Cooperação Judiciária e Eficiência Processual - O primeiros voto conjunto no STF: o despertar do Poder Judiciário para os avanços processuais e a quebra de paradigmas

No dia 16/06/23, os Ministros do STF, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, apresentaram um voto conjunto de ratificação, explicitação e complementação na ADI n. 7222, manifestando-se pela confirmação de uma decisão que, em maio deste ano, havia restabelecido o piso salarial nacional de profissionais de enfermagem previsto na Lei 14.434/22 com diretrizes para sua implementação.

O voto em conjunto, tomado de forma inédita no âmbito do STF, traz a concretização do novo olhar processual voltado para uma verdadeira eficiência da atividade jurisdicional, em um constante e necessário diálogo colaborativo, tanto entre os sujeitos do processo (art. 6º, CPC), quanto entre diversos juízos, objetivando uma gestão processual cooperativa.  Assim, o voto em conjunto representa a implementação da cooperação judiciária nacional, instituto previsto nos arts. 67, 68 e 69 do CPC/15.

A cooperação judiciária consiste numa técnica processual que já era utilizada no CPC/73, porém de forma limitada, presente nos atos de auxílio, denominados de cartas rogatórias, precatórias e de ordem. Com o CPC/15 a cooperação judiciária recebeu uma remodelagem, sendo considerada uma cláusula geral de dever jurisdicional para tornar a administração da justiça mais eficiente e eficaz, com forte inspiração nos atos normativos do CNJ (Resoluções nº 70/09 e 198/14; Recomendações nº 28/09 e 38/11) [1].

O art. 67 é claro quanto a esse dever, ao estabelecer que todos os órgãos do Poder Judiciário, em todas as instâncias e graus de jurisdição, incluindo também os tribunais superiores, precisam estabelecer entre si, uma recíproca atividade cooperativa, através de seus magistrados e servidores.  Interessante registrar que esse dever-poder de cooperação não possui restrição alguma a um determinado ato processual, tendo amplo alcance, dado pela redação do art. 68, com permissibilidade expressa de a prática cooperativa ser realizada para qualquer tipo de ato processual.

Por fim, o art. 69 estabelece os tipos de cooperação bem como prevê, de forma exemplificativa, os instrumentos de cooperação (cartas, auxílio direto, ato concertado), para a prática de ato processual. [2]. A intenção do legislador foi de deixar livre a forma para a cooperação judiciária se concretizar, formando-se uma atipicidade tanto para os instrumentos quanto para a prática dos atos processuais.  

Tem-se que a cooperação judiciária representa um verdadeiro “intercâmbio processual entre juízos diversos para prestação jurisdicional de forma plena, econômica, racional e eficiente” [3], cujo intercâmbio, proporciona mais flexibilidade, informalidade, horizontalidade, desburocratização e agilidade na realização dos atos judiciais. [4]

É crucial destacar que a modernização da cooperação judiciária também é prevista na Resolução nº 350/20 do CNJ, que dialoga com o CPC, sendo um verdadeiro complemento normativo. A Resolução  prevê disposições gerais e específicas expostas em harmonia com os princípios constitucionais da eficiência na administração pública, da duração razoável do processo, da cooperação processual, da eficiência processual, do contraditório, da fundamentação, da publicidade, da imparcialidade e da instrumentalidade das formas (art. 5º, IV, V e Art. 8º, §§ 1º e 2º, da Res. nº 350/20).

Além disso, a norma do CNJ estabelece (art. 8º), que a cooperação judiciária prescinde de forma específica e pode ser executada através de auxílio direto, atos conjuntos e atos concertados entre os juízos cooperantes.

Pautado na efetiva eficiência processual, o STF também regulamentou a prática da cooperação judiciária por meio da Res. nº 775/22 (art. 4º), os mesmos instrumentos previstos na resolução do CNJ.

Da leitura percuciente de ambas as resoluções, percebe-se que houve a inserção de um tipo de instrumento de concertação, o qual não tem previsão no CPC, o que ratifica a atipicidade dos meios de cooperação. Esse instrumento é denominado de “ato em conjunto”, que não pode ser considerado sinônimo de ato concertado. Ambos são instrumentos da cooperação por concertação.

A Resolução nº 350 do CNJ traz anexos para exemplificar o ato em conjunto (anexo II) e o ato concertado (anexo III), podendo-se extrair deles pontos diferenciadores. O ato em conjunto é voltado para a prática do ato jurisdicional em coautoria dos juízos cooperantes, vindo da consensualidade entre eles, para a construção de um despacho ou até mesmo para a elaboração de decisão judicial, seja ela uma interlocutória, uma sentença ou um voto, configurando uma verdadeira fusão de fundamentação jurídica e de conclusão. 

Por sua vez, o ato concertado consiste num acordo realizado entre os juízos cooperantes (negócio jurídico público [5]) para que seja eleito o juízo mais adequado para a prática de determinado ato judicial, bem como o dever recíproco de prestação de informações. Deve-se ressaltar que, nesses acordos de cooperação, apesar de haver uma liberdade para a escolha do ato jurisdicional, devem ser observados os princípios da imparcialidade, da fundamentação e da publicidade, já que o interesse negocial dos órgãos jurisdicionais reside na obtenção da solução da lide de forma menos custosa para o Judiciário, para alcançar o melhor resultado possível sob a ótica da eficiência. [6]

O caso concreto presente na ADI n. 7222 tem como questão jurídica a Lei 14.434/22, a qual regulamenta o piso salarial nacional para os profissionais do campo da enfermagem. A ação foi proposta pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços, sob o fundamento de existência de vícios formais e materiais na lei, os quais geram a sua inconstitucionalidade. No bojo da ação, foi pleiteada a medida cautelar para alcançar a suspensão dos seus efeitos imediatos até o julgamento de mérito da ação.

Ao analisar o requerimento da cautelar, o Ministro Roberto Barroso, proferiu decisão monocrática, determinando a suspensão dos efeitos da respectiva lei até que fossem avaliados os seus impactos sobre a situação financeira dos Estados e Municípios; a empregabilidade; e a qualidade dos serviços de saúde. Contudo, na primeira sessão de julgamento pelo Plenário do STF, o Relator, em virtude de novas informações prestadas, apresentou uma outra decisão revogando parcialmente a cautelar para restabelecer os efeitos da Lei, para que seja implementado o piso salarial nacional por ela instituído, utilizando critérios distintos para os servidores públicos civis da União, autarquias e fundações públicas federais; dos Estados, Distrito Federal, Municípios e de suas autarquias, bem como em relação aos profissionais celetistas.

Diante dessa nova decisão, o Ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos e quando do retorno para o julgamento em colegiado, foi apresentado, de forma extraordinária, um voto complementar conjunto, que encontra respaldo na Res. 775/22 do STF.

No ato jurisdicional, o Ministro Gilmar Mendes ratifica o voto do Relator e faz algumas sugestões, que foram aceitas e formuladas de comum acordo entre eles, apresentando um entendimento comungado de inconstitucionalidade progressiva da lei, criando-se uma tese jurídica no sentido de que o pagamento do piso pelos Estados, Distrito Federal e Municípios só poderá ser exigido se houver uma fonte segura de recursos para arcar com os encargos financeiros.[7]

E por que o voto conjunto é uma novidade na história do Poder Judiciário?

Em regra, no ordenamento jurídico brasileiro, o resultado dos julgamentos ocorridos no âmbito dos Tribunais está representado no acórdão, que se constitui na soma dos votos emitidos pelos ministros ou desembargadores, colhidos de forma individualizada na sessão de julgamento, podendo cada julgador ratificar o voto do relator, discordar, total ou parcialmente, e até mesmo complementar. E, após a colheita dos votos, passa-se para a elaboração da redação do acórdão, cujo redator será estabelecido nos termos da redação do art. 941 do CPC.       

Esse é o modelo tradicional de acórdão, denominado de “seriado” e, por isso, o voto conjunto rompe esse padrão. A modernidade processual está voltada para a simplicidade e a desburocratização da prestação jurisdicional, que pode ser representada por uma decisão com fundamentação unificada e, com isso, poder extrair, claramente, a ratio decidendi, tornando mais compreensível o entendimento do colegiado. [8]

Dessa forma, a antecipação dos votos na modalidade conjugada, dentro do sistema de julgamento dos Tribunais, além de facilitar o entendimento das razões de decidir do órgão colegiado, proporciona a racionalidade decisional [9] e possibilita a uniformização de entendimentos [10], em harmonia com a eficiência processual, meta a ser alcançada pela cooperação entre os juízos.

Por outro lado, ainda de forma incipiente, porém progressiva, o ato concertado entre juízos cooperantes já vem sendo efetivado em diversos Tribunais do País. A previsão do ato concertado está no art. 69, IV, do CPC e reforçado pelas Res. nº 350/20 do CNJ e 755/22 do STF. Para a sua validade, deve haver o prévio contraditório [11], intimando-se os sujeitos do processo para terem ciência e oportunidade de se manifestarem, evitando-se a decisão surpresa (art. 3º e 5º, V, da Res. nº 350/20 do CNJ; art.2º, parágrafo único, da Res. 775/22, STF). 

Percebe-se que o ordenamento jurídico atual oferta, por meio da cooperação processual, uma nova forma de gestão processual adequada para otimizar a prestação jurisdicional, no sentido de obter resultados com menos custos, gerando eficiência processual e administrativa, além de garantir também um tratamento isonômico e coparticipativo nas demandas judiciais. Contudo, é importante que o Poder Judiciário, por meio dos seus juízes, desembargadores, ministros, rompam paradigmas conceituais e despertem para os avanços processuais, fomentando e efetivando esse novo e eficiente diálogo jurisdicional e interinstitucional.

[1] NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima. A participação das partes no ato concertado entre juízos cooperantes à luz da resolução nº 350/2020 do CNJ, in Cooperação Judiciária, DIDIER JR, Fredie e CABRAL, Antonio do Passo, org.  Editora JusPodivm, Salvador, 2021, p.314-316.

[2] DIDIER JR, Fredie. Cooperação Judiciária Nacional. Editora JusPodivm, 2020, Salvador, p. 76.

[3] CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. A centralização de processos como etapa necessária do incidente de resolução de demandas repetitivas. Tese – PUC, São Paulo, 2017, p. 303.

[4] CAMPOS, Maria Gabriela, O compartilhamento de competências no processo civil. Salvador. Editora JusPodivm, 2020, cit. p. 112.

[5] DIDIER JR., Fredie. Cooperação Judiciária Nacional, cit., p. 86-87.

[6] CAMPOS, Maria Gabriela. O compartilhamento de competências no processo civil. Salvador. Editora JusPodivm, 2020, cit., p. 170.

[7]BARROSO,Roberto.https://www.migalhas.com.br/quentes/388916/barroso-explica-voto-conjunto-no-piso-da-enfermagem--boa-iniciativa.

[8] NASCIMENTO, Roberta Simões Nascimento. Piso da enfermagem: a novidade do 'voto conjunto' no STF, Site: JOTA INFO, Editoria Defensor Legis, http://c.smrclipping.com.br/unb/site/m012/noticia.asp?cd_noticia=157565545

[9] LEITE NETO, José Rollemberg Leite Neto. Voto Conjunto. https://eduardoferrao.adv.br/voto-conjunto/

[10] GUERREIRO, Mário Augusto Figueiredo de Lacerda e BARBOSA NETO, Dorotheo. Voto conjunto no Supremo Tribunal Federal. https://www.conjur.com.br/2023-jun-19/guerreiro-barbosa-voto-conjunto-stf,

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