/014-revistadireito2024-02-americacardosobln-ceciliarfhildebrand. Acesso em: 16 abr. de 2025.

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